Palavras-chave: Príncipio da dignidade da pessoa humana. Direito dos pais e familiares de sepultarem seus filhos e parentes, caso o óbito ocorra antes de 20 (vinte) semanas de gravidez. Direito dos nascituros ao nome e sepultamento. Direitos de personalidade. Direito à liberdade religiosa e de culto.
À Maria Rita e Maria Inês, in memoriam.
A Constituição Federal estabelece como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana. Este princípio é o pilar de todo o ordenamento jurídico, eis que o ser humano é o fim pelo qual o direito está construído, e o fundamento de todos os direitos humanos (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988).
Essa é a leitura da doutrina especializada, da jurisprudência dos tribunais e dos tratados internacionais sobre direitos humanos, ou seja, o princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio basilar do direito1:
Declaração dos Direitos Humanos (1948): Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
Declaração Americana dos Direitos e Deveres dos homens (1948). Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de razão e consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os outros.
Convenção Americana sobre Direito Humanos (Pacto de São José da Costa Rica - 1969): Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos;
[...]
Artigo 1. Obrigação de respeitar os direitos
1. Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
2. Para os efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.
CAPÍTULO II
DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
Artigo 3. Direito ao reconhecimento da personalidade jurídica
Toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua personalidade jurídica.
Artigo 4. Direito à vida
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
Vejamos a doutrina de Luiz Regis Prado:
“ A dignidade da pessoa humana, como dado inerente ao homem enquanto ser, é guindada à condição de príncipio constitucional insculpido no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal. Nesse princípio reside o limite mínimo a que está subordinada toda e qualquer legislação. Antecede, portanto, o juízo axiológico do legislador e vincula de forma absoluta sua atividade normativa, mormente no campo penal. Daí por que toda lei que viole a dignidade da pessoa humana deve ser reputada inconstitucional.”2
A pessoa humana, dotada de razão e vontade livre, é um fim em si mesma, não pode ser utilizada como meio para outros interesses, não pode ser vendida, utilizada como mercadoria, instrumentalizada e todo o arcabouço jurídico se destina à sua proteção e o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais, físicas, sociais, culturais, artísticas etc. A pessoa é dotada de tal dignidade que é o ser que merece a maior garantia de proteção é mesmo o fim pelo qual se estrutura o direito. Nesse sentido, Javier Hervada:
“ Segundo o que vimos, a dignidade reside na natureza racional ou espiritual do homem, que é o que lhe proporciona a intensidade e perfeição do ser mais elevadas que o restante dos seres terrestres, e indica a diferença essencial entre o seres do mundo animal. De modo particular, a maior perfeição do homem manifesta-se em duas coisas, próprias da dimensão espiritual: por um lado, o conhecimento intelectual, tanto se for conatural (por ser imediato) ou intuitivo (instantâneo) quando se for racional (mediato por raciocínio ou argumentativo); por outro lado, o amor total ou abertura da vontade ao bem absoluto.”3
Assim sendo, aos nascituros é devido o direito ao nome, bem como ao sepultamento, eis que são seres humanos, e, portanto, pessoas, ao quais devem ser reconhecidos seus direitos desde o momento de sua concepção.
Tal direito toca, também aos pais, eis que tem o direito inalienavél a dar sepultura aos seus nascituros mortos no ventre materno e indicar o nome do concepto para fins de registro no cartório de registro civil de pessoas naturais (art. 29, da Lei de Registros Públicos). Ora, os nascituros são pessoas, nos termos do art. 2º do Código Civil, apesar de não gozarem de personalidade jurídica, eis o texto da norma:
Art. 2. o A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
Veja-se que a legislação assegura os direitos do nascituros, como no citado artigo do Código Civil, e no art. 53. da Lei de Registro Públicos, que prevê que deverá ser dado o devido assentamento do seu óbito, senão vejamos:
Art. 53. No caso de ter a criança nascido morta ou no de ter morrido na ocasião do parto, será, não obstante, feito o assento com os elementos que couberem e com remissão ao do óbito. (Renumerado do art. 54, com nova redação, pela Lei nº 6.216, de 1975).
