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A Súmula 122 do STJ e as contravenções penais

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Em recentíssima decisão, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu, à unanimidade, que incumbe à Justiça Federal o processamento e julgamento simultâneo de contravenção penal (transporte irregular de madeira) conexa com crime federal (apropriação indébita contra o Ibama), conforme ementa vazada nos seguintes termos: "CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONTRAVENÇÃO PENAL. CONEXÃO COM CRIME FEDERAL. SÚMULA 122/STJ. 1. Compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crime conexos de competência federal e estadual, não se aplicado a regra do artigo 78, "a", do CPP. 2. Conflito de competência conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da Vara de Imperatriz - SJ/MA, o suscitante". (STJ, CC nº 24215/MA, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. em 8.9.99, DJU de 27.9.99).

A leitura do corpo do julgado revela que, além da menção à Súmula nº 122 do STJ, encampou o colegiado, como razão de decidir, parecer ministerial onde restou consignado que: "havendo conexão entre crime praticado em prejuízo de autarquia federal e contravenção, entende-se que o Juízo Federal deva atrair a competência do julgamento de ambos os ilícitos para que não haja contradição de resultados."

A solução dada ao caso concreto pelo STJ já foi acolhida pela Câmara Criminal do Ministério Público Federal, embora por fundamento diverso, segundo o qual a contravenção penal é atraída para a competência da Justiça Federal em decorrência do fenômeno da "prorrogação processual" (cf. Proc. nº 3704/97-60, Rel. Subprocurador-Geral da República Claudio Fonteles).

Contudo, com a devida vênia, quaisquer dos fundamentos expostos não resistem à inteligência da norma inscrita no art. 109, IV, da Lex Mater. Dois aspectos relevantes parecem ter sido olvidados pelas decisões supracitadas: um deles, de interpretação constitucional; o outro, de índole processual.

A primeira - e principal objeção à adoção da vertente de pensamento em comento - diz respeito à circunstância de que, como é sabido, a competência da Justiça Federal foi listada taxativamente na Constituição da República, de sorte que não pode a legislação infraconstitucional ampliá-la ou reduzi-la, pena de incidir na eiva de inconstitucionalidade, vício mais grave que pode contaminar uma norma jurídica.(1)

Decorre, pois, que, tendo a Carta Política excluído expressamente da competência federal as infrações contravencionais (ou "delitos liliputianos"), mesmo que cometidas em detrimento da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, exsurge evidente que não pode prevalecer a norma do Código de Processo Penal (CPP) que estabelece, em regra, o simultaneus processus nos casos de conexão e continência processual.

Embora silente o CPP - até porque anterior à atual Lei Maior -, havendo conexão entre crime federal e contravenção penal, a hipótese comporta a aplicação analógica dos incisos do art. 79 da Lei do Ritos Penais, sendo obrigatória a cisão ou separação dos feitos, afastada a aplicação do verbete nº 122 da Súmula do STJ - que, aliás, só faz referência a "crimes" e não ao termo mais amplo "infrações penais" -, incumbindo à Justiça Federal o processo e julgamento do delito de sua competência e à Justiça Estadual o julgamento do tipo contravencional, por força da incidência das regras que norteiam a (in)competência em razão da matéria, de natureza absoluta, que não admitem derrogação em nome de supostas conveniências práticas de unificação da produção probatória e da inexistência de uma indigitada contradição entre os resultados dos julgamentos proferidos por dois juízos diferentes.

O Supremo Tribunal Federal, conquanto ainda não tenha se debruçado especificamente sobre a matéria em análise, já discutiu tema semelhante envolvendo o conflito aparente entre as normas do CPP regentes da conexão e continência e as disciplinadoras da competência do Tribunal do Júri e do foro especial por prerrogativa de função, estas últimas sediadas no Texto Magno, quando reconheceu a necessidade da bifurcação processual em crime doloso contra a vida perpetrado por uma pluralidade de agentes (continência por cumulação subjetiva), no qual um dos co-autores seja beneficiário de prerrogativa funcional de foro, porquanto, como é óbvio, os institutos e fenômenos processuais regulados no CPP devem ser interpretados em estrita consonância com as regras gerais de competência agasalhadas em matriz constitucional.

Eis parte da ementa do leading case acerca do assunto, ulteriormente seguido sem divergências por ambas as Turmas do Pretório Excelso, que consagra a indiscutível supremacia das normas constitucionais de competência sobre os dispositivos do CPP definidores do alcance dos institutos da conexão e continência: "Competência – Crime doloso contra a vida – Co-autoria – Prerrogativa de foro de um dos acusados – Inexistência de atração – Prevalência do Juiz Natural – Tribunal do Júri – Separação de processos. 1. A competência do Tribunal do Júri não é absoluta. Afasta-a a própria Constituição Federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o Estado, a competência de tribunais - artigos 29, inciso VIII; 96, inciso III; 108, inciso I, alínea "a"; 105, inciso I, alínea "a" e 102, inciso I, alíneas "b" e "c". 2. (...) 3. O envolvimento de co-réus em crime doloso contra a vida, havendo em relação a um deles a prerrogativa de foro como tal definida constitucionalmente, não afasta, quanto ao outro, o juiz natural revelado pela alínea "d" do inciso XXXVIII do artigo 5º da Carta Federal. A continência, porque disciplinada mediante normas de índole instrumental comum, não é conducente, no caso, a reunião dos processos. A atuação de órgãos diversos integrantes do Judiciário, com duplicidade de julgamento, decorre do próprio texto constitucional, isto por não se lhe poder sobrepor preceito de natureza estritamente legal...". (STF, Pleno, HC nº 669325/GO, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. em 17.6.92, RTJ 143/925).

