4.A função social do contrato na tributação
A solidariedade social no campo tributário também sofre os reflexos do tema da função social do contrato. É que os contratos podem ser analisados sob a perspectiva de sua função econômica e/ou de sua função social. A função econômica dos contratos consiste na circulação de bens e serviços, com os reflexos daí decorrentes. É importante ressaltar que cada tipo contratual possui uma função econômica específica, que lhe é peculiar, como, por exemplo: troca (compra e venda, doação, permuta), crédito (mútuo), garantia (penhor, hipoteca, fiança), custódia (guarda e conservação de bens alheios, como depósito, estacionamento), laboral (contrato de trabalho, locação de serviços, comissão), previsão (seguro), recreação (turismo, espetáculos) etc. Com efeito, na hipótese de o exercício do direito à liberdade de contratar contrariar manifestamente a função econômica peculiar daquele tipo contratual – o princípio que justifica o contrato – ocorrerá abuso do direito de contratar. Com base nesses argumentos, DOUGLAS YAMASHITA defende que "(...) tal excesso só será manifesto se o exercício da liberdade de contratar perseguir finalidade ilegítima, constituir um meio incapaz para atingir a finalidade legítima, existir outro meio jurídico capaz e menos oneroso para realizar a finalidade legítima ou a liberdade de contratar impor um sacrifício desproporcional em relação à finalidade perseguida". [28]
Em relação à sua função social, o contrato deve observar critérios de justiça, de eqüidade, de boa-fé, para que a parte "forte" não tenha o direito de se aproveitar da credibilidade da parte "fraca", abusando de sua confiança através de cláusulas leoninas e abusivas. O atual Código Civil exige o cumprimento dessa diretriz em seu artigo 421, pelo qual "(...) a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato". No entanto, desde a edição da Lei de Introdução ao Código Civil – LICC – Decreto-Lei nº 4.657, de 04 set. 1942 – nosso ordenamento já previa que "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum" (art. 5º).
É imperioso advertir, no entanto, que a função social dos contratos não pode anular a função primária e natural dos contratos, que é a econômica, conforme bem acentua HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, autor que em boa hora nos lembra que o contrato é, antes de tudo, um fenômeno econômico e não uma criação do Direito. Esse autor adverte ainda que ao contrato cabe uma função social, mas não uma função de "assistência social". Por mais que o indivíduo mereça uma assistência social, não será no contrato que encontrará a solução para tal carência. Ou seja, o contrato é um instituto econômico com fins econômicos a realizar, os quais não podem ser ignorados, seja pela lei ou pelo aplicador da lei. [29] Para parte da doutrina, a função social dos contratos corresponde, no Direito Tributário, à eficácia positiva do Princípio da Capacidade Contributiva, previsto no artigo 145, § 1º da Constituição Federal de 1988. Nesse sentido é o pensamento de MARCO AURÉLIO GRECO [30] e também de DOUGLAS YAMASHITA [31].
