Introdução
O cotidiano do direito administrativo exige e pressupõe mudanças de diferentes ordens e órbitas. O enrijecimento da legislação administrativa é contrário ao próprio processo de evolução social. Acompanhar tais mudanças é um exercício diário e árduo, é o dever matinal de todo atuante administrativista, nos diferentes ramos e matérias que de maneira final, impactam na grande finalidade do direito, e em especial do Direito Administrativo, impactar, reger e controlar a vida em sociedade.
E com esse enredo, desde 2021, as compras públicas conheceram novas regras gerais de licitações, o advento da Lei Federal nº 14.133/2021, provocou rupturas profundas em alguns aspectos licitatórios, especialmente na fase interna das licitações, no planejamento, embora, em grande parte suas regras, tenha-se mantido a lógica pacificada pela legislação, doutrina e jurisprudências, pertinentes.
Ainda no processo de familiaridade, já que a Lei se tornou aplicável de modo isolado, apenas em 1º de janeiro de 2024, o momento de experimentação revela os reais desafios e as inconsistências práticas da aplicação da norma. Especialmente quando se tratam dos pequenos e médios municípios, entes que contratam objetos absolutamente distintos, de ciências complexas, e ainda, com características próprias em cada caso, o que faz das licitações municipais, se não as mais vultosas, as mais peculiares e desgastantes. A prestação de serviços públicos, de abastecimento de programas e de solução prática de problemas específicos/locais, ditam, muitas vezes, as especificidades de alguns objetos e processos. Emprestando a ideologia difundida por Franco Montoro [apud, 2009]: “o cidadão mora no município”.
Desenvolvimento
Ao tema central, é importante destacar que a Lei n.º 14.133/2021, no art. 2º, estabeleceu que suas disposições são aplicáveis às concessões e permissões de uso de bem público, conforme se observa:
Art. 2º Esta Lei aplica-se a:
[...]
IV - concessão e permissão de uso de bens públicos;
Ao tratar das modalidades licitatórias em seu art. 28, a Nova Lei de Licitações nada disse sobre qual delas seria apropriada para licitar a outorga de uso de bens públicos por particulares. Impôs, apenas, o dever de licitar.
Nesse contexto, sempre foi aceitável o uso da modalidade concorrência, isso na aplicação do antigo regime das licitações, a Lei Federal nº 8.666/93, e em razão, também, das previsões em leis orgânicas, que costumam cuidar da alienação dos bens imóveis municipais através dessa modalidade.
Acontece que, a Nova Lei de Licitações, se omite ao descrever a modalidade e o caminho adequado para se licitar os diferentes tipos de concessões de bens, sejam elas onerosas ou não, até mesmo com encargos, há, em verdade, um “buraco legislativo” sobre o tema.
E mais, em virtude da sua característica, muitas vezes detalhista, a Lei 14.133/2021 acabou inviabilizando o uso de algumas soluções ao caso, ou seja, além de não esclarecer a forma ideal de proceder com as concessões de bens, a Lei acabou vedando potenciais soluções de modo indireto.
É o caso do uso do critério de julgamento “maior lance”, que anteriormente era utilizado na compreensão de “melhor preço”, e quando utilizado junto à modalidade pregão, recebia o nome de “pregão negativo” ou “invertido”. Esse arranjo, na literalidade, está impedido de ser utilizado pelo regime da Lei 14.133/2021, embora já consolidado em plataformas e na prática geral, em virtude de o inciso XLI, do art. 6º, destinar somente “menor preço” e “maior desconto”, como critérios de julgamento da modalidade pregão, sendo o maior lance atribuído, apenas, à modalidade leilão, veja:
Art. 6º [...]
XLI - pregão: modalidade de licitação obrigatória para aquisição de bens e serviços comuns, cujo critério de julgamento poderá ser o de menor preço ou o de maior desconto;
O Tribunal de Contas do Estado do Paraná – TCE/PR, já se pronunciou sobre o tema, e tem interpretado a manutenção do uso do referido critério, todavia, essa não é uma solução aplicável apenas aos seus jurisdicionados.
Leilão
Na mesma medida, sofre de incoerência o uso da modalidade “leilão” para concessões de bens, afinal, pelo inciso XL , do mesmo art. 6º, essa é a modalidade ideal para a “alienação de bens imóveis ou de bens móveis inservíveis ou legalmente apreendidos a quem oferecer o maior lance”. As concessões, cessões e permissões de bens, não necessariamente são hipóteses de alienação, e além disso, os bens, não necessariamente se encontram inservíveis. A ideia de que o leilão se aplica, grosso modo, as vendas, é preservada pela Nova Lei, não havendo margens seguras para o uso dessa modalidade, no caso de permissões ou concessões de uso, nem mesmo, ao nosso sentir, sob o pretexto de “alienação da outorga”, já que a Lei não resolve o processo com essa ferramenta. Suponhamos, ainda, que o uso do leilão seria possível para outorgas, em virtude de todo o desacerto legal, seria improvisada a sua utilização somente para as concessões e permissões que envolvam o maior valor de outorga.
