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A constitucionalidade da "lista suja" como instrumento de repressão ao trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil

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21/02/2008 às 00:00
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5 A INEXISTÊNCIA DE AFRONTA À PRINCIPIOLOGIA CONSTITUCIONAL PELA "LISTA SUJA"

Rebatendo os argumentos adversos ao Cadastro, há a corrente que o defende como um dos meios mais eficazes utilizados atualmente no combate ao trabalho em condições análogas à de escravo.

Esse grupo defende a constitucionalidade de tal medida, entendendo que ela não causou qualquer violação ao ordenamento jurídico brasileiro e sua principiologia, mas, ao contrário, respeita e segue seus valores maiores, principalmente os princípios constitucionais fundamentais de valorização da dignidade e do trabalho humanos, observados nos arts. 1º, III e IV; 3º, I, III e IV; 170, caput, III, VII e VIII e 186, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil, assim expressos, verbis:

Art. 1º, III e IV: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho...;

Art. 3º, I, III e IV: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Art. 170, caput, III, VII e VIII: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: função social da propriedade; redução das desigualdades regionais e sociais; busca do pleno emprego;

Art. 186, III e IV: A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (negritei).

A explanação a seguir destina-se a refutar as alegadas violações da "lista suja" (já mencionadas no item 4) argüidas pelos defensores de sua inconstitucionalidade.

5.1. Princípios da reserva legal e da legalidade

Inclui-se dentre as funções do Ministério do Trabalho e Emprego, "Erradicar o trabalho escravo e degradante, por meio de ações fiscais coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, nos focos previamente mapeados". [21]

Assim, o Ministro do Trabalho detém competência administrativa para a expedição dos atos administrativos necessários para o cumprimento dos fins que competem ao Ministério respectivo, o que não se confunde com competência legislativa, não havendo de se falar em ofensa aos princípios da reserva legal e da legalidade, pois não é o caso.

Com efeito, a Portaria nº 540/04 também está respaldada pelos arts. 21, XXIV e 87, parágrafo único, I e II da CF, e 913 da CLT, que assim preceituam, verbis:

Art. 21. Compete à União:

XXIV - organizar, manter e executar a inspeção do trabalho.

Art. 87. Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos.

Parágrafo único. Compete ao Ministro de Estado, além de outras atribuições estabelecidas nesta Constituição e na lei:

I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República;

II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos;

Art. 913 - O Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio expedirá instruções, quadros, tabelas e modelos que se tornarem necessários à execução desta Consolidação.

Salienta-se, portanto, que, nos termos do art. 87, parágrafo único, II, da Constituição Federal, cabe ao Ministro de Estado expedir instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos, e a própria Constituição estabelece em seu art. 1º, III e IV, como fundamentos do Estado Brasileiro a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, fundamentos esses claramente desprezados por aqueles empregadores autuados em suas propriedades por manterem trabalhadores em condição análoga a de escravo, mas que devem ser sempre resgatados e implementados pelas autoridades competentes e pela sociedade.

Assim, a referida Portaria foi editada dentro dos limites legais, não havendo qualquer extrapolação da competência do Ministro do Trabalho, até porque a edição de portarias, normas, provimentos, ordens de serviço e outras formas de regulamentos também faz parte do poder de polícia administrativa dos órgãos públicos.

Além disso, os atos administrativos gozam de presunção de legalidade e veracidade até prova em contrário, de modo que havendo a inclusão do nome do empregador na "lista suja", deve-se presumir efetivamente realizado o fato gerador do direito, até que o infrator demonstre que a atuação dos fiscais em sua propriedade foi irregular e que os autos de infração lavrados não expressam a realidade fática existente.