Todavia, essa transposição para o Direito Tributário exige uma reflexão sobre o tema. Mesmo que se aceite que a liberdade de contratar deva adequar-se à função social do contrato, é de se indagar: que função social maior poderá ter um contrato senão aquela que justifica sua existência, ou seja, servir à circulação de riquezas, proporcionando segurança ao tráfego do mercado? Em primeiro lugar, portanto, deve-se assegurar a função natural e específica do contrato que lhe é primária dentro da vida social, qual seja a de propiciar a circulação da propriedade e emanações dela em clima de segurança jurídica – função socioeconômica. Apenas depois é que se pode pensar em limites dessa natural e necessária função. DOUGLAS YAMASHITA observa, nesse sentido, que:
A função social é um plus que se acrescenta à função econômica. Não poderá jamais ocupar o lugar da função econômica no domínio do contrato. Contrato sem função econômica simplesmente não é contrato. (...) Nessa perspectiva, pode-se afirmar que a função social não se apresenta como meta do contrato, mas como limite da liberdade do contratante de promover a circulação de bens patrimoniais (art. 421 do CC/2002). Em suma, função social e função econômica do contrato são coisas distintas. Uma não substitui nem anula a outra. Devem coexistir harmonicamente. (...) Portanto, sempre que um contrato cumpra sua função econômica típica (troca, crédito, garantia etc.), não há que se questionar se ele descumpre ou excede os limites impostos por sua função social. Não se pode prejudicar a função econômica em nome da função social. Em outras palavras, se o ato tiver um propósito econômico, jamais poderá ser desconsiderado em nome da função social do ato que se examina. [32]
Diante dos argumentos expostos, entendemos que a solidariedade social é, efetivamente, um valor a ser atendido, inclusive no âmbito tributário. No entanto, essa efetivação deve ter como instrumento, de forma especial, a eleição, pelo legislador, de hipóteses de incidência que revelem capacidade contributiva – aqui em sua acepção objetiva – assim como através da progressividade e da seletividade em relação aos impostos, o que viabiliza o atendimento da chamada capacidade contributiva subjetiva. Obviamente, o Poder Judiciário poderá e deverá, sempre que provocado, desconsiderar atos e negócios jurídicos contaminados por alguma ilicitude, tendo em vista a necessidade de coerência interna no ordenamento jurídico.
5.Solidariedade social, tributação e autonomia municipal
No sistema tributário brasileiro, a solidariedade social encontra uma aplicação importante no tema da "descentralização fiscal" própria do federalismo. CLÁUDIO SACCHETTO ensina que o dever de solidariedade sempre esteve ligado a atuações de entidades públicas tipicamente estatais, ou, se locais, financiadas pelo Estado, o que pode ter ocorrido em razão do Estado, pela função que lhe é inerente, sempre ter sido considerado como a sede de maior garantia, ou ainda devido à exigência de um tratamento estatal igual a todos os beneficiários da solidariedade, através de uma oferta de serviços equivalente a todos os cidadãos. [33]
Esse posicionamento, no entanto, não mais se justifica. O princípio da subsidiariedade, inerente à descentralização resultante do federalismo, "(...) exprime um valor e uma exigência democrática de eficiência e melhor governabilidade", pois "aproxima" o cidadão da entidade pública do governo, permitindo que com ele tenha um vínculo mais estreito, acentuando a relação entre tributação e serviços públicos, inclusive os que revelam, em seu conteúdo, um instrumento de busca da solidariedade social. [34] Conclui o autor, com proveito: "Pode-se, então, afirmar que hoje não só não existe incompatibilidade entre solidariedade e subsidiariedade, mas realmente sinergia", e que "A subsidiariedade pode ser um meio para responder ao problema da solidariedade/eficiência". [35]
A Constituição Federal de 1988 representa o fim do regime de exceção e o prestígio aos ideais democráticos. Não é por outra razão que a Lei Maior reiterou aos municípios sua condição de entes federativos, dotados de autonomia política, administrativa e financeira. A intenção constitucional, seguindo a orientação dos demais países democráticos, foi descentralizar recursos e poderes para as esferas locais, com o objetivo de estimular o exercício da cidadania e a democracia, verdadeiros ideais republicanos. Diante das dimensões territoriais do Brasil, os municípios brasileiros têm um papel fundamental nesse processo, assim como em razão do aumento na demanda da população por serviços na área social, os quais somente podem ser atendidos de forma mais personalizada e eficaz caso sejam prestados e fiscalizados pelos governos mais próximos ao cidadão.
Para uma maior eficácia da descentralização, os governos municipais devem deter o controle de suas próprias fontes de receitas, sob pena da inépcia da autonomia que lhes é inerente, resultando em uma dependência perversa da União Federal. Isso exige tornar eficaz o exercício das competências tributárias por parte dos Municípios, com a implantação de uma política de tributação que busque viabilizar a criação dos tributos autorizados pela Constituição, assim como a fiscalização e a cobrança dos tributos municipais no atual contexto jurídico, com a utilização de todos os expedientes aptos a evitar e desestimular a inadimplência e a evasão tributária, viabilizando, assim, a manutenção dos serviços públicos locais em um nível de excelência.
