Uma questão cultural complexa
Como foi possível identificar no tópico anterior, existia – e continua existindo – um conflito que vigorava entre os seres humanos em virtude de poder, riqueza, política ou ainda em razão da escassa – ou nenhuma – experiência de vida de uma sociedade. A partir da revolução industrial e alcançando o século XX, a preocupação com o meio ambiente toma contornos distintos e abrange questões culturais complexas, de difícil superação: de um lado, a supremacia de uma postura ética de caráter antropocêntrico, individualista e imediatista e, de outro, o problema da relação do ser humano, ciência, tecnologia e mercados capitalistas, caracterizada pela crença na infalibilidade do conhecimento científico e na perpetuidade do progresso tecnológico em virtude do crescimento dos investimentos em todo o planeta.
O que parece estar triunfando, talvez em definitivo, neste processo de imbricação dos mercados que se impõe em todas as regiões do mundo, independentemente das políticas que este ou aquele país venha a seguir, seria – em termos de uma radicalização do ideário clássico do individualismo possessivo (sic) – uma certa concepção de liberdade individual indiferente à percepção de limites (sic), de constrangimentos intransponíveis ao crescimento material e populacional no sistema-mundo (LEFF, 2002, p. 10).
O domínio da ciência e da tecnologia trouxe, por um lado, comodidade, progresso e desenvolvimento em um curto espaço de tempo; por outro lado, o uso inconsciente causou problemas desagradáveis a longo prazo, em razão da maneira como o homem utiliza a ciência e a tecnologia para interagir com o meio ambiente, como ocorreu na chamada "Revolução Verde", em 1950.
Na década de 1950, o atendimento da demanda acarretou inovações nas técnicas de produção de alimentos que vieram a ter efeitos colaterais inesperados e de largo alcance. Milhões de pessoas foram salvas da morte no Terceiro Mundo pelo último milagre especialista, a chamada ‘Revolução Verde’, que introduziu variedades novas e altamente produtivas de cereais e arroz e propiciou saltos espetaculares na produção de alimentos. As novas estirpes solucionaram uma variedade de problemas locais devido à sua relativa insensibilidade às diferenças de solo e clima, extremamente variados em áreas semitropicais.
(...)
O problema com as variedades da Revolução Verde é que esta ignorava a experiência dos agricultores do Terceiro Mundo com seu meio ambiente local e, ao contrário, levava-os a se apoiarem fortemente em fertilizantes oriundos do Primeiro Mundo.
(...)
Entre 1970 e 1973, a armadilha estava montada. Com o grande aumento do preço do petróleo, os preços dos fertilizantes quadruplicaram enquanto o produto da Revolução Verde apenas dobrou. Aconteceu o mesmo em 1980. Enquanto isso, de 1950 a 1975, a área de terra cultivada em todo o mundo cresceu apenas um quinto, enquanto o uso global de fertilizantes caros cresceu sete vezes (BURKE & ORNSTEIN, 1998, p. 264-266).
Embora não se possa atribuir a responsabilidade pelos danos ambientais somente ao capitalismo, é notório, como evidencia Burke & Ornsten, que o investimento em tecnologia com o objetivo de aumentar a produtividade agrícola dos países do chamado Terceiro Mundo, foi resultado de manobras capitalistas dos países do chamado Primeiro Mundo, visando ao lucro. Ou seja, o sistema capitalista é próspero, tendo em vista a infinidade de benefícios que traz ao homem moderno; entretanto, não se pode negar que aquele sistema colabora com o aumento da degradação ambiental, uma vez que a extração de recursos naturais constitui um dos motores que impulsionam o desenvolvimento social.
Essa evidência apenas vem confirmar a idéia inicial deste trabalho: a de que as más decisões tomadas pelo homem, em razão de algum motivo inserido nos quatro fatores apontados por Jared Diamond, são responsáveis pela devastação ambiental, pelo exaurimento dos recursos naturais e pelo aumento exacerbado da temperatura que hoje se constata no planeta.
