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Resposta à OAB/RJ: a liminar do exame de ordem

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01/02/2008 às 00:00
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6. A inconstitucionalidade da delegação ao Conselho Federal da OAB

A Procuradoria da OAB/RJ abordou, também, a questão da inconstitucionalidade da delegação contida no art. 8º, §1º, da Lei 8.906/94.

Disse, então, que:

"deve ser feita a distinção entre os regulamentos autônomos e os regulamentos de execução. Os regulamentos autônomos, como o próprio nome já denota, são aqueles que podem ser editados sem uma lei anterior que o preveja, explícita ou implicitamente. Exercem o mesmo papel da lei em sentido estrito, eis que inovam na ordem jurídica, encontrando limites apenas no texto constitucional. É o caso das famigeradas medidas provisórias. Já os regulamentos de execução servem para proporcionar a atuação prática de um dispositivo legal que, por necessidade de detalhamento ou por excessivamente técnico, preferiu-se delegar a outro órgão de caráter público (que não o próprio Congresso), que detenha a capacidade para fazê-lo de forma escorreita. Destinam-se, em suma, a executar a lei sem contrariá-la. O provimento 109/2005 do Conselho Federal da OAB indiscutivelmente enquadra-se, nessa dicotomia, na segunda espécie: a dos regulamentos de execução". (grifos nossos)

E, logo em seguida, afirmou:

"Ora, os dispositivos constitucionais colacionados na inicial (art. 84, inciso IV, inciso VI e parágrafo único) dizem respeito tão-somente à primeira espécie de regulamento: o regulamento autônomo. E pode-se entender perfeitamente o motivo para a restrição de competência para sua edição: como dito, os regulamentos autônomos inovam na ordem jurídica, ostentando força de lei. Daí a necessidade de comedimento em sua edição e delegação a outros órgãos da administração pública, que não a presidência da república."

Mais uma vez, enganou-se redondamente a Procuradoria da OAB/RJ. Em primeiro lugar, porque os regulamentos autônomos, que podem inovar a ordem jurídica, são apenas aqueles previstos no inciso VI do art. 84 da Constituição Federal. Eles versam, apenas, sobre "organização e funcionamento da administração federal" e sobre "extinção de funções e cargos públicos". Trata-se de uma inovação introduzida pela Emenda Constitucional nº 32/2001, uma oitava espécie normativa, o decreto autônomo, que não se limita a "regulamentar as leis, para a sua fiel execução", como os regulamentos de execução, previstos no inciso IV, "in fine", do art. 84 da Constituição Federal.

As "famigeradas medidas provisórias", a que se refere a Procuradoria da OAB/RJ, não são regulamentos autônomos, absolutamente. Que absurdo! São atos normativos primários, são leis, embora provisórias.

Vejamos o art. 59 da Constituição Federal:

"O processo legislativo compreende a elaboração de:

I-emendas à Constituição;

II-leis complementares;

III-leis ordinárias;

IV-leis delegadas;

V-medidas provisórias;

VI-decretos legislativos;

VII-resoluções.

Pela simples leitura desse dispositivo, verifica-se que: (1) as medidas provisórias são leis, têm força de lei, embora ainda dependam de uma aprovação posterior, pelo Congresso Nacional; (2) todos esses instrumentos, acima enumerados, e agora também o decreto autônomo, já referido, têm força de lei, para os efeitos do inciso II do art. 5º da Constituição Federal: "ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei"; (3) o outro instrumento, de que pode dispor o Presidente da República, para a edição de normas primárias, é a lei delegada, que é elaborada por ele, mas depende de uma delegação do Congresso Nacional, feita através de uma resolução.

Não é verdade, também, que "os dispositivos constitucionais colacionados na inicial (art. 84, inciso IV, inciso VI e parágrafo único) dizem respeito tão-somente à primeira espécie de regulamento: o regulamento autônomo", (...) "que inova a ordem jurídica, ostentando força de lei", como afirmou a Procuradoria da OAB/RJ. Basta que os ilustres Procuradores leiam, com atenção, o inciso IV, in fine, do art. 84 da Constituição Federal: "expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução".

Não se trata, absolutamente, de inovar a ordem jurídica. Até esta data, ainda estamos respeitando, no Brasil, o princípio da legalidade, que qualquer acadêmico da 2ª série de nossos cursos jurídicos deve conhecer.

Trata-se, portanto, de uma enorme confusão, típica de quem não tem muita intimidade com o nosso processo de elaboração legislativa. O inciso VI trata do regulamento autônomo, conforme já explicado. Mas o inciso IV, "in fine", do art. 84, trata do regulamento de execução, ou seja, aquele que se destina a "regulamentar as leis para a sua fiel execução", competência privativa, exatamente, do Presidente da República, que somente pode ser delegada aos Ministros de Estado, e nunca ao Conselho Federal da OAB, como se observa pela simples leitura do parágrafo único do art. 84 da Constituição Federal, já citado.