A adoção dessas medidas também se justifica diante da crescente transferência de responsabilidades sociais aos municípios, sem que isso represente, em todos os casos, uma necessária contrapartida de recursos, o que, por sua vez, dificulta a observância da Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao contrário disso, a União Federal prefere incrementar sua competência tributária mediante o aumento das contribuições sociais, tributos não sujeitos à repartição com os Estados e Municípios.
Nesse contexto, as receitas tributárias municipais, em especial a do ISS e do IPTU, são os instrumentos mais importantes para a realização da autonomia financeira dos Municípios, o que se tem intensificado devido à crescente participação, no mercado, da prestação de serviços tributáveis pelo ISS. Um exemplo disso é a atual possibilidade de tributação dos serviços bancários, para o que se faz necessário, apenas, sua previsão na lista de serviços, diante da infeliz jurisprudência que a entende como taxativa.
Os contribuintes municipais, por sua vez, têm o dever constitucional de recolher os tributos a que estão obrigados de forma lícita, no que se inclui não apenas a vedação dos ilícitos tributários tradicionais – dolo, fraude e simulação – mas também dos ilícitos resultantes de cláusulas gerais previstas no Código Civil, como a fraude à lei e o abuso de direito.. Com efeito, o Direito Tributário deve propiciar aos municípios instrumentos jurídicos que possibilitem questionar a validade de planejamentos tributários realizados pelos contribuintes municipais, como, por exemplo, a mudança das sedes de contribuintes que, embora estabelecidos em um município apenas para sujeitar-se à sua alíquota reduzida do ISS, prestam seus serviços, efetivamente, em municípios diversos. JOSÉ EDUARDO SOARES DE MELO ensina, sobre o assunto, que:
Embora o contribuinte tenha liberdade para instalar sua sede e o estabelecimento prestador de serviços nos locais que sejam de seu exclusivo interesse (princípio da autonomia da vontade que regra os negócios particulares), a atividade somente poderá ficar sujeita à alíquota menos gravosa se efetivamente possuir de modo concreto (e não apenas "caixa postal") um estabelecimento no Município. Um simples local que nada possui (bens, pessoas e instalações) representará mera simulação, cujos efeitos tributários podem ser desconsiderados. [36]
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal, já em 1980, entendia o seguinte:
Imposto sobre serviços. Escritório de contato. Competência tributária. A forma ou modalidade de atuação da empresa, por conveniência de sua organização, por si só não poderá afastar a competência tributária do Município, desde que caracterizada a ocorrência do fato gerador. Interpretação razoável (súmula 400). Recurso extraordinário não conhecido. [37]
Entretanto, caso a reestruturação das atividades do prestador dos serviços seja lícita, não se poderá questioná-la, apenas porque houve uma redução da carga tributária, já que ninguém é obrigado a escolher o caminho mais oneroso para a gestão de seus negócios. Nem mesmo o dever moral a isso impõe. LUCIANO AMARO confirma nossos argumentos:
Os limites da legalidade circundam, obviamente, o território em que a busca de determinada instrumentação para negócio jurídico não chega a configurar ilegalidade. Essa zona de atuação legítima (economia lícita de tributos) baseia-se no pressuposto de que ninguém é obrigado, na condução de seus negócios, a escolher os caminhos, os meios, as formas ou os instrumentos que resultem em maior ônus fiscal, o que, repita-se, representa questão pacífica. [38]
Diante do suporte doutrinário acima, concluímos, enfim, que o dever de observar o valor constitucional da solidariedade social, seja pelo legislador nacional, seja pelo dos municípios, cinge-se à efetiva observância do núcleo das regras-matrizes dos tributos municipais, como estabelecido na Constituição e, em conseqüência, dos respectivos critérios temporais e espaciais, para que se respeitem quando e onde ocorrem os fatos tributários, tudo com o objetivo de garantir a receita tributária ao ente legitimado para sua arrecadação. Os contribuintes, por sua vez, têm o dever de estruturar seus negócios sempre de forma lícita, pagando os respectivos tributos sempre em observância do Princípio da Legalidade, o qual deve, no entanto, ser invocado de forma sistemática com o restante do ordenamento jurídico, e não de forma a mascarar ilicitudes, o que certamente resultará em violação de outros valores constitucionais também relevantes.
