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PL 1904/24: proteção à vida ou violação aos direitos humanos?

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O Brasil proíbe o aborto, mesmo em casos de estupro. O PL da Gravidez Infantil visa aumentar ainda mais as punições às vítimas, agravando a revitimização das mulheres.

Sabemos que no Brasil o aborto é permitido apenas para casos de risco de vida da mãe, anencefalia do feto e de estupro. A legislação atual muitas vezes coloca em perigo a vida das mulheres e gera revitimização para aqueles que sofreram abuso sexual.

O embaralhamento é criado em torno de quando o aborto é legal, quando é um direito e, ao mesmo tempo, quando este é definido como crime se não for feita sob as condições previstas em lei. Além disso, muitas mulheres desconhecem seus direitos e a verdadeira condição em que o aborto é legal em nosso país, o que faz com que muitas gestações decorrentes de estupro sejam levadas a termos por medo, culpa e principalmente, informações deturpadas que se propagam em nossa sociedade patriarcal.

Mesmo dentro das lacunas legais, em muitos casos, se exige uma prova da violência sexual, o que reforça a revitimização. (Movimento Elas Existem, 2021). Isso é extremamente cruel, afinal, atribuir mais uma tarefa burocrática, dolorosa e traumática a uma mulher que acabou de sofrer um momento de terror e violência extrema é desumano e causará, sem dúvida, grandes danos psicológicos à vítima.

Assim, a legalização do aborto é essencial para que este problema possa ser resolvido e as mulheres possam decidir de maneira autônoma sobre seu próprio corpo, garantindo sua integridade e dignidade. A revitimização ocorre porque o aborto não é legal para todas as vítimas de estupro e, portanto, uma distinção deve ser feita por elas. A dor é a mesma, a violência é a mesma, o que garante se alguém pode ou não abortar é a cor da calcinha que vestia, sua orientação sexual ou, pior ainda, se foi ou não a comprovada violência dos nove.  

Além disso, a inclusão do estupro como um crime hediondo pelo artigo 1º da Lei 8.072/90 que define quais são os crimes hediondos, torna-se ainda mais velada a importância da proteção das vítimas desta violência extrema, ao terem que levar a gestação resultante da violência a que foram submetidas a termo.

De acordo com o Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940), O aborto só é permitido para casos de perigo de vida da mãe, gravidez resultante de estupro e anencefalia do feto. Neste sentido, para que a mulher possa efetuar o aborto com base em estupro, é necessário que a gestante manifeste o desejo ao médico e seja confirmada por ao menos dois médicos que o feto é fruto de violência sexual.

No Brasil, a prova da violência sexual é feita com o exame de corpo de delito (art.158 do CPB), que é pericial e obrigatório, mas pode ser determinada apenas com base em solicitação da vítima. Assim, na prática, se a mulher comparecer a delegacia ou ao Hospital para denunciar o estupro, não é garantida que a mulher receberá um atendimento humano e adequado, pois, em ambos os casos, a mulher poderá lidar com profissionais que não estarão preparados para atender este tipo de situação.

Ademais, a grande maioria dessas mulheres desistem de dar queixa e contar para a família justamente por medo da rejeição e dos transtornos que terão de enfrentar após esse acontecimento. É muito comum que a denúncia da violência sexual seja realizada tardiamente e se a mulher decidir abortar em seguida, de acordo com as regras atuais, é negado a ela.

Ainda que negado o pedido para a maioria das mulheres, nem todas tem a condição psicológica e financeira de continuar com a gestação e, com isso, acabam tomando remédios abortivos clandestinos ou procurando clínicas sem estrutura para suportar o procedimento em condições saudáveis. Assim, mais e mais mulheres perdem a vida ou sequelas permanentes, ao invés de tentar garantir sua vida, saúde, integridade e recuperação das vítimas de trauma. Por outro lado, a vulnerabilidade das meninas, que muitas vezes são alvo de abusos dentro de casa e, muitas vezes muitas vezes não conseguem denunciar ou não têm condições de reconhecer a gravidez a tempo de decidir.

O Brasil é signatário do documento “Recomendações Técnicas Para o Atendimento de Mulheres e Adolescentes em Situação de Violência Sexual/ Estupro” que foi aprovado na II Conferência de Direitos Humanos e convida os Estados Partes a adotar medidas para garantir que todas as vítimas de violência sexual tenham efetivo acesso a informações sobre seus direitos.

É essencial dar prioridade aos direitos e à dignidade das vítimas de estupro, ao invés do feto, e a legalização do aborto é a chave para garantir isso, ao contrário do que estamos acompanhando na Câmara dos Deputados.