§ 1º No caso de ter a criança nascido morta, será o registro feito no livro "C Auxiliar", com os elementos que couberem. (Incluído pela Lei nº 6.216, de 1975).
§ 2º No caso de a criança morrer na ocasião do parto, tendo, entretanto, respirado, serão feitos os dois assentos, o de nascimento e o de óbito, com os elementos cabíveis e com remissões recíprocas.
Art. 55. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome, observado que ao prenome serão acrescidos os sobrenomes dos genitores ou de seus ascendentes, em qualquer ordem e, na hipótese de acréscimo de sobrenome de ascendente que não conste das certidões apresentadas, deverão ser apresentadas as certidões necessárias para comprovar a linha ascendente. (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022)
Veja-se que a certidão de óbito é condição legal para o sepultatamento, e a emissão de atestado médico (declaração de óbito), condição para se exarar a certidão de óbito, nos termos do art. 77. da Lei de Registros Públicos:
Art. 77. Nenhum sepultamento será feito sem certidão do oficial de registro do lugar do falecimento ou do lugar de residência do de cujus, quando o falecimento ocorrer em local diverso do seu domicílio, extraída após a lavratura do assento de óbito, em vista do atestado de médico, se houver no lugar, ou em caso contrário, de duas pessoas qualificadas que tiverem presenciado ou verificado a morte. (Redação dada pela Lei nº 13.484, de 2017)
§ 1º Antes de proceder ao assento de óbito de criança de menos de 1 (um) ano, o oficial verificará se houve registro de nascimento, que, em caso de falta, será previamente feito. (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
§ 2º A cremação de cadáver somente será feita daquele que houver manifestado a vontade de ser incinerado ou no interesse da saúde pública e se o atestado de óbito houver sido firmado por 2 (dois) médicos ou por 1 (um) médico legista e, no caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária.
Ora, tais normativas tem como fundamento o direito ao sepultamento e os direitos de personalidade que devem ser assegurados aos pais e pelos pais, aos filhos mortos, corolários do princípio da dignidade humana, eis que são direitos invioláveis e imprescritíveis, como se verfica no art. 11, 12 e 13, do Código Civil Brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002:
Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.
Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
Veja-se que o cadáver é um atributo da pessoa que deve ser tratado com todo o respeito e deve ser sepultado ou cremado de modo digno, bem como, um direito natural dos familiares ao sepultamento do corpo dos parentes mortos, pois representa um direito imemorial e natural da família em relação ao morto4.
Veja-se que a Lei de Registro Público obriga os familiares, as autoridades médicas, as autoridades públicas e mesmo à sociedade em geral, na falta dos familares, que tenha presenciado ou não o falecimento, de fazerem a certidão de óbito e, portanto, de garantir o sepultamento ou a cremação das pessoas mortas:
Art. 79. São obrigados a fazer declaração de óbitos: (Renumerado do art. 80. pela Lei nº 6.216, de 1975).
1°) o chefe de família, a respeito de sua mulher, filhos, hóspedes, agregados e fâmulos;
2º) a viúva, a respeito de seu marido, e de cada uma das pessoas indicadas no número antecedente;
3°) o filho, a respeito do pai ou da mãe; o irmão, a respeito dos irmãos e demais pessoas de casa, indicadas no nº 1; o parente mais próximo maior e presente;
4º) o administrador, diretor ou gerente de qualquer estabelecimento público ou particular, a respeito dos que nele faleceram, salvo se estiver presente algum parente em grau acima indicado;
5º) na falta de pessoa competente, nos termos dos números anteriores, a que tiver assistido aos últimos momentos do finado, o médico, o sacerdote ou vizinho que do falecimento tiver notícia;
6°) a autoridade policial, a respeito de pessoas encontradas mortas.