Notas
01 Tributo e solidariedade social, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade social e tributação, São Paulo, Dialética, 2005, p. 142.
02 DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade em Direito Tributário, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 59-60.
03 DOUGLAS YAMASHITA, Princípio da Solidariedade..., op. cit., p. 160.
04 Solidariedade Social, Cidadania e Direito Fiscal, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade social e tributação, p. 128.
05 JOSÉ CASALTA NABAIS, Solidariedade Social..., op. cit., p. 128-129.
06Planejamento tributário, São Paulo, Dialética, 2004, p. 284.
07 CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de Solidariedade no Direito Tributário: o Ordenamento Italiano, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 11.
08Ibidem, p. 21.
09Ibidem, p. 23.
10Sistema Constitucional Tributário, 2.ed., São Paulo, Saraiva, 2006, p. 159-160.
11 HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação com Base na Solidariedade Social, in MARCO AURÉLIO GRECO e MARCIANO SEABRA DE GODOI (coord.), Solidariedade..., op. cit., p. 70-71.
12 DJ 02 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
13 HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação..., op. cit., p. 72.
14 DJ 23 abr. 1993 – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
15 HUMBERTO ÁVILA, Limites à Tributação..., op. cit., p. 73-74.
16Ibidem, p. 77.
17 CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 28.
18Curso..., op. cit., p. 89.
19 CLÁUDIO SACCHETTO, O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 36.
20 MARCO AURÉLIO GRECO, Planejamento...,op. cit., p. 281.
21Ibidem, p. 300.
22Ibidem, p. 301-302.
23 DOUGLAS YAMASHITA, Elisão e Evasão de Tributos: Limites à Luz do Abuso de Direito e da Fraude à Lei, São Paulo, Lex, 2005, p. 185.
24 MARCO AURÉLIO GRECO, Planejamento...,op. cit., p. 307.
25Ibidem, p. 307.
26 Um exemplo esclarece o raciocínio: um pai doa em vida todos os seus bens aos filhos, tendo em vista a alíquota do imposto sobre doações ser inferior ao imposto causa mortis. Em tal hipótese, ele não queria doar, pelo menos não naquele momento, mas o fez apenas para reduzir a carga tributária, que seria maior por ocasião do inventário.
27"Art. 188. Não constituem atos ilícitos: I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido; (...)."
28Elisão..., op. cit., p. 190.
29O contrato e sua função social, Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 95 et. seq.
30Planejamento...,op. cit., p. p. 456 e ss.
31Elisão..., op. cit., p. 192.
32Elisão..., op. cit., p. 193-194.
33O Dever de Solidariedade..., op. cit., p. 37. Registre-se que as expressões "estatais" e "locais", utilizadas por esse autor, equivalem, no contexto brasileiro, respectivamente, ao Estado – na acepção de soma de entes federados – e aos municípios.
34Idem.
35Ibidem, p. 40.
36Impostos Federais, Estaduais e Municipais, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2006, p. 267.
37 Recurso Extraordinário nº 92.883/RS – Disponível em <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 05 fev. 2007.
38Direito Tributário Brasileiro, 11. ed., São Paulo, Saraiva, 2005, p. 229-230.