Como bem aponta João Humberto Cesário, verbis:

"...é absolutamente válido que a União, por via da atuação dos Ministros de Estado, se valha de critérios administrativos visando a financiar a atividade produtiva séria e lícita, em detrimento daquela que, na ganância por lucros desmedidos, transpõe as raias da criminalidade, desprezando os fundamentos que se constituem no centro vital da Constituição da República Federativa do Brasil". [22]

Além disso, há outras normas nacionais e internacionais que se coadunam com os princípios constitucionais fundamentais de valorização da dignidade e do trabalho humanos (arts. 1º, III e IV; 3º, I, III e IV; 170, caput, III, VII e VIII e 186, III e IV, da CF) e que legitimam a existência da "lista suja" como uma das providências normativas adotadas pelo Brasil em favor da erradicação do trabalho forçado ou degradante, mormente por protegerem os trabalhadores contra essa chaga contemporânea.

São elas: a Convenção sobre a Escravatura (Liga das Nações, 1926, no Brasil, Decreto n. 58.562 de 1966); a Declaração Universal dos Direitos do Homem (ONU, 1948); o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966, no Brasil, Decreto 592 de 1992); a Convenção Americana de Direitos Humanos (OEA, 1969); a Convenção n. 29 (OIT, 1930) e a Convenção n. 105 (OIT, 1957), ambas ratificadas pelo Brasil; o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, alterado pela Lei n. 10.803/2003; o Decreto n. 1.538 de 1995, que criou o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho, substituído pela Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE) em 2003. [23]

Apenas para exemplificar, o próprio artigo 1º da Convenção nº 29 dispõe que "Todo País-membro da Organização Internacional do trabalho que ratificar esta Convenção compromete-se a abolir a utilização do trabalho forçado ou obrigatório, em todas as suas formas, no mais breve espaço de tempo possível" (grifei).

Nota-se que a "lista suja", como bem salienta Marcos Neves Fava, limita-se a dar cumprimento às premissas normativas já existentes, sem conter qualquer inovação ou normatização de caráter primário, dado de que poderia advir prejuízo ao cidadão. [24]

Dessa forma, observa-se que não há qualquer afronta constitucional, legal ou principiológica pela instituição do rol de empregadores autuados por manterem trabalhadores em situação análoga à de escravos, previsto na Portaria nº 540/2004 do Ministério do Trabalho e Emprego.

Por oportuno, salienta-se que, apesar das fontes já citadas, há, no Congresso Nacional, uma série de propostas de modificações na legislação vigente, que representariam, se aprovadas, uma contribuição essencial do Legislativo no combate ao trabalho análogo ao de escravo no mundo contemporâneo. Essas propostas consistem basicamente na desapropriação de terras onde for identificado o trabalho escravo e na proibição de concessão creditícia e de participação dos infratores em licitações. [25]

Entretanto, a sociedade brasileira não pode ficar ao arbítrio dos parlamentares, que, submetendo-se a pressões de bancadas ruralistas, revelam cada dia mais a falta de vontade política e de compromisso com a erradicação do trabalho escravo no Brasil, permitindo que interesses meramente eleitorais se sobreponham ao dever de garantir a efetividade dos direitos humanos.

5.2.Direito de propriedade

A propriedade é direito fundamental do cidadão, assegurado pelo art. 5º, XXII, da Constituição Federal.

Entretanto, o próprio art. 5º, no inciso seguinte, XXIII, dispõe que "a propriedade atenderá a sua função social".

O art. 170, III, também prevê a mesma regra: "A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: função social da propriedade".

Mais adiante, o art. 186, III e IV, explica, verbis:

A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (grifei)

Visando à estrita observância da função social, estabelece o art. 184 da Carta Magna:

Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei (grifei).

Com efeito, resta claro que, se o imóvel rural não estiver cumprindo sua função social, com o respeito às normas trabalhistas e ao bem-estar dos trabalhadores, poderá ser desapropriado.

Assim, não assiste qualquer razão aos grandes proprietários rurais que submetem trabalhadores ao trabalho forçado e degradante, quando sustentam em suas ações judiciais que a "lista suja" fere o direito de propriedade.

Isso porque, como os demais direitos previstos no art. 5º da Constituição Federal, o direito de propriedade não é absoluto e ilimitado, devendo satisfazer necessariamente sua função social com o cumprimento dos requisitos elencados no art. 186, dentre eles os já mencionados: observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça também o bem-estar dos trabalhadores.