Parágrafo único. A declaração poderá ser feita por meio de preposto, autorizando-o o declarante em escrito, de que constem os elementos necessários ao assento de óbito.
Dessa forma, deve-se conferir aos pais o direito ao sepultamento de seus filhos natimortos em qualquer idade gestacional, eis que ocorreu um óbito fetal. Esse é um direito natural, legal e constitucional, eis que os direitos de personalidade decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, deve-se considerar natimorto todas as crianças mortas no seio materno em qualquer idade gestacional, e portanto, sempre que possível, deverá ser concedida a declaração de óbito.
Hoje, no Brasil, somente é obrigatória a emissão da declaração de óbito para o sepultamento das crianças com mais de 20 semanas de gestação, ou peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas e/ou estartura igual ou superior a 25 cm, nos termos do artigo 2º da Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.779, de 2005, senão vejamos:
Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.779, de 2005
Art. 1° O preenchimento dos dados constantes na Declaração de Óbito é da responsabilidade do médico que atestou a morte.
Art. 2° Os médicos, quando do preenchimento da Declaração de Óbito, obedecerão as seguintes normas:
1) Morte natural:
I. Morte sem assistência médica:
a) Nas localidades com Serviço de Verificação de Óbitos (SVO): A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do SVO;
b) Nas localidades sem SVO: A Declaração de Óbito deverá ser fornecida pelos médicos do serviço público de saúde mais próximo do local onde ocorreu o evento; na sua ausência, por qualquer médico da localidade.
II. Morte com assistência médica:
a) A Declaração de Óbito deverá ser fornecida, sempre que possível, pelo médico que vinha prestando assistência ao paciente.
b) A Declaração de Óbito do paciente internado sob regime hospitalar deverá ser fornecida pelo médico assistente e, na sua falta por médico substituto pertencente à instituição.
c) A declaração de óbito do paciente em tratamento sob regime ambulatorial deverá ser fornecida por médico designado pela instituição que prestava assistência, ou pelo SVO;
d) A Declaração de Óbito do paciente em tratamento sob regime domiciliar (Programa Saúde da Família, internação domiciliar e outros) deverá ser fornecida pelo médico pertencente ao programa ao qual o paciente estava cadastrado, ou pelo SVO, caso o médico não consiga correlacionar o óbito com o quadro clínico concernente ao acompanhamento do paciente.
2) Morte fetal: Em caso de morte fetal, os médicos que prestaram assistência à mãe ficam obrigados a fornecer a Declaração de Óbito quando a gestação tiver duração igual ou superior a 20 semanas ou o feto tiver peso corporal igual ou superior a 500 (quinhentos) gramas e/ou estatura igual ou superior a 25 cm.
3) Mortes violentas ou não naturais: A Declaração de Óbito deverá, obrigatoriamente, ser fornecida pelos serviços médico-legais. Parágrafo único. Nas localidades onde existir apenas 1 (um) médico, este é o responsável pelo fornecimento da Declaração de Óbito.
Contudo, não é vedado a emissão nos demais casos, a depender do requerimento dos pais. Veja-se, que a Resolução da Diretoria Colegiada nº 222, de 28 de março de 2018 da Anvisa, estabelece que os hospitais são obrigados a entregar os restos mortais dos natimortos aos pais, se requerido, nos termos do art. 52, e Anexo I, subgrupo A3, senão vejamos:
Seção III
Resíduos de Serviços de Saúde do Grupo A - Subgrupo A3
Art. 52. Os RSS do Subgrupo A3 devem ser destinados para sepultamento, cremação, incineração ou outra destinação licenciada pelo órgão ambiental competente.
Parágrafo único. Quando forem encaminhados para incineração, os RSS devem ser acondicionados em sacos vermelhos e identificados com a inscrição "PEÇAS ANATÔMICAS".