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O outro fundamento da nossa irresignação, de ordem processual, reside na seguinte indagação: como é possível haver a prorrogação da competência jurisdicional da Justiça Federal para julgar uma infração penal (contravenção) que não se encontra originariamente em seu feixe de competências, por explícita exclusão constitucional?

Para ocorrer o fenômeno processual da prorogatio fori é indispensável que o mesmo juízo seja competente para julgar as duas causas, o que significa dizer, em outras palavras, que só pode haver prorrogação em hipóteses de incompetência relativa.(2) Portanto, faltando competência material - que produz a incompetência absoluta - para conhecer de uma das lides penais, será vedado cogitar-se de unicidade dos processos, especialmente porque seria parcialmente nula a sentença (objetiva ou subjetivamente complexa) que fosse prolatada em tais condições, conforme disposto no art. 564, I, do Código de Processo Penal, possibilitando, inclusive, o reconhecimento de ofício da nulidade pelo tribunal em grau recursal (TRF/4ª Região, HC nº 97.04.43699-8/RS, 2ª T., Rel. Juíza Tania Escobar, v.u., julg. em 28.8.97, DJU de 17.9.97).

É interessante registrar que, sob esse último ângulo, a matéria em foco já tinha sido anterior e acertadamente enfrentada pelo próprio STJ, precedente lamentavelmente esquecido quando do julgamento do CC nº 24.215/MA, em aresto assim ementado: "CONSTITUCIONAL. PENAL E PROCESSUAL. COMPETÊNCIA. CRIME E CONTRAVENÇÃO. FATOS DIVERSOS. I. Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de descaminho e à Justiça do Estado a contravenção penal - art. 109, IV, da Constituição. II - As denúncias oferecidas pelos representantes do Ministério Público Federal e Estadual não guardam identidade absoluta quanto aos fatos descritos. Além disso, somente se prorroga competência para juízo que possui competência para julgar as causas. III - A Súmula 52 do extinto Tribunal Federal de Recursos declarava competente a Justiça Federal para processar e julgar crimes conexos de competência federal e estadual. IV - Conflito não conhecido". (STJ, 3ª Seção, CC nº 12.351/RJ, Rel. Min. Jesus Costa Lima, julg. em 4.5.95, v.u., DJU de 5.6.95, p. 16630).

Em síntese, pode-se concluir que é manifestamente inconstitucional a interpretação que reputa inserida na competência da Justiça Federal o julgamento das contravenções penais, mesmo na eventualidade de ocorrer conexão ou continência com crime da competência federal, situação em que será imperiosa a separação dos respectivos processos penais condenatórios. Essa conclusão é extraída de uma exegese de direito estrito da norma inscrita no art. 109, IV, da Constituição da República, bem como dos princípios norteadores da competência em razão da matéria, que só admitem a prorrogação da competência jurisdicional se e quando o mesmo juízo for competente para julgar as duas causas penais. Fica dada a sugestão para um futuro aperfeiçoamento da redação do verbete nº 38 da Súmula do STJ, de modo a fixar a competência exclusiva da Justiça Estadual para o conhecimento das contravenções penais, ainda que se possa vislumbrar possível conexão ou continência com algum delito da alçada federal.


NOTAS
  1. Nesse sentido, confira-se o escólio do Juiz Federal Wladimir Souza Carvalho

("A Competência da Justiça Federal", 2ª ed., p. 13, ed. Juruá ), trazendo à baila diversas decisões dos nossos pretórios, inclusive da Suprema Corte.
  • Essa assertiva é pacífica entre os processualistas civis (Athos Gusmão Carneiro, "Jurisdição e Competência", Saraiva, 1993, p. 66), mas que encontra aplicação, da mesma forma, na seara do processo penal, consoante já pontificara, de há muito, o clássico magistério de José Frederico Marques ("Elementos de Direito Processual Penal", vol. I, Bookseller, 1997, p. 243), o que é compreensível não só diante da analogia (art. 3º do CPP), como também em face do princípio da indisponibilidade do interesse público que envolve a relação jurídico-processual penal.
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    Sobre o autor
    Aloísio Firmo Guimarães da Silva

    procurador da República no Rio de Janeiro

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    SILVA, Aloísio Firmo Guimarães. A Súmula 122 do STJ e as contravenções penais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1098. Acesso em: 23 abr. 2024.

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