Segundo dispõe o doutrinariamente elogiado artigo 189 do Código Civil, a prescrição extingue a pretensão (e não a ação [01]), subsistindo o chamado "direito de fundo", embora não possa mais o seu titular exigir o cumprimento da obrigação. Ela pressupõe o decurso do tempo e a inércia do titular do direito.
Do ponto de vista processual, a pretensão, que é fulminada com a consumação da prescrição, corresponde à afirmação de um direito material que se almejava fosse admitido pelo Judiciário (é a opinião de ter direito [02]).
Nesta senda, vale repisar que, pela opção legislativa brasileira, a prescrição não fulmina a existência do direito subjetivo. Assim, embora elimine a pretensão, o direito material em si restará intacto ("não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita" – art. 882 do Código Civil), dessarte, pode-se concluir: quem paga dívida prescrita, paga o que deve!
Fixados esses pontos iniciais, importa referenciar que na vigência do Código Civil de 1916, permitia-se o conhecimento ex officio da prescrição de direitos não-patrimoniais. "Sucede que não havia prazo de prescrição de direitos não-patrimoniais, que ou são potestativos (e, portanto, submetidos a prazo decadencial) ou são imprescritíveis (como os personalíssimos)" [03]. Ou seja, objetivamente, pode-se afirmar que mesmo na vigência do Código revogado a prescrição era sempre de ordem patrimonial [04].
Por sua vez, o atual Código Civil, não utilizando-se da inconveniente dicotomia direitos patrimoniais/direitos não-patrimoniais, estabeleceu a possibilidade de esta ser conhecida de ofício pelo magistrado sempre que viesse a beneficiar absolutamente incapaz.
No caminhar dessa progressão legislativa sobre o tema em comento, a Lei 11.051/04 alterou a Lei de Execução Fiscal, para permitir o conhecimento ex officio da prescrição do crédito fiscal (após a oitiva do demandante) [05].
Com inegável inspiração na lei reformadora supracitada, em 2006, a Lei 11.280/06 revogou o art. 194 do Código Civil de 2002, que restringia a possibilidade de reconhecimento ex officio da prescrição aos casos em que favorecesse absolutamente incapaz e, ao mesmo tempo, alterou a redação do § 5º, do art. 219 do Código de Processo Civil, para estabelecer que "o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição".
Assim que este novel preceptivo entrou em vigor, não faltou quem fizesse observações desta ordem: "não mais ficará restringido o órgão judiciário na aplicação da lei ao caso concreto. Assim, o reconhecimento da prescrição pelo juiz deve ocorrer em todo e qualquer caso. Tal mudança de paradigma vem a satisfazer dois dos mais importantes princípios regentes do processo civil moderno, quais sejam, a celeridade e a eficiência" [06].
Apesar de aparentemente correta a citação acima, de antemão, deve-se anunciar um problema causado pela "avalanche legislativa" sobre o instituto da prescrição. Não obstante tenha o legislador dado ao magistrado o poder de conhecer de ofício a prescrição, este mesmo legislador "não retirou do devedor a faculdade de a ela renunciar. Isto torna o direito civil brasileiro, em matéria de prescrição, absolutamente incoerente e, por isso mesmo, assistemático" [07].
Como se sabe, o art. 191 do Código Civil permite expressamente a possibilidade de renúncia tácita da prescrição. Debruçando-se sobre o dispositivo em comento, a melhor doutrina indica que a não-argüição da prescrição consumada é uma forma de renúncia [08] (tácita). Assim, estabelece-se o impasse: de um lado a lei permite ao demandado renunciar a prescrição operada em seu favor. De outra banda, o novo regime da prescrição dá ao juiz o poder de reconhecê-la de ofício. Como resolver a celeuma? [09]
Cremos que a situação deve ser divisada em dois momentos distintos, da seguinte forma: antes e depois da citação do réu. Explica-se.