Concorrência
Para as hipóteses de cessão de direito real de uso, por exemplo, o leilão não seria ideal, é que nesses casos a Administração cria programas de desenvolvimento econômico, buscando atrair empreendimentos em troca da doação condicionada de imóvel, é comum que sejam estabelecidos critérios de pontuação, esses critérios é que definirão a melhor proposta apresentada. Modelo muito similar a um certame “melhor técnica”, unicamente. E a Lei Federal nº 14.133/2021, em seu inciso XXXVIII, do mesmo art. 6º, atribui os critérios de julgamento que são combináveis com a concorrência, e dentre eles [inciso b)], há a hipótese de uso isolado do critério melhor técnica:
Art. 6º [...]
XXXVIII - concorrência: modalidade de licitação para contratação de bens e serviços especiais e de obras e serviços comuns e especiais de engenharia, cujo critério de julgamento poderá ser:
a) menor preço;
b) melhor técnica ou conteúdo artístico;
c) técnica e preço;
d) maior retorno econômico;
e) maior desconto;
Assim, seria possível aplicar o referido critério nesses casos, em que, a Administração possui programa próprio, que destaca critérios de pontuação técnica sobre a seleção dos projetos para escolha dos beneficiários de imóveis públicos, que podem, eventualmente, serem revertidos em doação, se cumpridos todos os encargos necessários.
Agora, se o programa local envolver disputa de preços e técnica, a situação se torna problemática, pois não há a possibilidade de combinar “maior lance” [em verdade, sequer utilizar “maior lance” nas concorrências] com critérios técnicos. Isso demandaria uma modalidade concorrência, realizada de forma presencial de forma justificada, já que as plataformas não permitiriam tais critérios.
O rito procedimental da concorrência é aquele previsto no art. 17 da Lei n.º 14.133/2021, no qual, como regra, a fase competitiva precederá a fase de habilitação e exame da qualificação exigida.
Portanto, em interpretação literal, para os programas que adotam avaliação de projetos, sem levar em conta o preço ofertado pelos interessados, é possível a adoção da concorrência com critério “técnica”.
Existem leis orgânicas, que, inclusive, preveem que a alienação de imóveis será procedida dessa forma, através de: avaliação do bem; edital de licitação [concorrência] e contratualização. Não raras às vezes, os programas de desenvolvimento econômico concedem a “cessão de direito real de uso com posterior doação com encargos”, um meio de se transmitir a posse e o uso dos imóveis para os particulares selecionados se instalarem, e após determinado período, com o atendimento dos encargos assumidos [empregabilidade de determinado número de pessoas; edificação do local e suas vias; ...] o imóvel poderá ser revertido em doação ao particular.
Chamada Pública / Chamamento Público
Alguns programas também preveem a hipótese de se realizar chamada ou chamamento público de interessados, para que posteriormente sejam analisadas as propostas dos interessados e seja concretizada a concessão ou permissão de uso. Um instrumento de divulgação.
Essa forma de seleção, embora não esteja isoladamente prevista na Lei Federal nº 14.133/2021 [isso porque, os editais convocatórios de alguns instrumentos auxiliares são assim nominados: “chamamento público”], pode representar uma solução, isso nos casos em que a Lei, mais uma vez, se torna inaplicável, como por exemplo, na concessão/permissão de uso gratuita, veja, nesses casos, não há valores a serem disputados na outorga e em alguns casos nem mesmo pontuação técnica. A ideia do chamamento é simplesmente garantir publicidade aos interessados em ocuparem ou assumirem os espaços/bens públicos.
Portanto, não há que se descartar essa ferramenta útil, que garante publicidade e impessoalidade, especialmente nos casos em que as regras de outorga de uso de bens públicos ou os programas locais, preveem que essa será a ferramenta a ser utilizada.
CONCLUSÃO
A Nova Lei de Licitações é rasa quanto à forma de processamento das concessões e permissões de uso, existem diferentes modelos existentes de outorgas, como: as onerosas, as gratuitas, as com encargos; e, ainda, diferentes modelos de programas de desenvolvimento econômico, que podem alternar a maneira de seleção e o formato de cessão dos bens públicos, sem mencionar as previsões específicas de leis orgânicas, que regulamentam o uso e alienação de bens públicos. Todas essas condições específicas, acabam gerando confrontos com a atual Lei Geral de Licitações, que em alguns momentos restringe, de forma indireta, o uso de soluções construídas sob à égide do Antigo Regime [Lei 8.666/93], como o maior lance acoplado à modalidade pregão, por exemplo. Portanto, a análise sempre deve levar em conta os aspectos específicos de cada modelo de outorga [e isso envolve os programas locais, os tipos de imóveis e a legislação local] e as ferramentas disponíveis no momento [a análise da Lei 14.133/2021; das plataformas de licitação; de outras ferramentas cabíveis e até mesmo a interpretação dos órgãos de controle, uma vez que o TCE/PR, por exemplo, preserva o uso do pregão com critério “maior lance”].