Mauro Cid teria aceitado acordo de “Colaboração Premiada” em investigação levada a termo pelo STF por meio da Polícia Federal e sob o direcionamento do Ministro Alexandre de Moraes. Ocorre que depois dessa prática o suposto “colaborador” teria mantido conversas em mensagens, alegando que foi coagido pela Polícia Federal a concordar com uma versão previamente elaborada sobre os fatos em apuração. 1
A reação a essa situação foi a decretação da Prisão Preventiva do envolvido sob o pretexto de violação das condições de sua liberdade provisória, bem como sua submissão imediata a interrogatório perante o Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que teria se retratado de suas críticas, vindo a passar mal naquele local, sendo necessário socorro médico. 2
Segundo consta, não houve por parte do implicado ou de sua defesa questionamento sobre a autenticidade dos áudios, mas apenas a alegação de que se tratava de desabafos pessoais sem maior importância. 3
De acordo com o exposto, o que ocorreu foi então o seguinte: Mauro Cid fez acordo de “Colaboração Premiada” com a Polícia Federal e prestou depoimentos; posteriormente desacreditou explicitamente tais depoimentos e, especialmente, a voluntariedade de sua suposta “colaboração”. No seguimento é preso e levado à presença do Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que, sob forte abalo, acaba sustentando seus depoimentos e negando coação.
Não se fará aqui nenhuma análise sobre a atuação ilegítima de um magistrado numa investigação, nem sobre a submissão de um militar à Justiça Comum, de um cidadão sem foro privilegiado perante a Corte Suprema, sendo investigado e julgado pelo STF (incompetência absoluta), afora muitas outras ilegalidades que já são tão comuns nesses feitos em andamento, parecendo ser absolutamente inútil sua apresentação e sustentação de sua invalidade jurídica. A respeito disso tudo e muito mais, vale a constatação de Karl Krauss, feita em outra circunstância histórica, mas plenamente aplicável à nossa atual realidade: “O estado em que vivemos é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável”. 4
O foco deste trabalho encontra-se na questão da (i)legitimidade e (i)legalidade da suposta “Colaboração Premiada” de Mauro Cid, a qual se escancara, seja pelos seus áudios, seja, especialmente, pelo tratamento empregado ao “colaborador” após o vazamento de tais áudios.
Desde sempre a melhor doutrina e jurisprudência caracterizavam a “Colaboração Premiada” como um “negócio jurídico processual”. 5 Tal entendimento é consolidado normativamente pela Lei 13.964/19 que inclui o artigo 3º.-A no corpo da Lei 12.850/13. 6
Como se vê, não somente pela doutrina e jurisprudência, mas também pela lei expressa, é reforçado o respeito à voluntariedade do acordo de colaboração, conforme já previa o artigo 4º, caput, da Lei. Ora, se estamos diante de um “negócio” isso significa que ambas as partes devem aderi-lo voluntariamente, sem qualquer tipo de constrangimento ou pressão, preservando-se a autonomia da vontade dos pactuantes. Essa premissa, aliás, foi reforçada pelo STF no Informativo nº 988, senão vejamos:
O relator ressaltou que o estabelecimento de balizas legais para o acordo é uma opção do nosso sistema jurídico, para garantir a isonomia e evitar a corrupção dos imputados, mediante incentivos desmesurados à colaboração, e dos próprios agentes públicos, aos quais se daria um poder sem limite sobre a vida e a liberdade dos imputados. É preciso respeitar a legalidade, visto que as previsões normativas caracterizam limitação ao poder negocial no processo penal. No caso de ilegalidade manifesta em acordo de colaboração premiada, o Poder Judiciário deve agir para a efetiva proteção de direitos fundamentais. Registrou que, em diversos precedentes, a Corte assentou que o acordo de colaboração premiada é meio de obtenção de prova. Portanto, trata-se de instituto de natureza semelhante, por exemplo, à interceptação telefônica. Tendo em conta que o STF reconheceu, várias vezes, a ilegalidade de atos relacionados a interceptações telefônicas, não há motivo para afastar essa possibilidade em ilegalidades que permeiam acordos de colaboração premiada.7
E não pode restar dúvida quanto ao fato de que a quebra da “voluntariedade” do acordo, havendo comprovação ou mesmo suspeita de coação, deslegitima e torna ilícito qualquer pacto.