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Verificando-se em procedimento fiscalizatório - o qual, como ato administrativo goza de presunção de legitimidade - o descumprimento dessas determinações constitucionais e incluindo-se o nome do proprietário rural na "lista suja", evidenciado está que não é o direito de propriedade que está sendo violado pela Portaria nº 540 do Ministério do Trabalho e Emprego, até porque ainda não se verificou nenhuma desapropriação por esse motivo, mas sim a função social da propriedade é que está sendo maculada pelos infratores cujos nomes constam devidamente no banco de dados por ela instituído.

Como bem defende João Humberto Cesário:

Ora, se em última instância é legítimo à União, nos termos do § 2º do artigo 184 da CRFB, editar um decreto declarando o imóvel como de interesse social, para fins de instauração do procedimento de desapropriação, por certo será muito mais lícito que, por via dos Ministérios competentes, publique Portarias que visem coibir a existência da repugnante prática da servidão contemporânea.... [26]

5.3.Princípio da presunção de inocência

Também não prospera a idéia dos empregadores autuados de que a inclusão de seus nomes na "lista suja" só seria possível após condenação em processo penal competente com decisão transitada em julgado, haja vista gozarem do princípio constitucional da presunção de inocência previsto no inciso LVII do art. 5° da CF/88.

Tal dispositivo, limitado à seara penal, dispõe que: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", mas por não ser absoluto, admite exceções, como no caso de prisão cautelar, que não requer sentença transitada em julgado para ser efetivada.

Com efeito, é preciso analisar cada hipótese concreta, pois em certos conflitos principiológicos torna-se necessário priorizar a utilização de um princípio em detrimento a outro, com base na razoabilidade.

Independentemente disso, a questão em apreço não tem a ver com o princípio ora invocado, que a ela não se adequa.

Isso porque não se deve confundir a caracterização administrativa da redução à condição análoga à de escravo, que é inerente à atuação fiscalizadora do Ministério do Trabalho, com o ilícito penal previsto no art. 149 do Código Penal, porque o cadastro realmente se limita ao âmbito administrativo, não adentrando a esfera penal.

Portanto, mostra-se irrelevante o fato de não existir inquérito policial, denúncia ou mesmo condenação criminal, pois a penalidade aqui tratada é de caráter administrativo, visando à coibição da prática de condutas que atentem contra a dignidade humana do trabalhador e seus direitos trabalhistas mais elementares.

É importante relembrar que a Portaria nº 540/2004 é uma manifestação do poder de polícia administrativa do Ministério do Trabalho e do Emprego e não há de se confundir responsabilidade administrativa com responsabilidade penal. Somente para essa última faz-se necessária a condenação transitada em julgado.

5.4.Princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal

Melhor sorte não detêm os infratores constantes da "lista suja" no que tange ao argumento de que a inclusão de seus nomes fere os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.

Verifica-se que todo o procedimento a ser observado para a inclusão de nomes no Cadastro foi previamente determinado na Portaria nº 540/2004, até mesmo em cumprimento ao dever de publicidade dos atos da Administração Pública, conforme preceitua o art. 37 da Constituição Republicana.

A Portaria mencionada é expressa no sentido de que os nomes apenas são incluídos após decisão administrativa final exarada em procedimento de fiscalização, sendo certo, portanto, que é garantida a observância dos princípios aqui questionados, na esfera administrativa.

Assim orienta o art. 2º da Portaria: "A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão administrativa final relativa ao auto de infração lavrado em decorrência de ação fiscal em que tenha havido a identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo" (grifei).

Pelas informações do Ministério do Trabalho e Emprego, antes de haver inclusões, são analisados os relatórios de fiscalização, pesquisados os lançamentos contidos no sistema "Sisacte" para verificar a situação dos autos em tramitação na esfera administrativa - nos quais sempre é observado o direito ao pedido de revisão para autoridade administrativa superior àquela que lavrou o auto de infração - bem como realizadas consultas em bancos de dados do governo federal, respeitando-se assim a ampla defesa e o contraditório.

