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A ditadura das obrigações tributárias acessórias

30/01/2008 às 00:00
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A Constituição Federal de 1988, denominada Constituição Cidadã, incorporou em seus artigos 150 a 152 salvaguardas aos cidadãos contra o poder do Estado Brasileiro de lançar mão de parte do patrimônio, das rendas e receitas desses para o custeio de suas despesas e investimentos.

Tais anteparos, denominados "limitações constitucionais ao poder de tributar", já existentes no sistema constitucional anterior, não foram trazidos ao sistema constitucional brasileiro como idéia original; decorreram, na verdade, de longa depuração e lapidação histórica, feita nos embates políticos do povo em busca do respeito aos direitos necessários à digna existência do homem em sociedade.

Consta que essa limitação ao poder estatal de tributar teve como marco na história constitucional a imposição da Magna Carta pelos Barões Ingleses ao rei João, dito João sem terras, em 1215, in verbis:

Carta magna das liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês - foi a declaração solene que o rei João da Inglaterra, dito João Sem-Terra, assinou, em 15 de junho de 1215, perante o alto clero e os barões do reino.

I - Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino (commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres.

[01]

Não obstante estejam consolidadas as fronteiras do poder de tributar dentro do Estado de Direito vigente, o legislador constitucional brasileiro deixou de estatuir limites ao poder estatal de criar e impor aos contribuintes, pessoas físicas, jurídicas ou equiparadas a essas últimas, deveres formais consubstanciados em obrigações tributárias acessórias.

Assim, sem encontrar barreiras, os Executivos Federal, Estadual, Distrital e Municipal editam normas criando os mais diversos tipos de obrigações acessórias, muitas delas requerendo as mesmas informações já prestadas às outras Fazendas Públicas, gerando enorme custo administrativo e sujeitando os contribuintes a pesadas sanções pecuniárias em razão do descumprimento do dever formal criado.

Isso não bastasse, o § 5º do art. 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988 instituiu o Fenômeno da Recepção, pelo qual, vigente o novo sistema tributário, ficou assegurada a aplicação das normas tributárias a ela antecedentes, desde que não conflitantes com seu texto.

Desse modo, restaram recepcionados os §§ 2º e 3º do art. 113 e o art. 115 do CTN, in verbis:

Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.

§ 2º A obrigação acessória decorrente da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.

§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.

Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal. [02]

Dos dispositivos colacionados, extrai-se que, no Brasil, o dever formal ou acessório de prestar ou franquear o acesso a informações de interesse da administração tributária pode ser instituído por qualquer das espécies normativas previstas em direito e pertencentes ao gênero "legislação tributária"; ou seja, não se trata de obrigação cuja criação fica adstrita às leis tributárias em sentido formal, podendo ser criada por leis tributárias em sentido material (notificações assinadas por autoridades competentes, circulares normativas, comunicados técnicos, instruções normativas, portarias, decretos etc.). [03]

Disso deflui que o menor dos atos normativos de natureza administrativo-tributária pode, validamente, instituir o dever formal de prestar ou franquear a obtenção pelo Fisco de informações que não sejam constitucionalmente protegidas e instituir apenações pecuniárias para os casos de descumprimento dessa obrigação.

Ocorre que todo poder ilimitado quase sempre deságua em acomodação ou em excessos perpetrados pelos detentores de tal mandato -- no caso, as Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais.

Devido ao comodismo estatal, exigem-se dos contribuintes informações de toda ordem, muitas das quais poderiam ser facilmente extraídas pelo trabalho de cruzamento de dados já disponíveis em seus bancos informativos, bastando para tanto: 1) a integração das máquinas das fazendas públicas, dos seus cadastros e bancos de dados, adotando-se a sintonia fina na troca de informações; 2) modernização dos seus parques informativos (hardware), dos seus sistemas (software) e dos seus métodos de trabalho (melhor treinamento e gestão de pessoal).

