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O tribunal do júri e a quesitação

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A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXVIII, reconhece o júri e dispõe que a instituição detém competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio, infanticídio, induzimento ou instigação ao suicídio e aborto).

A regra não tem um caráter absoluto, já que, nas hipóteses em que a própria Carga Magna estabelecer competência especial por prerrogativa de função (artigos 29, inciso X e 96, inciso III, por exemplo), haverá o afastamento da norma geral, de forma que caso um Promotor de Justiça, um Juiz de Direito ou um Prefeito Municipal venham a cometer um crime de homicídio doloso ficarão sujeitos a julgamento pelo Tribunal de Justiça do Estado a que pertencem e não ao Tribunal do Júri.

O Tribunal do Júri representa, a bem da verdade, a participação da comunidade no julgamento de crimes considerados graves, crimes que ofendem o bem jurídico mais importante tutelado pelo Direito Penal (vida), sendo composto, atualmente, por um juiz togado (Presidente do Tribunal do Júri) e por vinte e um juízes leigos (jurados), escolhidos entre cidadãos do povo, de conduta considerada ilibada. E, apesar das constantes críticas que sofre, a instituição, verdadeiro símbolo da democracia, se mantém firme na sociedade brasileira.

São atribuições dos jurados, geralmente leigos em ciências jurídicas, decidir acerca da autoria e da materialidade do crime, das teses apresentadas pela defesa (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, embriaguez, coação irresistível, inimputabilidade, etc.), das circunstâncias qualificadoras (motivo torpe, motivo fútil, recurso que dificulta ou torna impossível a defesa da vítima, meio cruel, etc.), dentre outras questões técnicas de intrincada compreensão. Para se ter uma idéia, na quesitação sobre a legítima defesa, causa excludente da ilicitude, são submetidas ao crivo dos jurados as seguintes indagações: a) o réu agiu em defesa de sua própria pessoa? O réu defendeu-se de uma agressão atual ou iminente? O réu defendeu-se de uma agressão injusta? Usou o réu dos meios necessários? Usou o réu moderadamente os meios necessários? Excedeu-se dolosamente o réu? Excedeu-se culposamente o réu?

São questionamentos eminentemente técnicos, que demandam extrema habilidade e prudência do Juiz Presidente do Tribunal do Júri (juiz togado) na hora de formulá-los e explicá-los aos jurados. Soam embaraçosos e por demais complicados até mesmo aos operadores do direito (Juízes, Promotores de Justiça, Defensores Públicos, Advogados e Delegados de Polícia). O que não dizer, então, aos jurados?

Não se mostra, portanto, razoável submeter mencionadas questões ao crivo dos jurados, pessoas da sociedade, dentistas, comerciantes, funcionários públicos, professores, a maioria dos quais com parco conhecimento jurídico e que acabam por decidir de acordo com a idéia e sentimento que têm de justiça e não amparados por normas técnico-legais. Ademais, e é bom que se diga, em plenário, não raramente, os debates são marcados pela emoção e por calorosas discussões entre acusação e defesa. E mais, na vida em sociedade, são os jurados bombardeados diariamente por informações pela mídia, parte da qual, defende, de forma simplista, a aplicação de penas longas, o abrandamento da maioridade penal, dentre outras idéias de cunho punitivo, como se tais fatores, por si só, fossem diminuir a criminalidade – como é cediço, a diminuição dos índices de criminalidade está relacionado a fatores outros, como a efetivação de políticas públicas e sociais que priorizem a educação, a rápida solução dos litígios e a certeza da punição por parte dos infratores.

Por outro lado, não se pode olvidar que as decisões dos jurados acarretam conseqüências gravíssimas ao réu, sobretudo em seu status libertatis, de forma que andou bem o Congresso Nacional em aprovar mudanças no procedimento do júri, especialmente (e é o que nos interessa no presente trabalho) no tocante à quesitação, simplificando-a, tornando-a mais clara e acessível aos jurados. De acordo com o sistema proposto (o Projeto de Lei nº 4.203/01 foi encaminhado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo e voltou à Câmara dos Deputados em decorrência de modificações sofridas no Senado Federal, mas tudo leva a crer que deve ser aprovado), três perguntas simples, a respeito de matéria fática, devem ser formuladas aos jurados: a) a primeira acerca da materialidade do crime; b) a segunda a respeito da autoria: c) e a terceira sobre a condenação – o jurado absolve o acusado? Optando os jurados pela tese da condenação, duas novas indagações devem ser feitas, uma no tocante a eventuais causas de diminuição de pena e outra referente a circunstâncias qualificadoras e causas de aumento de pena, eventualmente sustentadas pelas partes em plenário.

As mudanças, embora tardias, são importantes, salutares e extremamente eficazes do ponto de vista prático, eis que, a par de refletirem os anseios de grande parte dos operadores do direito, simplificam a quesitação, reduzem a possibilidade de recursos (que atualmente são interpostos com base em eventual nulidade referente a erro de quesitação, muitos dos quais com propósito manifestamente protelatório) e, também, evitam que os jurados decidam de forma contraditória, por não compreenderem os quesitos que lhes são formulados, além de não afetarem a índole democrática e social do Tribunal do Júri, porquanto os cidadãos continuam a julgar seus pares nos crimes dolosos contra a vida.

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Sobre o autor
Pedro Evandro de Vicente Rufato

Promotor de Justiça no Estado do Tocantins. Presidente da Associação Tocantinense do Ministério Público. Assessor Especial da Corregedoria-Geral do Ministério Público (2015/2020). Especialista em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT). Especialista em Ciências Criminais pela PUC de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUFATO, Pedro Evandro Vicente. O tribunal do júri e a quesitação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1671, 28 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10893. Acesso em: 25 abr. 2024.

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