Levando-se em conta a regra impeditiva do pedido de repetição do que se pagou para solver dívida prescrita e, também, a possibilidade de haver renúncia tácita à prescrição, o magistrado somente poderá reconhecê-la de ofício, se quiser respeitar toda a sistematização que envolve o tema (o que se presume), antes de ordenar a citação do demandado (posto que, nesse momento, não terá havido renúncia tácita pelo silêncio deste) [10].
Operada a citação, o juiz deverá aguardar a alegação do réu (que tem a faculdade de renunciar), ou, quando muito, "suscitar" de ofício a prescrição ("lembrar" os litigantes sobre a consumação desta), determinando às partes que se manifestem sobre a mesma (no prazo de 05 dias – art. 185 do Código de Processo Civil). Nesse caso, o demandado poderá manifestar-se pela ocorrência da prescrição (art. 269, IV, do Código de Processo Civil); manifestar-se "contrariamente" a esta (com o prosseguimento do processo – renúncia expressa) ou, ainda, simplesmente permanecer silente, hipótese que configurará renúncia tácita à prescrição (fato que impedirá o juiz de pronunciar ex officio a causa extintiva do processo). [11]
Em linhas conclusivas, calha ressaltar que nada obstante o legislador não tenha feito constar do novo § 5º, do art. 219, do Estatuto Processual Civil, a mesma ressalva existente no § 4º, do artigo 40, da Lei de Execução Fiscal, no sentido de intimar o autor antes de pronunciar a prescrição, convém que esta providência seja adotada quando da verificação prima facie de sua consumação, mesmo fora dos casos atinentes à legislação especial. Esta postura, inegavelmente, caminha na direção do ideal processo cooperativo e revela estrita observância ao postulado do contraditório.
Notas
01 "(...) recomendável a distinção entre pretensão e ação. Aquela se caracteriza pela afirmação de um direito; esta é, precisamente, o instrumento dentro do qual se coloca a pretensão, para que produza seus efeitos jurídicos" (Arruda Alvim. Curso de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 1971, v. 1, p. 394-397).
02 Idem à nota supra.
03 Fredie Didier Júnior, Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues. A terceira etapa da reforma processual civil. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 39.
04 Fredie Didier Júnior, Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues. Op. cit., p. 39.
05 "Se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato" (art. 40, § 4º, da Lei 6.830/80).
06 Ciro José de Andrade Arapiraca. A Lei 11.280/06 e o reconhecimento de ofício da prescrição. Juris Plenum, Caxias do Sul: Plenum, v. 1, n. 95, jul./ago. 2007. 2 CD-ROM.
07 Alexandre Freitas Câmara. Reconhecimento de ofício da prescrição: uma reforma descabeçada e inócua. http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigosf/Camara_presc.doc, acesso em 02/05/2007.
08 Nesse sentido: Alexandre Freitas Câmara (op. cit.), Fredie Didier Júnior, Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues (op. cit., p. 41) e Humberto Theodoro Júnior (Comentários ao Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 3, t. 2, p. 213).
09 "Um ordenamento jurídico, portanto, deve ser um sistema coerente, o que exige congruência entre as normas que o compõem. Ora, se o direito brasileiro passa a admitir que o juiz conheça de ofício da prescrição, mas continua a admitir que a mesma seja objeto de renúncia, desaparece a coerência interna do sistema, o que é criticável sob todos os aspectos. É, pois, absolutamente inaceitável que se dê ao julgador o poder de reconhecer de ofício a prescrição se o prescribente a ela pode renunciar. E cabe ao jurista denunciar essa incoerência interna do ordenamento jurídico, que o torna assistemático" (Alexandre Freitas Câmara. Op. cit.).
10 "A revogação do art. 194 do Código Civil pela Lei n. 11.280/2006, que determina ao juiz o reconhecimento de ofício da prescrição, não retira do devedor a possibilidade de renúncia admitida no art. 191 do texto codificado" (Enunciado nº 295 da 4ª Jornada de Direito Civil).
11 Nessa linha de entendimento: Didier Júnior, Flávio Cheim Jorge e Marcelo Abelha Rodrigues. Op cit., p. 41-42.