Em nosso estudo anterior sobre o tema, destacamos o “Princípio da Voluntariedade” como um dos mais importantes “vetores do acordo de colaboração premiada”: 8
As partes não podem ser constrangidas a realizar o acordo de colaboração premiada, sendo vedado ao Delegado de Polícia e ao MP o uso de medidas legais como forma de coação (dentre elas, obviamente, a prisão provisória).
Não se pode olvidar que ordenamento jurídico prevê que a colaboração deve ser “voluntária”. Isso quer dizer que somente vale a colaboração que se dê por ato voluntário do agente e não, obviamente, aquela obtida mediante outros meios de investigação.
O legislador foi sábio ao usar a palavra “voluntariamente” e não “espontaneamente”. Ele livrou os aplicadores e estudiosos do Direito da extenuante controvérsia sobre necessitar ser a colaboração algo que parta da iniciativa própria do colaborador (espontânea) ou poder ser proposta por um terceiro como o delegado ou o promotor (voluntária). Sendo usada a voluntariedade, tanto faz se a colaboração se dá por iniciativa própria do investigado ou se ocorre por proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia.
Na verdade, a maioria da doutrina e da jurisprudência já vem acatando que, por exemplo, na atenuante da confissão, que usa a palavra “espontaneamente”, isso não quer dizer que a atuação tenha de partir somente do íntimo do indivíduo, podendo sim ser incentivada ou mesmo proposta por terceiros. O que valeria, segundo entendimento predominante, mesmo na espontaneidade, seria a sinceridade do agente em colaborar, ainda que fosse convencido por terceiros. Obviamente que esse “convencimento” não pode ser obtido mediante grave ameaça ou violência, o que tornaria tanto a colaboração como eventual confissão provas ilícitas (Lei 9.455/97 e artigo 5º, III, CF c/c artigo 157, CPP). A efetiva prisão processual e/ou sua ameaça também não podem ser utilizadas como uma espécie de “meio de convencimento” contra o colaborador. Se isso ocorre, não existe mais voluntariedade alguma, mas atividade ilícita e coação.
A decisão paradigmática acerca da voluntariedade da colaboração encontra-se no HC 127.483 do STF, sob a relatoria do Ministro Dias Toffoli. Embora o simples fato de o colaborar estar preso não impeça, por si só, a validade do acordo, é preciso atentar para o fato de que haja “liberdade psíquica”, ou seja, não esteja a prisão posta como instrumento coator.
Como aduz Almeida Filho:
A colaboração premiada, que possui natureza de negócio jurídico processual, só é possível quando o colaborador submetido ao regime restritivo da prisão preventiva possuir liberdade para decidir, ou seja, quando não for vítima de coação ou de outros vícios do consentimento que impeçam a livre manifestação da sua vontade. 9
Capez assevera que a colaboração premiada obtida sem voluntariedade por parte do colaborador é “imprestável juridicamente”, não produzindo qualquer efeito, já que a voluntariedade é “requisito essencial da colaboração”. Destaca que “nas delações feitas após prisões prolongadas, a tendência é dizer o que autoridade quer ouvir, com sérios prejuízos à verdade real”. Ademais, lembra o jurista que a “prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade” (artigo 9º., da Lei 13.869/19). 10
Vale lembrar que Mauro Cid foi preso pela primeira vez em 2023, permanecendo encarcerado por 6 (seis) meses e daí surgindo o acordo de colaboração premiada. 11 Depois de sua deslegitimação do “acordo” em áudios, foi detido em menos de 24 horas e convocado para interrogatório perante o Ministro Alexandre de Moraes, ocasião em que, sob nítido abalo emocional, acaba confirmando a “legitimidade” do acordo e é novamente encarcerado.
É evidente que se em algum momento fosse possível acreditar na voluntariedade desse “acordo”, torna-se absolutamente indiscutível que essa alegada vontade não permaneceu intacta. Nesse ponto é possível fazer uma analogia com o crime de estupro. O sim da pessoa para o ato sexual não cria uma obrigação a ele. A qualquer momento em que haja um não, como se diz popularmente, “não é não”. Se o ato sexual se perfaz, após um sim, secundado por um não, há, induvidosamente, crime de estupro. Ninguém negaria isso. No acordo de colaboração o “sim”, a voluntariedade deve informar o ato do começo ao fim, qualquer quebra indica um “não” e o “acordo” perde sua validade jurídica, torna-se imprestável. O que se vê no caso Mauro Cid é um verdadeiro espetáculo de “livre e espontânea coação”, um terrível “Estupro Jurídico”.
