REFLEXÕES FINAIS
O sistema de justiça criminal deve direcionar seus atos e funcionalidade com primazia para o atendimento a vontade suprema do povo. Por isso, num sistema de proteção, o sistema de garantismo penal deve volver seus olhos em especial, para a tutela dos interesses da vítima e não somente para atender aos delinquentes. A proteção da vítima é um viés daquilo que chamamos de direito penal de terceira via. O livre arbítrio concede ao cidadão a opção de criar coisas virtuosas ou pecaminosas. Se o cidadão opta em desviar seus passos por caminhos tortuosos, obviamente, deve o recalcitrante sofrer as nefastas consequências pelo mau uso da liberdade.
O tema das restrições ou extinções das saidinhas temporárias no Brasil nasce do Movimento punitivista da América Latina, uma política linha dura, fruto das medidas tomadas pelo presidente de El Salvador Nayib Bukele, que endureceu as penas aos criminosos, criando um mega presídio, Centro de Confinamento do Terrorismo, com capacidade para recolher algo em torno de 40 mil presos.
No Peru, as autoridades recrudesceram as penas para os crimes de roubo, dado a crescente onda dos delitos patrimoniais naquele país. Por todo lado há um momento para aumento das penas para criminosas o que se denominou a chamar-se movimento bukelismo.
O tema vem à tona no Brasil em face da morte do Sargento Roger Dias em Belo Horizonte no início do ano de 2024, quando de uma abordagem a um criminoso que estava gozando do benefício da saidinha temporária e não havia retornado à prisão. O policial militar acabou sendo assassinado covardemente por esse criminoso que se encontra nas ruas da capital em face da benevolência da lei de execução penal.
Com a ocorrência de episódio gravíssimo em Minas Gerais, várias autoridades políticas utilizaram-se desse fato para fazerem palanque político, inclusive autoridades do Poder Executivo afirmando que havia proibido as saidinhas temporárias no período do carnaval como se tivesse competência para tal finalidade.
O instituto da saidinha temporária não é matéria exclusiva da legislação brasileira. Vários países têm previsão em seus ordenamentos jurídicos, como Reino Unido, Irlanda, Portugal, Itália, França e Espanha, mas cada uma com adotando um formato diferenciado. Há legislações que proíbem esses benefícios em datas festivas, como a Irlanda e o Reino Unido; em Portugal o prazo não é certo como no Brasil, que adota um prazo de sete dias, renovável mais quatro vezes ao ano; outros critérios em razão ao cumprimento da pena também são adotados em Portugal. Na Itália, por sua vez, a concessão depende do comportamento do preso, e ainda que sua conduta não seja socialmente perigosa, além de um prazo maior para a sua concessão. Na França, uma previsão diferente. A autoridade concedente é o diretor do estabelecimento prisional, que caso de indeferimento, o interessado pode recorrer ao juiz de execução penal.
Antes da novíssima Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024, no Brasil, a concessão do benefício é ato privativo do Juiz de Execução Penal, artigo 66, inciso IV, da LEP, ouvidos o Ministério Público e a autoridade administrativa do estabelecimento penal. Assim, conforme dicção do artigo 122 da LEP, os condenados que cumprem pena em regime semiaberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos: I - visita à família; II - frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução; III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
Entrementes, com os vetos dos incisos I e III do artigo 122 da LEP, as hipóteses de cabimento permanecem as mesmas para as três situações. A autorização será concedida por ato motivado do Juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a administração penitenciária e dependerá da satisfação dos seguintes requisitos:
I - comportamento adequado;
II - cumprimento mínimo de 1/6 (um sexto) da pena, se o condenado for primário, e 1/4 (um quarto), se reincidente;
III - compatibilidade do benefício com os objetivos da pena.
A autorização será concedida por prazo não superior a 7 (sete) dias, podendo ser renovada por mais 4 (quatro) vezes durante o ano. O benefício será automaticamente revogado quando o condenado praticar fato definido como crime doloso, for punido por falta grave, desatender as condições impostas na autorização ou revelar baixo grau de aproveitamento do curso. A recuperação do direito à saída temporária dependerá da absolvição no processo penal, do cancelamento da punição disciplinar ou da demonstração do merecimento do condenado.