Nesse sentido, o britânico Bertrand Arthur William Russell, um dos mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos do século XX, em sua obra O Elogio ao Ócio, alertou para o fato de que "A idéia de que as atividades desejáveis são aquelas que dão lucro constitui uma completa inversão da ordem das coisas" (RUSSELL, 2002, p. 17). Logo, extrair exageradamente recursos naturais de qualquer região do planeta e apontar tal atitude como sendo a principal atividade para angariar lucro e, por conseqüência, obter desenvolvimento, consistiria em afirmar que o homem substituiu seus valores fundamentais pelo valor expresso numa nota de dólar, ou ainda, por um título cambial.
Um exemplo dessa exploração sem limites de recursos naturais, com esteio no desenvolvimento humano, pode ser encontrado no mau uso da água.
A técnica de irrigação (...) mudou nossas atitudes, há cinco mil anos. Quando os primeiros sistemas de irrigação e suas técnicas de administração foram desenvolvidas na China, Egito, Mesopotâmia e no Vale do Indo, eles alimentaram e organizaram concentrações populacionais cada vez maiores, provocando o início da civilização.
Desde então, os engenheiros têm assegurado suprimentos de água sempre maiores (...) enormes volumes de água estão disponíveis nos reservatórios para a produção hidrelétrica e a irrigação; até mesmo os rios foram desviados para abastecerem países inteiros.
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Mas, no século XX, a demanda de água cresceu a tal ponto que as fontes perenes estão sendo drenadas mais rápido do que a natureza é capaz de repor. O resultado disso é que a água é hoje talvez o recurso mais escasso da Terra (BURKE & ORNSTEIN, 1998, p. 267).
Outro exemplo que pode elucidar ainda mais a idéia aqui defendida se concentra no aumento da densidade demográfica e o conseqüente desmatamento, seja para a produção agrícola, seja para produzir pastagem para a produção pecuária, gerando como resultado a devastação da fauna, da flora e a criação do que Burke & Ornsten chamam de "ilhas" biológicas isoladas.
Em países densamente florestados como o Brasil, o corte-e-queima da expansão agrícola e a apropriação de terras (...) são as causas de grandes desflorestamentos.
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Com o desaparecimento das florestas, ecossistemas inteiros estão sendo transformados em "ilhas" biológicas isoladas. E a danificação de suas ligações vitais com outros ecossistemas estão causando o colapso da fauna e da flora.
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Todas essas causas e efeitos do corte-e-queima descontrolado com as quais fomos indulgentes ao longo da história trouxeram resultados lamentáveis. Mas um fator está sempre presente, tornando as coisas ainda piores: o crescimento populacional. Ironicamente, o aumento da quantidade de seres humanos era até bem pouco tempo considerado como o maior dos grandes sucessos, porque assinalava o surgimento de métodos cada vez mais eficazes no combate contra a morte causada pela fome e pela doença. (BURKE & ORNSTEIN, 1998, p. 273, 274 e 276).
A análise acurada de todos os exemplos aqui elencados retorna à idéia apresentada por Bertrand Russel, já citada acima, de que ter em mente o fato de as atividades que mais se desejam são aquelas que dão lucro constitui plena inversão da ordem das coisas. E essa inversão atinge, principalmente, os valores fundamentais consagrados na Constituição Federal de 1988 e diretamente ligados aos direitos humanos.
Leonardo Zagonel Serafini (in PIOVESAN, 2006, p. 148), defende a idéia de que uma abordagem separada entre a proteção ao meio ambiente e a proteção dos direitos humanos constitui um grave erro de compreensão ao estudioso, pois agindo assim, ele "desconsidera o fato de que a maior parte dos problemas ambientais vivenciados atualmente decorrem de graves violações de direitos humanos".
Celso Antônio Pacheco Fiorillo analisa a questão ambiental sob o ponto de vista do princípio da dignidade humana, visto que uma das condições para se ter uma vida digna consiste na satisfação dos direitos básicos elencados na Constituição Federal, entre eles, o direito ao meio ambiente equilibrado.