O excesso perpetrado pelas formas revela-se por várias medidas, a saber:

I – Pela edição de número desarrazoado de normas de todos os quilates e matizes que exigem dos contribuintes o cumprimento dos mais diversos tipos de deveres formais, gerando um custo excessivo de contratação de serviços contábeis e de orientação jurídica destinados, quase que exclusivamente, ao acompanhamento e ao cumprimento das dezenas de obrigações acessórias a que estão sujeitos os contribuintes brasileiros. Há casos em que os serviços contábeis contratados para a apuração do imposto e para a prestação de informações de interesse do Fisco têm um custo maior que o próprio imposto a pagar, ou seja, é mais caro ao contribuinte cumprir as obrigações acessórias do que a obrigação principal de pagar o imposto devido.

II – Pela imposição de sanções pecuniárias tão gravosas que podem inviabilizar um empreendimento produtivo – como exemplo, cite-se a obrigação de apresentação da Declaração de Informações sobre Atividade Imobiliária – DIMOB.

"A pessoa jurídica que deixar de apresentar a Dimob no prazo estabelecido, ou que apresentá-la com incorreções ou omissões, sujeitar-se-á às seguintes multas:

I - R$ 5.000,00 (cinco mil reais) por mês-calendário, no caso de falta de entrega da Declaração ou de entrega após o prazo;

II - cinco por cento, não inferior a R$ 100,00 (cem reais), do valor das transações comerciais, no caso de informação omitida, inexata ou incompleta". [04]

Essas imposições de obrigações tributárias acessórias sem limites asfixiam os pequenos empreendimentos, causam aumento da informalidade e do Custo Brasil, que, por seu turno, afeta gravemente a competitividade das empresas de porte médio e grande quanto ao acesso aos mercados internacionais.

É bem verdade que o sistema tributário da Constituição de 1988, no qual são previstas competências impositivas de obrigações principais, necessita de urgente reformulação, tal qual foi feito pela Emenda Constitucional n. 18 de 1965 [05], mas nenhuma reforma tributária terá sucesso se não forem instituídas limitações ao poder de criar obrigações formais, uma vez que são essas que consomem tempo e tornam a administração das obrigações de natureza tributária onerosa aos empreendedores.

Há um estudo demonstrando que o Brasil é o campeão mundial no gasto de tempo com cumprimento de obrigações acessórias. Segundo o mesmo estudo, esse esforço pode consumir até 5% da receita bruta de um empreendimento e inviabilizar a competição pelo mercado externo em ramos cujas margens de lucro são baixas.

A realização dos procedimentos tributários solicitados por instituições como Receita Federal, Previdência Social, secretarias das fazendas estaduais e municipais, consome atualmente 5% da receita bruta das empresas e cerca de 108 dias por ano. O levantamento foi feito pelo especialista em soluções fiscais e diretor da empresa de softwares Lumen IT, Werner Dietschi, com 120 empresários em todo o País. [06]

Nesse cenário de exigências desenfreadas de informações e outras prestações formais, deu-se um primeiro passo rumo à simplificação com a publicação da Lei Complementar nº 123 de 2006, que, em seus artigos 25 e 26, estatui, como deveres acessórios das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte enquadradas no Estatuto, os seguintes:

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a)Entrega de Declaração anual declaração única e simplificada de informações socioeconômicas e fiscais;

b)Emitir documento fiscal de venda ou prestação de serviço, admitindo-se para empreendimentos com faturamento anual de até R$ 36.000,00 a requisição gratuita de Notas Fiscais Avulsas nas Fazendas Estaduais ou municipais, conforme o caso;

c)Manter em boa ordem e guarda os documentos que fundamentaram a apuração dos impostos e contribuições devidos e o cumprimento das obrigações acessórias a que se refere o art. 25 desta Lei Complementar enquanto não decorrido o prazo decadencial e não prescritas eventuais ações que lhes sejam pertinentes;

d)Escriturar o livro caixa, se faturar mais de R$ 36.000,00 por ano;

e)Manter controle simplificado de vendas e/ou prestação de serviços, independente de emissão de Notas Fiscais, podendo esse demonstrativo ser extraído diretamente do controle de caixa, dos blocos de pedidos, caderno de controle de cheques pré-datados ou espelhado nas notas fiscais avulsas gratuitas anteriormente mencionadas.