Ademais, também há a previsão de atualização semestral dos nomes consignados na lista, com a ciência pelo Ministério do Trabalho aos órgãos previstos no art. 3º da Portaria, os quais poderão solicitar informações e documentos referentes à ação fiscal que originou a inclusão dos nomes no cadastro, restando evidente a necessidade de que todo o procedimento seja efetuado dentro dos limites do devido processo legal administrativo.

Com a mencionada atualização, também há a possibilidade de exclusão dos nomes dos infratores que, ao longo de dois anos de monitoramento por parte da Fiscalização do Trabalho, não tiveram reincidência e quitaram as multas aplicadas e os eventuais débitos trabalhistas e previdenciários (art. 4°, caput e §1°, Portaria nº 540/2004), observada novamente a ciência aos órgãos expressos no art. 3º da multicitada norma.

Além disso, conforme já relatado anteriormente [27], os empregadores que recorrem ao Poder Judiciário visando à sua exclusão do cadastro e têm decisão favorável, vêem seus nomes imediatamente excluídos e assim permanecerem até eventual suspensão da medida liminar ou decisão de mérito. Havendo decisão judicial pelo retorno dos nomes à lista, esses passam novamente a nela figurar e para contagem do prazo de dois anos, é computado o tempo anterior de permanência.

Por todo o exposto, resta evidente o respeito aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal administrativo ao se proceder à inclusão de nomes de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condição análoga à de escravo na "lista suja".

5.5.Efeitos Morais

Por fim, há o argumento de que a introdução dos nomes dos proprietários rurais na "lista suja" acarreta-lhes danos irreparáveis, agressivo constrangimento, expondo sua identidade e sua integridade moral em todos os meios de comunicação, sob o argumento de ter submetido seus empregados à condição análoga a de escravo, impedindo-os de celebrar operações de crédito com bancos oficiais e inviabilizando suas atividades profissionais.

Primeiramente, cabe-nos a seguinte reflexão: Como pode, e que credibilidade possui, alguém que viola os direitos trabalhistas mais básicos, a honra e a dignidade humana de trabalhadores brasileiros, para alegar judicialmente que a inclusão de seu nome na "lista suja", por cometer tais ilícitos, está lhe causando danos morais, materiais e à sua imagem?

Antes de fazerem tais alegações, certamente os escravocratas não pensaram nos males maiores que causaram e podem ainda estar causando sem qualquer constrangimento ao lesionarem os direitos fundamentais de outrem.

É importante relembrar que a propagação do rol de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condição análoga à de escravo apenas cumpre o dever da Administração em fundar seus atos e ações no princípio da publicidade, sendo que o contrário implicaria em afronta direta ao caput do artigo 37 da Constituição Federal.

Aliás, como oportunamente expõe João Humberto Cesário:

se por um lado é possível vislumbrar o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação ao produtor autuado, será ainda mais fácil a visualização do perigo inverso, como no caso de que sociedade, por via da concessão de créditos públicos subsidiados, venha a financiar a produção privada daqueles que cometem o repugnante ato de reduzir trabalhadores a condição análoga à de escravo, em notória prevalência de interesses privados escusos sobre interesses sociais legítimos. [28]

As restrições que surgem da difusão dos nomes elencados no Cadastro decorrem da indignação social, até porque a Portaria nº 540/2004 do Ministério do Trabalho não impõe qualquer penalidade, possuindo caráter meramente informativo ao comunicar que a empresa cadastrada sofreu punição (auto de infração) por manter em seu ambiente laborativo trabalhadores em condições análogas às de escravo.

Em relação à possível limitação da concessão de créditos por bancos públicos ou até mesmo privados, também não é diferente, pois tal atitude deriva da consciência da sociedade brasileira de que é preciso não incentivar ou contribuir, mesmo que indiretamente, com a escravidão contemporânea, demonstrando das mais diferentes formas a repugnância a tal prática.