O Projeto de Lei 1904 de 2024, escrito pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), chamou a atenção de vários parlamentares, organizações e grupos que lutam pelo direito das mulheres. O objetivo do projeto, que ficou conhecido como PL da Gravidez Infantil, é impedir, principalmente, crianças que foram abusadas a terem um aborto após 22 semanas de gestação. A proposta diz que a vítima de um estuprador que aborta pode receber uma pena maior do que a de um condenado por abuso sexual. O texto da proposta prevê uma pena de 6 a 20 anos de prisão se o aborto for igualado ao crime de homicídio simples.

Essa modificação afeta principalmente as meninas porque a identificação da violência sexual pode ser difícil às vezes. E é difícil imaginar que uma criança estará grávida - família e o próprio desconhecimento da menina sobre seu corpo nem sempre avaliam os sintomas e até mesmo o crescimento da barriga. Como resultado dessa dificuldade de identificação, é descoberto mais tarde. Essa menina seria obrigada a continuar a gestação caso o PL seja aprovado com o conteúdo atual.

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Os efeitos de uma gestação e maternidade na infância são muito perigosos. Falamos verdadeiramente da perda dessas infâncias porque tem um impacto significativo na saúde mental e no índice de evasão escolar. O sonho e a vida dessas meninas serão realmente interrompidos.

Além disso, chama a atenção para o fato de que as punições aplicadas a mulheres que realizam o aborto podem ser maiores do que as aplicadas a um estuprador.


Qual é a implicação disso para os direitos das mulheres no Brasil?

É inquestionável que o PL foi escrito com o objetivo explícito de colocar mais obstáculos a um direito que já estava previsto na legislação desde 1940. Agora, o problema é a intenção de impedir o acesso a esse processo, que hoje no Brasil é bastante penoso.

Ao falarmos de uma mulher ou menina que não consegue acessar o procedimento e chega ao hospital ou à delegacia depois da 22ª semana de gestação, estamos falando de um sistema que falhou em identificar prontamente os casos de violência sexual. Portanto, estamos falando de uma falha do Estado, não da vítima.

A consequência disso é que essas mulheres e meninas são submetidas a uma condição que não permite a interrupção da gravidez, impondo um sofrimento que já foi considerado tortura por organizações internacionais e cria mais uma barreira que impede que esse procedimento seja realizado.

Além disso, criminalização do aborto tem um enorme impacto no reforço do estigma, tornando ilegal a prática ou realização do aborto e até mesmo o próprio aborto espontâneo. Quando aumentamos as penas, aumenta também o medo dos profissionais dos serviços de saúde em relação à prestação de cuidados.

Hoje, a maioria das mulheres processadas por abortos são denunciadas por profissionais de saúde que violaram o sigilo médico profissional: os serviços de saúde já não são necessários e nem sempre são um local acolhedor. Isto se torna mais difícil à medida que o estigma aumenta.

Essa é a realidade enfrentada por milhares de mulheres no Brasil. Se aumentarmos as penas, aumentarmos o estigma e tornarmos as coisas mais difíceis, isto irá piorar, deixando os profissionais de saúde cada vez mais receosos e as mulheres e meninas cada vez mais inseguras para procurar ajuda por medo de serem criminalizadas por aborto espontâneo ou até mesmo por uma possível gravidez.


Referências

BRASIL. Código Penal. Decreto-lei No 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 08 Nov. 2021.

Findling, C., & Martin, E. (2000). Admissibility of evidence involving in controlling unborn childbearing. International comparison. In IV Internacional, Citizens in conflict, the contraceptive void (pp. 345-358).

Gonçalves, J. S., & Codonho, F. (2011). Violência contra a mulher revisão de aspectos atuais para aplicação de protocolo de atenção em saúde da família. São Paulo.

LIMA, F. R. (1979, p. 462). Os crimes de aborto no anteprojeto do Código Penal.

União de Mulheres de São Paulo (s.d.). DENUNCIA PÓS-ESTUPRO: impunidade camuflada.

Valadares, E., & Davi, M. L. (2012). Atendimentos à saúde das mulheres em situação de violência contra os direitos reprodutivos.

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Sobre a autora
Isabela Maria de Resende Cavalcante

Graduanda em Direito e Relações Internacionais, Líder Regional da Girl Up, membro da Comissão de Direito Penal da OAB/Santos e Conselheira Municipal da Condição Feminina de Cubatão. Tenho alguns artigos aprovados internacionalmente :)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTE, Isabela Maria Resende. PL 1904/24: proteção à vida ou violação aos direitos humanos?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7653, 14 jun. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/109857. Acesso em: 2 jul. 2024.

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