ANEXO I
CLASSIFICAÇÃO DOS RESÍDUOS DE SERVIÇOS DE SAÚDE
GRUPO A
Resíduos com a possível presença de agentes biológicos que, por suas características, podem apresentar risco de infecção.
[...]
Subgrupo A3 - Peças anatômicas (membros) do ser humano; produto de fecundação sem sinais vitais, com peso menor que 500 gramas ou estatura menor que 25 centímetros ou idade gestacional menor que 20 semanas, que não tenham valor científico ou legal e não tenha havido requisição pelo paciente ou seus familiares.
Assim sendo, nos termos da legislação, os restos mortais das crianças com menos de 20 semanas, podem ser sepultados, eis que o médico e o hospital, estão obrigados a emitir a Declaração de Óbito, caso requerida pela família.
Veja-se, conforme decisão do Superior Tribunal de Justiça, que é um direito fundamental e inalienável dos genitores o direito ao sepultamento e à dignidade da pessoa morta, senão vejamos:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANO MORAL. PARTO GEMELAR. UM NATIMORTO. DESAPARECIMENTO DO CADÁVER. RESPONSABILIDADE DO NOSOCÔMIO PELA GUARDA DOS RESTOS MORTAIS. IMPOSSIBILIDADE DE SEPULTAMENTO. OFENSA MORAL. VALOR DA REPARAÇÃO. REDUÇÃO. CABIMENTO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS NA APELAÇÃO. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. AFASTAMENTO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.
1. O dano moral decorre não somente de lesões de ordem psíquica causadas à vítima - dor, sofrimento, angústia -, mas, sobretudo, da violação de direito de personalidade ou mesmo do direito à dignidade, garantidos constitucionalmente (CF, art. 1º, III).
2. A violação do dever de guarda do cadáver de natimorto, extraviado, gera responsabilidade por dano moral passível de reparação, tendo em vista que provoca nos familiares dor profunda com a ausência dos restos mortais, a impossibilitar o sepultamento de ente querido, além de violar o direito à dignidade da pessoa morta.
3. Deve o valor da reparação a título de danos morais ser reduzido a patamar razoável e proporcional à ofensa, o que autoriza seu excepcional reexame na via estreita do recurso especial.
4. O simples fato de haver o litigante utilizado recurso previsto em lei não caracteriza a litigância de má-fé. Isso, porque esta não pode ser presumida, sendo necessária a comprovação do dolo da parte, da intenção de obstrução do trâmite regular do processo, nos termos do art. 17. do Código de Processo Civil.
5. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp n. 1.351.105/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 6/6/2013, DJe de 20/6/2013.)
Como se percebe, havendo partos de natimortos antes de 20 semanas de gestação, o que é comum acontecer, é perfeitamento legal que os restos mortais do natimorto seja inumado ou cremado.
No mesmo sentido, o Enunciado nº 1, da I Jornada de Direito Civil:
A proteção que o Código defere ao nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura.
Por outro lado, a Lei de Registros públicos não estabelece nenhum prazo gestacional para a configuração de natimortos, eis que menciona somente “as crianças nascidas mortas”, ou seja, os óbitos fetais devem ser escriturados e conferido aos pais a certidão de natimorto, documento necessários para a inumação ou cremação.
Veja-se que esse direito fundamental é protegido por normas de Direito Internacional Humanitário, expressadas nas de números 115, 116 e 117, senão vejamos5:
Sepultamento - Norma 115. Os mortos deverão ser sepultados decentemente e os seus túmulos, respeitados e conservados de forma adequada.
Identificação dos mortos - Norma 116. Com vistas a identificar os mortos, cada parte em conflito deverá registrar todas as informações disponíveis antes do sepultamento e marcar a localização dos túmulos.