Insere-se, pois, neste ponto, a discussão acerca da relação existente entre o direto a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e o direito à vida e à saúde, uma vez que, conforme argumenta Serafini (in PIOVESAN, 2006, p. 147) "o comprometimento de um direito humano pode impedir a fruição de outros", tendo em vista que "a existência de um meio ambiente ecologicamente equilibrado em um contexto onde a população não consegue exercer os direitos básicos do ser humano, tais como: acesso à água, ao alimento, a uma moradia salubre, não tem sentido no atual contexto social global" (in PIOVESAN, 2006, p. 149), o que se fundamenta também no Princípio 1º da Declaração de Estocolmo (1972) e do Rio de Janeiro (1992).
O pensamento de Serafini não destoa da argumentação do embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, o qual afirma que
(...) do ponto de vista ambiental, a pobreza é fator de poluição e de degradação ambiental. A poluição ocasionada pela pobreza resulta, em grande parte, da falta de instalações sanitárias, de esgotos, de tratamento de rejeitos orgânicos, que acabam atingindo o mar através dos rios.
Neste sentido, segundo o embaixador, há que se considerar que a
(...) pobreza não se limita ao aspecto econômico, pois se estende a todos os aspectos da vida do homem: fraqueza física e enfermidades, falta de acesso aos serviços essenciais, falta de informação, controle limitado sobre os recursos, subordinação, exploração por poderes sociais e econômicos mais fortes, vulnerabilidade a estresse, falta de segurança, marginalização social e cultural. (...)
Dessa forma, destaca Fábio Konder Comparato que "a geração presente tem o dever fundamental de garantir às futuras uma qualidade de vida pelo menos igual à que ela desfruta atualmente. Mas esse poder dever (...) seria despido de sentido se não se cuidasse de superar, desde agora, as atuais condições de degradação ambiental em todo o planeta, degradação essa que acaba por prejudicar mais intensamente as massas miseráveis dos países subdesenvolvidos".
Verifica-se, neste diapasão, a nítida inter-relação entre os direitos humanos e o direito ao meio ambiente equilibrado. Considere-se, contudo, que embates podem eclodir desta interligação, requerendo do estudioso uma apurada compreensão acerca da "inclusão de cada um desses direitos no contexto dos instrumentos legais de proteção da vida" (in PIOVESAN, 2006, p. 152).
Assim, tal como salientado no início deste trabalho, deve-se ressaltar que
(...) No direito positivo brasileiro, (...), a proteção jurídica do meio ambiente é do tipo antropocêntrica alargada, pois nesta verifica-se um direito ao meio ambiente equilibrado, como bem de interesse da coletividade e essencial à sadia qualidade de vida. Além disso, a tutela do meio ambiente está vinculada não à interesses imediatos e, sim, aos citados interesses intrageracionais. Não há como refutar, dessa forma, que no sistema jurídico brasileiro, além da proteção à capacidade de aproveitamento do meio ambiente, simultaneamente, visa-se a tutelar o mesmo, para se manter o equilíbrio ecológico e sua capacidade funcional, como proteção específica e autônoma, independente do benefício direto que se advenha ao homem" (MORATO LEITE & AYALA, 2002, p. 48-49).
Isto implica na concordância com Noam Chomsky, segundo o qual
"Os seres humanos são a única espécie que tem história. Se tem também um futuro não está tão claro. A resposta está na perspectiva de movimentos populares firmemente enraizados em todos os setores da população, dedicados aos valores que foram reprimidos ou postos à margem da ordem social e política existente: comunidade, solidariedade, preocupação com o frágil meio ambiente que deverá sustentar as gerações futuras, trabalho criativo sob controle voluntário, pensamento independente e verdadeira participação popular em todos os aspectos da vida." (apud, BURKE; ORNSTEN, 1998, p. 283)
Ao Direito, portanto, coloca-se, mais uma vez, o desafio de buscar regulamentar a atividade humana, com vistas à manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, única forma de assegurar uma sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações.