Há quem faça servas críticas às medidas restritivas ao instituto da saidinha temporária, alegando que a sua extinção afetaria o processo de ressocialização do preso, ao que não tem fundamento jurídico, pois a melhor política de reintegração social passa pela oportunidade do trabalho do preso, interno ou externo, com as bases da remição da pena pela atividade laboral, pelos estudos, pela leitura de obras literárias e outras medidas existentes na Lei de Execução Penal.
A saidinha temporária sempre foi um calo na vida da sociedade e um complicador processual dos detentos; a grande maioria não retorna aos presídios e em liberdade acabam praticando novos delitos, em especial, porque a justiça brasileira, benevolente e materna sempre teve o costume de conceder esse benefício em datas comemorativas, Natal, Réveillon , Dia das Mães, Dia dos Pais, Semana Santa, Dia das Crianças , muito embora não tivesse nenhuma norma indicando essa concessão em datas festivas. Onde há grande concentração de pessoas, acaba sendo um atrativo para o cometimento de novas infrações penais, e dessa forma, não entendo prejudicar o detento as restrições legislativas do benefício à saidinha temporária, restando ainda outros benefícios processuais, como as penas restritivas de direito, recolhimento domiciliar, suspensão condicional do processo e da pena, livramento condicional, acordo de não persecução penal, remição penal, saídas temporárias para frequentar cursos, progressão de regime de cumprimento de penas. Se for em Minas Gerais, existe ainda a possibilidade de concessão de férias anuais aos presos.
Diante de tudo isso, ainda deve considerar a existência da ADPF 347, ação constitucional (arguição de descumprimento de preceito fundamental) proposta pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, que pediu ao STF a declaração da existência de um estado de coisas inconstitucional no sistema prisional brasileiro, tendo em vista o cenário de grave e massiva violação de direitos fundamentais dos presos. Pede, ainda, a determinação de um conjunto de medidas para reduzir a superlotação das prisões e promover a melhoria das condições de encarceramento. O julgamento ocorreu em 04 de outubro de 2023.
Nesse sentido, por unanimidade dos votos, o Plenário do STF reconheceu a existência de um cenário de violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, em que são negados aos presos, por exemplo, os direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho. Afirmou-se que a atual situação das prisões compromete a capacidade do sistema de cumprir os fins de garantir a segurança pública e ressocializar os presos. Com o objetivo de superar tal situação, o STF determinou um conjunto de medidas a serem adotadas pelo Poder Público. Entre tais medidas, fixou-se prazo para que a União, Estados e Distrito Federal, com participação do CNJ, elaborem (em até 6 meses) e executem (em até 3 anos) planos para resolver a situação em suas respectivas unidades. Os prazos para os Estados e o Distrito Federal correrão após a aprovação do plano federal.1
Em termos finais, percebe-se que o projeto de lei foi sancionado parcialmente pela presidência da República, que manteve a saidinha temporária de presos para as hipóteses já existentes, ou seja, para visita a familiares, frequência a curso supletivo profissionalizante, bem como de instrução do 2º grau ou superior, na Comarca do Juízo da Execução e participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social.
Certamente, dentro do prazo legal, a matéria do veto retornará ao Congresso Nacional, a teor do artigo 66, § 4º da Constituição da República para análise, em sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, com grandes possibilidades para a cassação do veto.
Muito certo é que se houver a cassação da parte vetada, restabelecendo a ideia do projeto de lei original, a matéria deverá ser arguida de inconstitucionalidade junto ao STF, cuja decisão já se imagina qual seja o seu teor. Deverá ser julgada inconstitucional sob alegação que a lei fere com pena de morte o princípio fundamental da individualização da pena, eis que o juiz é quem decide e sabe quais critérios sejam eficazes para a individualização da pena visando alcançar a tão sonhada ressocialização do preso.
A meu sentir, o Brasil possui uma legislação paternalista e ofensiva aos interesses sociais. O criminoso deve fazer um grande esforço para se manter preso nos dias atuais diante das leis em vigor; e quando a lei o alcança, surgem as benesses processuais que logo o colocam novamente em liberdade nas ruas. Uma população prisional acima de 852 mil presos não significa necessariamente que o Brasil prende muito e mal; talvez traduz o pensamento de que vivemos numa sociedade bastante criminosa, e mais que isso, o que é mais grave, assistimos da arquibancada um Estado omisso, cruel e sanguinário, tudo isso, diante de intérpretes benevolentes, militantes tendenciosos que consideram o criminoso como coitadinho ou vítima da sociedade.