Porém, mesmo essa norma simplificadora não conseguiu se livrar por completo dos ranços do passado. Em diversos dispositivos desse Estatuto, além dos artigos 25 e 26 já mencionados, abrem-se brechas para imposições de obrigações acessórias já existentes no sistema anterior e para a imposições de novas obrigações formais, a saber:

1) Art. 26 - § 3º A exigência de declaração única a que se refere o caput do art. 25 dessa lei Complementar não desobriga a prestação de informações relativas a terceiros. Exemplo: Declaração de Informações sobre Atividade Imobiliária – DIMOB, Declarações de Retenções de ISS, de retenções IRPF - DIRF etc.

2) Art. 26 - § 4º As microempresas e empresas de pequeno porte referidas no § 2º deste artigo ficam sujeitas a outras obrigações acessórias a serem estabelecidas pelo Comitê Gestor, com características nacionalmente uniformes, vedado o estabelecimento de regras unilaterais pelas unidades políticas partícipes do sistema.

3) Art. 52. O disposto no art. 51 dessa lei complementar não dispensa as microempresas e as empresas de pequeno porte dos seguintes procedimentos:

III – apresentação da Guia de Recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e Informações à Previdência Social – GFIP;

IV – apresentação das Relações Anuais de Empregados e da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS e do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – CAGED.

Nesse ponto, incorreu o legislador em contradição, pois a simples manutenção do dever formal de apresentar as declarações citadas no art. 52 retrocitado gera custo adicional ao pequeno empreendedor, pois, em razão da complexidade de preenchimento das declarações e de sua periodicidade de entrega, há que se contar com a assistência de um profissional contábil, sob pena de o empresário ter que abandonar seus afazeres para se dedicar ao cumprimento de obrigações acessórias, o que por certo não é possível.

Assim, por todo exposto, conclui-se que urge a transformação da obrigação tributária acessória em obrigação decorrente de lei em sentido formal e instituída segundo limites constitucionais preestabelecidos.

Se no passado obteve-se, a duras penas, a conquista das "limitações constitucionais ao poder de tributar", no presente deve-se buscar, urgentemente, a imposição de "limitações constitucionais ao dever de informar".


Notas

01 Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Magna_Carta.html. Acesso em 1 mai 2007.

02 Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/CodTributNaci/ctn.htm. Acesso em: 1 mai 2007.

03 Entende-se por Lei em sentido formal a votada em casa legislativa competente e segundo o rito próprio e por lei em sentido material qualquer ato normativo editado por autoridade competente segunda as formalidades prescritas em Direito Adminstrativo.

04 Pergunta sobre a Declaração Informações sobre Atividades Imobiliária – DIMOB. Disponível em: http://www.receita.fazenda.gov.br/principal/Informacoes/InfoDeclara/declaraPJ.htm. Acesso em: 6 mai. 2007.

05 Antes da reforma tributária introduzida pela Emenda Constitu-cional nº 18, de 1º de dezembro de 1965**, ou seja, no regime da Constituição de 1946, o sistema impositivo tributário se tinha completamente deteriorado.

06Burocracia emperra o avanço da economia. Jornal do Comércio.Economia - 18 de abril de 2007. Disponível em: http://www.ibracon.com.br/noticias/news.asp?identificador=2610. Acesso em 18 abr. 2007.

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Sobre o autor
Hélio Sabino de Sá

Servidor público em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÁ, Hélio Sabino. A ditadura das obrigações tributárias acessórias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1673, 30 jan. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10899. Acesso em: 23 dez. 2024.

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