Conhecendo os dois institutos: Zoneamento e EIA
A preocupação com a preservação do meio ambiente constitui, concomitantemente, uma questão local e uma questão global; trata-se de uma questão local pois, conforme explicado no capítulo anterior, uma das maneiras para se obter êxito na preservação ambiental consiste em estar próximo ao ecossistema que se deseja proteger, ou melhor, consiste na proximidade entre o responsável pela preservação e o ecossistema a ser preservado; ao mesmo tempo, constitui uma questão global porque as decisões tomadas em âmbito local repercutem além das fronteiras geopolíticas, influenciando, inclusive, a economia das nações.
Esse ímpeto, neste século XXI, é encontrado em todos os países, justificando a criação de inúmeros organismos internacionais. Entre estas, é possível destacar a agência da Organização das Nações Unidas – ONU – responsável por catalisar a ação internacional e nacional para a proteção do meio ambiente e a promoção do desenvolvimento sustentável – PNUMA [02] – a qual criou, em 1988, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, IPCC na sigla em inglês, cujo objetivo era "avaliar as informações científicas, técnicas e sócio-econômicas existentes acerca das mudanças climáticas, seus potenciais impactos e as possibilidades de adaptação do homem e de diminuição de tais impactos (...) [03]" (online, ONU, 2007).
De acordo com a ONU, o IPCC "será finalizado com o 4° relatório de avaliação das Mudanças Climáticas 2007, também conhecido como AR4. O relatório, que tem origem em três grupos de trabalho, oferece uma ampla e atualizada avaliação sobre as mudanças climáticas" [04] (online, ONU, 2007).
Esse painel, promovido pela ONU, é divido em três Grupos de Trabalho, conhecidos por "GT". O primeiro Grupo de Trabalho (GT-I), é responsável por estudar os aspectos científicos das mudanças climáticas; ao segundo Grupo (GT-II), incumbe avaliar os impactos produzidos por tais alterações no clima, bem como investigar a capacidade do homem de se adaptar a elas; enquanto o terceiro Grupo (GT-III) cuidará de fatores científicos, técnicos, ambientais e sócio-econômicos capazes de auxiliar na mitigação daquelas mudanças.
Cada um dos Grupos de Trabalho ficou incumbido de lançar um relatório de atividades; destes três, resultará um quarto relatório sobre as alterações climáticas, o qual será avaliado no mês de novembro de 2007, na cidade de Valência, na Espanha.
Esse último relatório tem por objetivo expor um amplo quadro acerca das mudanças climáticas ocorridas no planeta. As informações constantes desse documento, certamente, influenciará as atividades humanas no que tange à manutenção do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Diante desse novo paradigma, é de responsabilidade de todos os profissionais de todas as áreas do conhecimento, bem como dos cidadãos de todo o planeta, o auxílio à proteção ao meio ambiente, de forma a assegurar o desenvolvimento sustentável e o equilíbrio ecológico para as futuras gerações. Esse auxílio cabe, inclusive "[...] ao Direito, como instrumento regulador da atividade humana, [...] a necessidade de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado [...]" (IBCCRIM, 2007, p. 01).
Não se espera que as informações contidas no relatório que será apresentado pela ONU revelem situações de equilíbrio ambiental; pelo contrário, as estimativas não são positivas [05]. Espera-se que sejam tomadas medidas repressivas, ou seja, de combate à degradação ao meio ambiente.
No entanto, para aqueles ecossistemas que ainda não foram degradados – ou não foram devastados em sua totalidade – é possível estabelecer políticas de preservação. Nesse sentido, o Direito pode exercer um papel importante, através da efetivação das regras de direito ambiental, notadamente, da implementação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, previsto no art. 225, § 1º, IV da Constituição Federal, bem como do instituto do zoneamento.