Em suma: o poder regulamentar do Presidente da República é indelegável ao Conselho Federal da OAB, quer se trate do regulamento de execução, quer se trate do regulamento autônomo.

A jurisprudência do STF, transcrita pela Procuradoria da OAB/RJ, serve apenas para comprovar a veracidade do que estamos afirmando: os regulamentos de execução não estão sujeitos ao controle de constitucionalidade, porque não têm caráter normativo autônomo. Servem, apenas, para a "fiel aplicação das leis".

O controle de constitucionalidade se refere, apenas, à "lei ou ao ato normativo do poder público". Basta que se leia, por exemplo, o art. 97 da Constituição Federal - "Somente pelo voto da maioria absoluta dos seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial, poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público". O que não significa, é claro, que os juízes singulares não tenham competência, também, para a declaração da inconstitucionalidade de leis ou atos normativos do poder público.

Ou, então, poderia ser lido o art. 102, I, "a", da Constituição Federal – Compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I- processar e julgar, origináriamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal".

Não é verdade, como afirma a Procuradoria da OAB/RJ, que a "doutrina e jurisprudência nacionais afirmam, tranquilamente, a ampla possibilidade de delegação dos regulamentos de execução, a quaisquer órgãos de natureza pública que tenham a capacidade de regulamentar a matéria em jogo".

Ao contrário, existem sérias divergências, até mesmo, em relação ao poder regulamentar das agências reguladoras, que são autarquias, vinculadas, portanto, à administração pública, o que não é o caso da OAB, que não é autarquia e que não admite qualquer vinculação,nem controle, pelo Tribunal de Contas da União, por exemplo.

A citação de André Cyrino, feita pela Procuradoria da OAB/RJ, é uma pena, mas não tem nada a ver com a questão discutida, porque trata, apenas, da lei delegada, já referida anteriormente.

Quanto à citação de Vitor Nunes Leal, serve também para corroborar o que afirmamos: o regulamento, para ser válido e eficaz, deve servir para a fiel aplicação da lei, mas pode abrigar inovações expressa ou implicitamente permitidas pela lei.

Mas, ainda assim, insiste-se, o poder regulamentar compete privativamente ao Presidente da República, não podendo ser delegado ao Conselho Federal da OAB.

Em uma oportunidade, pelo menos, essa questão, da transferência do poder regulamentar, do Presidente da República, para o Conselho Federal da OAB, já foi levada até o Supremo Tribunal Federal, através da ADIn 1.194, ajuizada em 1.996, pela Confederação Nacional da Indústria, que argüiu a inconstitucionalidade de diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia, entre eles o do art. 78, que pretendeu transferir o poder regulamentar ao Conselho Federal da OAB, verbis: "art. 78 - Cabe ao Conselho Federal da OAB, por deliberação de dois terços, pelo menos, das delegações, editar o regulamento geral deste estatuto, no prazo de seis meses, contados da publicação desta lei".

O Supremo julgou inconstitucionais alguns desses dispositivos, mas acatou a preliminar de ilegitimidade ativa da Confederação Nacional da Indústria, em relação ao art. 78, por falta de pertinência temática. Em outras palavras: devido a certos detalhes técnico-processuais, o Supremo se negou a examinar o art. 78 do Estatuto da OAB, para decidir se ele é ou não inconstitucional, porque a Confederação da Indústria somente poderia argüir a inconstitucionalidade desse artigo se ficasse comprovada a pertinência temática, isto é, a existência de uma relação entre a norma impugnada e as atividades da requerente.


7. A OAB é uma Agência Reguladora?

A Procuradoria da OAB/RJ, em sua argumentação, chegou ao ponto de comparar a OAB com as Agências Reguladoras, "cujo papel principal é justamente regulamentar matérias que estão sob sua alçada técnica, fazendo-o, algumas vezes, até mesmo em detrimento de leis em sentido formal anteriores".

Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, na ADIn nº 1.668-DF, sendo relator o Min. Ricardo Lewandowski, que a delegação legislativa de competência normativa à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), como prevista no artigo 19, incisos IV e X da Lei nº 9.472, 1997, subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e uso dos serviços de telecomunicações:

"... a) quanto aos incisos 0IV e 00X, do art. 019, sem redução do texto, dar-lhes interpretação conforme à Constituição Federal, com o objetivo de fixar exegese segundo a qual a competência da Agência Nacional de Telecomunicações para expedir normas subordina-se aos preceitos legais e regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de telecomunicações no regime público e no regime privado, vencido o Ministro Moreira Alves, que o indeferia;..."

Em outras palavras, as normas baixadas pela Anatel devem respeitar a LEI do Congresso e o DECRETO do Presidente da República.