Diante dessa crueldade sem igual, uma lei sem efeito prático, resta-nos um pedido de perdão aos familiares e amigos do Sargento Roger Dias que foi brutalmente assassinado por um beneficiário de uma saidinha temporária que não retornou ao presídio no final do benefício, e daqui a pouco esse mesmo delinquente estará novamente nas ruas fazendo novas vítimas.
Familiares de vítimas do crime choram; o filho que sente a falta dos país; a mãe que padece pela falta do filho assassinado; passam por tratamento psiquiátrico; criminosos exibem imagens com posse de armas fogo de grosso calibre, ameaçando o próprio Estado; tiros de fuzis riscando os céus; delinquentes desafiando a polícia; gestores amadores a frente de órgãos públicos de segurança; vendedores de sonhos, de cursos, uma vergonha nacional com a estampa de falência; marcas de tiros por todo lado, sangue jorrando nas calcadas; vítimas decapitadas, olhos arrancados; identidade e marcas do crime organizado desenhadas em muros e paredes; inocentes mortos por balas pedidas; tribunais benevolentes; autoridades públicas militantes; um filme de terror exibido todos os dias no país, de Nanuque a São Paulo.
Vivemos um turbilhão de ameaças concretas, um massacre psicológico; sem lenços e sem documentos, sem esperança e sem proteção de um Estado exangue e sem forças de reação; um Estado que não valoriza os seus policiais; profissionais doentes, síndrome do pânico e estágios avançados de depressão; profissionais abandonados e sem razão; é correto afirmar que viver no Brasil é perigoso; são 98% de chance de o cidadão ser vítima de um criminoso neste país da impunidade. E agora uma legislação materna e condescendente diz que extinguir o benefício da saidinha temporária é atentar contra a ressocialização do preso. Coitado do povo trabalhador que tem seus direitos agredidos por criminosos desalmados; e nem adianta cassar o veto presidencial. Amanhã o STF vai declarar a extinção da saidinha temporária INCONSTITUCIONAL e nas próximas datas comemorativas os criminosos estarão novamente nas ruas, assaltando e roubando, arrancando a paz do cidadão trabalhador, exigindo da polícia mais esforço para tentar prender novamente esses delinquentes.
Portanto, a novíssima lei 14.843, de 2024 pouco ou quase nada acrescenta para o sistema de controle social; pelo contrário, demonstra de forma cabal e insofismável a falência do sistema social, evidencia como o dinheiro do pagador de impostos é jogado fora no esgoto, pois desde de 2011 o projeto caminhava no Congresso Nacional, talvez a passos de tartaruga, mais lento que o “bicho-preguiça” da Praça Tiradentes de Teófilo Otoni, isto porque, treze anos depois uma lei é aprovada e publicada para dizer ao povo brasileiro que se sancionada poderá haver o enfraquecimento dos laços afetivo-familiares dos presos; para afirmar filosoficamente que a projeção temporal de execução da pena exige, do Estado, atuação proativa para a obtenção do equilíbrio entre a privação da liberdade de quem infringiu a lei penal (ação punitiva) e a sua progressiva reintegração (ação preventiva). Vivemos num cenário de falência múltipla dos órgãos, num país dos escândalos, da corrupção pandêmica e da vergonha. E quando aparece alguém na Administração Pública, sério e destemido, querendo consertar essa bagunça, vem logo uma ordem de cima dizendo “pega esse idiota e enterra”.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei de Execuções Penais. Lei nº 7.210, de 84. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7210.htm. Acesso em 22 de março de 2024.
BRASIL. Código Penal. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 22 de março de 2024.
BRSIL. Lei nº 14.843, de 11 de abril de 2024. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/lei/L14843.htm. Acesso em 11 de abril de 2024.
Notas
1 ADPF 347 Violação massiva de direitos fundamentais no sistema carcerário brasileiro. Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF347InformaosociedadevF11.pdf.