As manifestações dos áudios, jamais contestadas por Cid ou seus defensores, não deixam dúvidas acerca de seu “desacordo” com tudo o que foi objeto da suposta “colaboração premiada”. A conduta adequada seria a de reconhecer a nulidade do suposto acordo e jamais a de chamar o “colaborador” a um interrogatório, acenando com sua prisão e indagando da autenticidade do acordo, como numa espécie de pergunta meramente retórica. Pior ainda é expor esse interrogatório pervertido e cínico a público como se pudesse ser a prova de que a colaboração foi válida, quando, na verdade, é o que mais escancara a coação que mata qualquer voluntariedade que se pudesse reconhecer em algum momento.
Nosso mundo jurídico atualmente é um contínuo “faz – de – conta”, um verniz de legalidade num ambiente de política perversa e direito pervertido. 12 Como ensina Agamben:
O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito. 13
É neste “estado de exceção permanente” que nos encontramos há tempos sem muita perspectiva de recuperação da verdadeira ordem jurídica constitucional e legal.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALMEIDA FILHO, Agassiz. Prisão Preventida, Colaboração Premiada e Voluntariedade no STF. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/em-audios-exclusivos-mauro-cid-ataca-alexandre-de-moraes-e-a-pf , acesso em 27.04.2024.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Política Perversa e Direito Pervertido –Registros Históricos Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores Do Mal. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2023.
CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023.
CAPEZ, Fernando. Prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade. Disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/mauro-cid-passa-mal-e-desmaia-em-depoimento-no-stfao-saber-que-seria-preso/ , acesso em 27.04.2024.
NAVAS, Adolfo Montejo. Pedras Pensadas. Trad. Sérgio Alcides. Cotia: Ateliê Editorial, 2002.
VIANNA, José. Veja detalhes da rotina de Mauro Cid na prisão; segunda detenção do ex – ajudante de ordens de Bolsonaro completou um mês. Disponível em https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/04/24/veja-detalhes-da-rotina-de-mauro-cid-na-prisao-segunda-detencao-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-completou-um-mes.ghtml , acesso em 27.04.2024.
Notas
1 BONIN, Robson, BORGES, Laryssa, MATTOS, Marcela. Em áudios exclusivos, Mauro Cid ataca Alexandre de Moraes e a PF. Disponível em https://veja.abril.com.br/brasil/em-audios-exclusivos-mauro-cid-ataca-alexandre-de-moraes-e-a-pf , acesso em 27.04.2024.
2 MAURO Cid passa mal e desmaia em depoimento no STF ao saber que seria preso. Disponível em https://www.infomoney.com.br/politica/mauro-cid-passa-mal-e-desmaia-em-depoimento-no-stfao-saber-que-seria-preso/ , acesso em 27.04.2024.
3 Op. Cit.
4 NAVAS, Adolfo Montejo. Pedras Pensadas. Trad. Sérgio Alcides. Cotia: Ateliê Editorial, 2002, p. 83.
5 CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco. Tratado de Legislação Especial Criminal. 3ª. ed. Leme: Mizuno, 2023, p.731.
6 “Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)”.
7 STF, HC 142.205/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25.08.2020.
8 CABETTE, Eduardo, SANNINI, Francisco, Op. Cit., p. 743. – 744.
9 ALMEIDA FILHO, Agassiz. Prisão Preventida, Colaboração Premiada e Voluntariedade no STF. Disponível em
10 CAPEZ, Fernando. Prisão para delatar, além de ilegal, configura crime de abuso de autoridade. Disponível em
11 VIANNA, José. Veja detalhes da rotina de Mauro Cid na prisão; segunda detenção do ex – ajudante de ordens de Bolsonaro completou um mês. Disponível em https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2024/04/24/veja-detalhes-da-rotina-de-mauro-cid-na-prisao-segunda-detencao-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-completou-um-mes.ghtml , acesso em 27.04.2024.
12 Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Política Perversa e Direito Pervertido –Registros Históricos Para Não Dizer Que Não Falei Das Flores Do Mal. Florianópolis: Estudos Nacionais, 2023, “passim”.
13 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ª. ed. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 131.