Ontem, ao me deparar com a repercussão da notícia de que a Câmara Criminal do TJAL decidiu manter uma ação penal contra um homem negro acusado de injúria racial contra um homem branco, de origem italiana, resolvi me debruçar sobre o assunto, que inclusive é motivo, não de hoje, de extensa repercussão e debate no seio social, o tema que gera entrave é o “racismo reverso”, a possiblidade ou não de sua existência. Em matérias publicadas em veículos de informações o homem negro proferiu as seguintes palavras : “essa sua cabeça europeia, branca, escravagista não te deixa enxergar nada além de você mesmo”. Vamos à análise.
Os fatos históricos não podem ser mudados, o Brasil, em grande parte de sua existência, passou por um momento sombrio, onde mulheres e homens negros, trazidos encaixotados em navios, serviram aqui, como escravos, reduzidos à condição de animais, serviçais de uma elite branca oriunda do invasor português, tal condição de sofrimento desse povo não cessou com a assinatura da Lei Áurea, que acabava legalmente com a exploração do trabalho escravo, mas no arcabouço social ainda perduraria por um bom tempo, e aqui trago uma leitura fundamental sobre o tema: “A Integração do Negro na Sociedade de Classe” de Florestan Fernandes.
O povo negro passou por décadas em uma condição de semiescravidão, onde teve que se adaptar a um ambiente de extremo preconceito e hipossuficiência de renda, tendo que se amontoar em mocambos e lugares insalubres, vivendo de atividades que muito se assemelhavam a sua condição de escravo, sem nenhuma dignidade, sobrevivendo à margem da sociedade; a situação melhorou, mas não foi resolvida em sua totalidade, os instrumentos estatais se mostram, por vezes, insuficientes, apesar de conseguir avanço em alguns aspectos, entre esses avanços, temos a Lei do Racismo “Lei 7716/89”, objeto legal de fundamental importância para nossa análise.
RACISMO REVERSO
Diante do que se foi introduzido, temos a ideia de que o combate ao racismo é em sua substância, uma ideia de proteção ao povo negro, não foi o povo branco que atravessou o Atlântico em navios negreiros, passando fome e sede, do “ventre escuro de um porão”, como reverbera, Maria Betânia em sua bela canção Yáyá Massemba, não foi o branco que gritou de dor e sucumbiu a ela acorrentado em um pelourinho, não foi o branco que passou pela porta do não retorno e deixou para sempre sua terra natal, foi o povo negro quem sofreu as maiores perturbações que um ser humano poderia sentir, portanto o racismo em sua natureza sociológica é um fato oriundo da condição humana que viveu o povo negro e que descamba nos cantos mais latentes da sociedade, sendo a esse povo a arma apontada.
Pode o povo branco sofrer racismo ?
Sociologicamente falando, não ! As explicações se estenderiam por páginas e mais páginas, mas as descritas acima são suficientes para todos entenderem esse fato. Portanto, quando um negro, por algum motivo, xinga um branco de “branquelo escravocrata”, não podemos falar de racismo reverso, pois o racismo é um fato que no âmago social só pode atingir quem foi historicamente oprimido, quem passou pelo sofrimento e hoje pelo preconceito, de muitas vezes não poder nem sequer andar na rua sem ser mal visto, ou ser “confundido” com um suspeito em uma loja só pela sua cor, o povo branco não passou e não passará por isso, portanto o racismo só pode atingir o oprimido.
RACISMO CONTRA PESSOA DE GRUPO MINORITÁRIO, POR DEFINIÇÃO DA LEI 7716/89
Mas no caso em contento observemos os seguintes pontos, vamos analisar o primeiro artigo da Lei do Racismo:
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional
Vamos acrescentar o artigo 2º:
Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa
O que foi dito pelo homem negro “essa sua cabeça europeia, branca, escravagista não te deixa enxergar nada além de você mesmo”. Pode ser considerada como uma injúria ?
Não há dúvidas que sim, o fato de chamar uma pessoa de “escravagista” é sim um fato típico, conceituado, penalmente, como injúria, agora vem o cerne da questão, tal fato pode ser enquadrado no Artigo 2º da Lei do Racismo ? Uma injúria qualificada pelo preconceito racial ?
A resposta é: depende contra quem seja a ofensa !
No caso em contento, ao afirmar que o imigrante italiano possui“ “cabeça europeia, branca, escravagista”, há sim um preconceito em razão de sua etnia e procedência nacional, não há dúvida, observemos que não estou discutindo o racismo reverso, que como já vimos não pode existir, estamos falando da injúria oriunda de um preconceito contra um imigrante italiano, europeu, que mora no Brasil e que aqui faz parte de uma minoria étnica e isso é sim possível, portanto acertadamente aplicada a Lei 7716/89.
O Artigo 20-C, que foi acrescentado com a Lei 14532/2023 deixa ainda mais robusta essa intepretação, vejamos:
O Art. 20-C da Lei nº 14.532/2023 estabelece que o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”
O Artigo fala de “grupo minoritário” e que “usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”, o italiano, no Brasil é um estrangeiro, portanto faz parte de um grupo minoritário e o Réu não usaria a um brasileiro a expressão ‘essa sua cabeça europeia, branca”, portanto foi especificamente usada pela vítima ser um imigrante italiano, que merece sim, ter sua honra guarnecida e respeitada e no Brasil é um grupo étnico minoritário, que são os imigrantes.
Caso a palavra “escravagista” fosse utilizada contra um branco, sem pertencer a um grupo minoritário, não teríamos a aplicação da Lei do Racismo.
Vamos a outro ponto: se fosse um branco brasileiro atacando o imigrante italiano com as mesmas palavras ?
A resposta de alguns seria, se ele é branco, então pode cometer racismo, portanto há uma injúria qualificada pelo preconceito, preceituada no Art. 2º da Lei do Racismo, mas se é uma pessoa negra não pode cometer crime contra uma pessoa de grupo minoritário ? Pode, e se assim for, deve ser punido.
Se uma pessoa negra, por exemplo, proíbe a entrada de ciganos em seu estabelecimento comercial, pelo fato de serem ciganos, independente da cor desses ciganos, deverá ser enquadrado no Art. 5º da Lei do Racismo
Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.
Pena: reclusão de um a três anos
Pois os ciganos são um grupo minoritário, que por força do Artigo 20-C, devem ser protegidos pela Lei do Racismo.
Mas se uma pessoa negra chama alguém de “branquelo”, pejorativamente, deverá ser punido criminalmente ? Sim, mas não pela Lei do Racismo, pois o grupo étnico branco não pode ser tratado como minoria, devendo ser punido pelo Art. 140. do CP.
Art. 140- Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
CONCLUSÃO
Levando em consideração a argumentação utilizada e os pontos debatidos, concluímos que a decisão do TJAL de manter a ação penal contra o homem negro é acertada, dependendo do acervo probatório a sua condenação ou absolvição, tal ação deve sim seguir seu curso, visto que a injúria foi proferida por meio de preconceito de raça e de procedência nacional, contra uma pessoa de um grupo minoritário, que é um imigrante italiano, não se tratando aqui de racismo reverso, que como vimos, não existe, mas de racismo legal contra pessoa pertencente a grupo étnico determinado, onde o sujeito ativo desse crime é qualquer pessoa, inclusive pessoas afrodescendentes.