Como novamente salienta Cesário:

...decididamente não parece razoável que fazendeiros sérios, que observam rigorosamente a legislação trabalhista, devam disputar créditos públicos em pé de igualdade com aqueles que maltratam a dignidade do ser humano, sendo inquebrantável obrigação do Poder Executivo tratá-los de modo desigual, já que como é curial o princípio da isonomia, direito e garantia fundamental da sociedade (artigo 5º, caput, da CRFB), consiste em tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de modo desigual, na exata medida de suas desigualdades.

...importante constatar que a discutida restrição ao crédito sequer demandaria a edição das Portarias enfocadas, já que de há muito a Lei n. 9.029/95, no seu artigo 1º, proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória no âmbito da relação de emprego, cominando aos infratores, no seu artigo 3º, a ‘proibição de obter empréstimo ou financiamento junto a instituições financeiras oficiais. [29]

Seguindo essa corrente que defende a constitucionalidade da "lista suja" como instrumento legítimo que visa à erradicação do trabalho escravo no Brasil, há felizmente um grande número de juristas, dentre eles alguns juízes que vêm dando sua importante contribuição ao proferirem decisões que mantêm e consideram válida a inclusão dos nomes dos infratores no referido banco de dados.

Apenas para citar alguns exemplos:

CADASTRO DE EMPREGADORES QUE UTILIZAM MÃO-DE-OBRA EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO (LISTA SUJA); CONSTITUCIONALIDADE DA PORTARIA.

INCLUSÃO DO NOME DO IMPETRANTE. VALIDADE DO ATO. MANDADO DE SEGURANÇA. DENEGAÇÃO.

A edição da Portaria nº 540/2004, do MTE, empresta reverência aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, com destaque para a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (CF, art. 1º, inciso III e IV). Amolda-se a iniciativa ministerial, também, ao axioma constitucional que persegue a valorização do trabalho humano e a função social da propriedade, encartado no artigo 170, da Carta Política, erigindo-se em instrumento eficaz e indispensável para que o Estado brasileiro atenda ao compromisso internacional de combater a chaga do trabalho escravo em nosso território. O ato de inclusão do nome do empregador na lista em cogitação não encerra ato punitivo, tendo o cadastro natureza meramente informativa, não se evidenciando, pois, ilegalidade no ato praticado pela autoridade pública.

Segurança que se denega. Provimento que se concede ao recurso ordinário. [30]

PORTARIA Nº 540/2004 DO MINISTÉRIO DO TRABALHO E EMPREGO. CADASTRO DE EMPREGADORES QUE TENHAM MANTIDO TRABALHADORES EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO. A Portaria nº 540/2004 foi editada tendo em vista o disposto nos incisos III e IV do art. 186 da CF/88, segundo os quais a função social da propriedade rural é cumprida quando atendidos os seguintes requisitos, entre outros: a observância das disposições que regulam as relações de trabalho e a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. O ato administrativo que incluiu o nome do autor no cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas às de escravo goza de presunção de legitimidade e de veracidade, inserindo- se em esfera distinta da penal que, por sua vez, visa a detectar o cometimento de delito e a imputar pena privativa ou restritiva de liberdade, ou prestação de serviços à comunidade. Vale dizer, o poder de polícia judiciária (direito penal) incide sobre a pessoa do administrado, enquanto o poder de polícia administrativa incide sobre seus bens, direitos ou atividades, sendo, portanto, independentes. A conseqüência da inclusão do nome do autor no cadastro de que trata a Portaria nº 540/2004 não objetivou qualquer conseqüência em relação à sua pessoa, mas apenas limitou o exercício de direito individual em benefício do interesse público, porquanto constatada, pela equipe móvel do Ministério do Trabalho, a manutenção de 20 (vinte) trabalhadores laborando em condições análogas à de escravo. Daí porque a inserção do nome do autor no referido cadastro, sem a existência de precedente ação penal condenatória não implica malferimento aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da presunção de inocência. [31]

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Sobre a autora
Melina Silva Pinto

assistente de juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Melina Silva. A constitucionalidade da "lista suja" como instrumento de repressão ao trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1695, 21 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10970. Acesso em: 7 mai. 2024.

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