Tais normas estão devidamente recolhidas no art. 17. da Convenção de Genebra de 1949, que trata sobre as vítimas de conflitos armados, à qual o Brasil é signatário e foi ratificada pelo Decreto nº 42.121, de 21 de agosto de 1957, que estabelece esses deveres aos países beligerantes:
ARTIGO 17
As Partes em luta envidarão esforços para que a inhumação ou incineração dos mortos, feita individualmente na medida em que as circunstâncias o permitirem, seja precedida de um exame atento, e se possível médico dos corpos a fim de constatar-se a morte, estabelecer-se a identidade e poder-se relatar o ocorrido. A metade da placa dupla de identidade, ou a própria placa, se fôr simples, ficará com o cadáver.
Os corpos poderão ser incinerados em razão de imperiosas medidas de higiene ou por preceitos estabelecidos pela religião do falecido. Em caso de incineração, será feita menção circunstanciada do fato, com indicação de motivos no atestado de óbito ou na lista autenticada de falecimentos.
As Partes em luta envidarão também esforços para que os mortos sejam sepultados decentemente, se possível, segundo o rito da religião a que pertençam, que seus túmulos sejam respeitados e agrupados se possível pela nacionalidade dos falecidos, conservados com o necessário cuidado e marcados de maneira a serem achados a qualquer momento. Para êsse fim e ao se iniciarem as hostilidades as Partes em luta organizarão oficialmente um serviço funerário a fim de permitir as exumações eventuais, assegurar a identificação dos cadáveres, seja qual fôr a localização das sepulturas e o seu retorno ao país de origem. Estas disposições se aplicam igualmente às cinzas que serão conservadas pelo serviço funerário até que o país de origem faça saber quais as resoluções que deseja tomar a êsse respeito.
Logo que as circunstâncias o permitirem, e no máximo ao fim das hostilidades, êsses serviços trocarão, por intermédio do escritório de informações mencionado na segunda alínea do art. 16. as listas indicadoras do local exato e da designação das sepulturas, a que contenham informações relativas aos mortos aí enterrados.
Ora, como se percebe, o direito ao sepultamento está garantido até em momentos graves como o de guerra, para os combatentes do exército inimigo, ainda mais em circunstâncias normais, com os pais presentes, de filhos natimortos. Anote-se que nos termos do art. 5º, §2º da Constituição Federal, os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Assim sendo, o direito ao sepultamento dos filhos, também é um direito fundamental é decorre não somente do art. 1º, inciso III, da Constituição federal, ou seja, do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como dos artigos 11, 12 e 13 do Código Civil, além do art. 53. da Lei de Registros Públicos, e do art. 17. da Convenção de Genebra de 1949, com citado.
Além desses artigos, também o art. 227. da Constituição Federal garante o direito dos nascituros de serem inumados, eis que estabece que as crianças e, portanto, os nascituros, não poderão sofrer discriminação injusta e nem tratamento cruel e vejatório, como seria o caso do cadáver de um nascituro ser tratado como resíduo hospitalar:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Aos pais, portanto, compete o dever e o direito inalienável de enterrar os seus filhos, crianças natimortas, como estabele o art. 229. da Constituição Federal:
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA estabelece a mesma diretriz:
Art. 2º Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor, religião ou crença, deficiência, condição pessoal de desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica, ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que vivem. (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.
Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência.
No mesmo sentido o art. 1º da Convenção sobre os Direitos das Crianças:
Para efeito da presente Convenção, considera-se como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.
Tais direitos fundamentais devem ser garantidos aos pais e à memória das crianças, que não podem se apagadas sem registro e devem ser respeitadas em sua dignidade ainda que mortas. Morta a criança, os pais tem o direito de sepultá-las com o nome que fora escolhido, eis que o ordenamento jurídico garante esse direito.
É totalmente irrazoável, desproporcinal e atentatório à dignidade da pessoa humana uma norma ou procedimentos hospitalares que impeçam o sepultamento dos filhos natimortos em qualquer estágio gestacional, devendo informar os pais sobre esse direito, mesmo se o óbito ocorreu antes da vigésima semana de gestação.