Evidentemente, o princípio da legalidade continua em vigor, e o Presidente da República continua sendo o titular de seu poder regulamentar, privativo, e delegável apenas nos termos do parágrafo único do já citado art. 84 da Constituição Federal.

Os doutrinadores costumam defender, realmente, que as agências reguladoras podem editar atos normativos, mas dizem que essas agências são órgãos e entidades da Administração que, em decorrência de expressa delegação legal, podem inovar a ordem jurídica, em matérias técnicas relativas à sua área de atuação.

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No entanto, existem condições para a válida edição dessas normas, a saber:

(1) a matéria a ser disciplinada pela agência reguladora não pode ter sido objeto de expressa reserva constitucional;

(2) que haja lei delegando expressamente a competência à agência reguladora;

(3) que a delegação seja restrita a matérias técnicas pertencentes à área de atuação da agência;

(4) que a lei, além de efetuar a delegação, estabeleça os parâmetros para o exercício da competência normativa da agência reguladora.

Não é o caso da OAB, portanto.

Em primeiro lugar, porque a matéria, o Exame de Ordem, como uma condição para o exercício da advocacia, foi objeto de expressa reserva constitucional. O art. 22 da Constituição Federal dispõe: "Compete privativamente à União legislar sobre: (...) condições para o exercício de profissões" (inciso XVI). Além disso, verifica-se que o parágrafo único desse mesmo artigo dispõe: "Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo". Portanto, a comparação tentada pela Procuradoria da OAB/RJ, forçadíssima, não se aplica à OAB, porque o Estatuto da OAB não é lei complementar e porque a OAB não é um dos Estados da Federação Brasileira.

Em segundo lugar, o Conselho Federal da OAB não pode editar atos normativos, porque embora exista a lei – o § 1º do art. 8º do Estatuto da OAB –, delegando expressamente a competência ao Conselho Federal da OAB, essa lei não estabeleceu qualquer parâmetro para o exercício da competência normativa da agência reguladora, ou seja, da OAB. A atividade regulamentar deve ser estritamente subordinada ao disposto na lei. O regulamento é um ato normativo inferior, "destinado à fiel execução da lei". No caso do Exame de Ordem, o Congresso Nacional deu "um cheque em branco" ao Conselho Federal da OAB.

Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro,

"agência reguladora, em sentido amplo, seria, no direito brasileiro, qualquer órgão da Administração Direta ou entidade da Administração Indireta com função de regular a matéria específica que lhe está afeta. Se for entidade da administração indireta, ela está sujeita ao princípio da especialidade, significando que cada qual exerce e é especializada na matéria que lhe foi atribuída por lei".

Não é o caso da OAB, evidentemente. O Supremo Tribunal Federal já decidiu, na ADI 3026-DF, julgada em 08.06.2006, que:

(...) 3. A OAB não é uma entidade da Administração Indireta da União. A Ordem é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro. 4. A OAB não está incluída na categoria na qual se inserem essas que se tem referido como "autarquias especiais" para pretender-se afirmar equivocada independência das hoje chamadas "agências". 5. Por não consubstanciar uma entidade da Administração Indireta, a OAB não está sujeita a controle da Administração, nem a qualquer das suas partes está vinculada. Essa não-vinculação é formal e materialmente necessária...." (grifos nossos)

Portanto, a OAB não é autarquia, e não é agência reguladora. Restaria aos defensores do Exame de Ordem, apenas, dizerem que a OAB é um dos Poderes Constituídos do Estado, e que pode legislar sobre todas as matérias de seu interesse: Exame de Ordem, anuidades dos advogados, honorários profissionais, prerrogativas da advocacia, mercado de trabalho, convênios com o Estado – SP, SC, etc.. – para a prestação de assistência jurídica aos carentes, etc...

Será que já não estamos assistindo à derrocada do sistema de separação de poderes, de que falavam Montesquieu, ou os "fathers" da Constituição norte-americana – Hamilton, Madison e Jay, no "Federalista" -, com uma classe, ou um grupo, unido pelos mesmos interesses, controlando todos os Poderes do Estado: "same hands" ???

A advocacia, diz a Constituição Federal, é uma das instituições essenciais à Justiça. O seu âmbito de atuação é, naturalmente, o Poder Judiciário. Não é possível, portanto, que o seu órgão de classe, a OAB, queira controlar, também, o Legislativo e o Executivo. Não é possível que a OAB desempenhe funções legiferantes, privativas do Congresso Nacional, nem que ela exerça o poder regulamentar, privativo do Presidente da República. Não é possível, também, que a OAB usurpe a competência do MEC e passe a fiscalizar, diretamente, as Instituições de Ensino Superior.

A OAB deve respeitar a Constituição. Deve, aliás, de acordo com o art. 44 do Estatuto, atuar em sua defesa...

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Resposta à OAB/RJ: a liminar do exame de ordem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1675, 1 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10905. Acesso em: 7 mai. 2024.

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