Esse é um direito dos pais que também concorre para atenuar a sua dor e proteger a sua saúde psíquica, em especial da mães, em face da perda dos seus filhos. Ademais, tal direito fundamental, decorre do direito à liberdade religiosa e de culto, eis que o sepultamento das pessoas mortas é uma obrigação moral e sagrada da maioria das religiões.
Anote-se que o Provimento 151/2023, do CNJ, publicado em setembro de 2023, passou a garantir a possibilidade dos pais de atribuirem nome ao filho natimorto, senão vejamos:
Art. 1º O Título II do Livro V da Parte Especial do Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), instituído pelo Provimento n. 149, de 30 de agosto de 2023, passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo I-A e do seguinte Capítulo II-A:
“CAPÍTULO I-A
DO REGISTRO DE NATIMORTO
Art. 479-A. É direito dos pais atribuir, se quiserem, nome ao natimorto, devendo o registro ser realizado no Livro “C-Auxiliar”, com índice elaborado a partir dos nomes dos pais.
§ 1º Não será gerado Cadastro de Pessoa Física (CPF) ao natimorto.
§ 2º É assegurado aos pais o direito à averbação do nome no caso de registros de natimorto anteriormente lavrado sem essa informação.
§ 3º As regras para composição do nome do natimorto são as mesmas a serem observadas quando do registro de nascimento.
Tramita no Congresso Nacional o PL nº 102, de 2024 que pretende tornar obrigatório o sepultamento dos filhos natimortos em qualquer estágio gestacional, o que daria segurança jurídica aos pais e o devido tratamento digno aos nascituros, que são pessoas humana, com a seguinte redação 6 :
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o sepultamento em caso de perdas fetais e bebês natimortos.
Art. 2º É obrigatório o sepultamento das perdas fetais e bebês natimortos, independentemente da idade gestacional do feto.
Parágrafo único. É vedado dar às perdas fetais e bebês natimortos destinação não condizente com a dignidade humana, admitida a cremação do feto.
Art. 3ª Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Contudo, considerando as razões expostas, já é possivel, com os fundamentos jurídicos apresentados, garantir o direito ao sepultamento dos nascituros mortos em qualquer fase da gestação. Faz-se necessário, todavia, que os órgãos competentes estabeleçam esse direito fundamental em suas as normas que tratam o tema de forma mais clara, conferindo segurança jurídica para o seus exercício, eis que em muitos casos os pais não são informados do direito de sepultar seus filhos, quando o óbito ocorre antes das 20 semanas gestacionais.
Assim sendo, compete ao Conselho Nacional de Justiça - CNJ, ao Ministério da Saúde - MS, à Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, ao Conselho Federal de Medicina - CFM, o Congresso Nacional, com base em suas competências constitucionais e legais, zelar pela dignidade da pessoa humana dos nascituros e o direito dos pais a sepultarem seus filhos, independente do estágio gestacional, bem como garantir que os restos mortais dos nascituros sejam tratados com a devida dignidade, e não como resíduo hospitalar, com fulcro nos fundamentos jurídicos acima referidos.
Notas
HC 70.389-5/SP (STF); AgRg no HC n. 741.454/SP (STJ). REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, n. 90, p. 2011.
PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Brasileiro, volume 1: parte geral, São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 143-145 e 160.
HERVADA, Javier. Lições Propedêuticas de Filosofia do Direito. São Paulo : WMF Martins Fontes, 2008, p. 311.
Cf, Antígona, de Sófocles (442 A. C); As institutas do Imperador Justiniano, §§1º e 2º, Título II; BOBBIO, Norberto. Dicionário de Política, Brasília : Editora Universidade de Brasília, 200, p. 657.
https://ihl-databases.icrc.org/pt/customary-ihl , acessado em 09 de abril de 2024, às 17h35.
https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2417070 acessado em 15 de abril de 2024. Autoria Deputado Federal Messias Donato (Republicano – ES).