1. Introdução
A decisão final do Supremo Tribunal Federal que declara a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado ou questionado tem eficácia contra todos (efeitos erga omnes) e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
O presente trabalho tem por objetivo trazer à reflexão os efeitos da declaração de inconstitucionalidade no plano das situações concretas já constituídas e baseadas em ato normativo declarado inconstitucional, tanto entre partes privadas como os que envolvem o Poder Público e conforme restará demonstrado esses atos singulares, em determinadas circunstâncias, não deverão sofrer os reflexos da referida decisão.
2. Os efeitos da decisão proferida em sede de ação declaratória de inconstitucionalidade
O efeito vinculante na ação direta de inconstitucionalidade foi novidade introduzida pelo legislador ordinário (Lei n. 9868/99, art. 28, parágrafo único), não obstante já existente no sistema jurídico nacional para a ação declaratória de constitucionalidade, por força da Emenda Constitucional nº 03/93.
Todavia, apesar de várias discussões da doutrina acerca da constitucionalidade deste dispositivo legal que estabeleceu o efeito vinculante também para a ADIN, a controvérsia restou superada em razão do advento da EC n. 45/2004, que, dando nova redação ao §2º do art. 102 da Constituição Federal, atribuiu efeito vinculante à decisão proferida em sede de ação direta de inconstitucionalidade, conforme o disposto no §2º, in verbis:
As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade (...) produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.
De igual forma, é cediço que somente a conclusão da sentença ou do acórdão, isto é, a sua parte dispositiva, obtém a autoridade de coisa julgada, já que o relatório (que é mera narrativa e não contém juízo de valor) e tampouco a fundamentação, conforme disposição expressa do art. 469 do CPC, não fazem coisa julgada no âmbito dos processos subjetivos. Ocorre, porém, que quando se trata de controle abstrato de constitucionalidade, se consagrou a "teoria da transcendência dos motivos determinantes", como expôs com propriedade Pedro Lenza [01], na medida em que o Supremo Tribunal Federal vem considerando que os fundamentos resultantes da interpretação da Constituição quando realizada em sede de controle abstrato devem ser observados por todos os tribunais e autoridades ao decidir questão a eles submetida, sob pena de ofensa à coisa julgada, diante da eficácia vinculante da referida decisão.
3. A declaração de inconstitucionalidade diante da mudança das relações fáticas
Outra questão que era objeto de discussão entre os doutrinadores dizia respeito à eventual vinculação do Tribunal no caso da declaração de constitucionalidade. Questionava-se quanto à possibilidade do Tribunal declarar posteriormente a inconstitucionalidade da norma declarada constitucional.
Há quem entendia que a força de lei da decisão da Corte Constitucional que confirmava a constitucionalidade revelar-se-ia problemática se o efeito vinculante geral, que se lhe reconhece, impedisse que o STF se ocupasse novamente da questão. Neste sentido é possível citar o doutrinador Luís Roberto Barroso, ao afirmar, in verbis:
Nada obstante, como já se estudou detidamente em capítulo anterior, a decisão que por maioria absoluta venha a considerar constitucional a norma apreciada – como a que julga procedente a ação declaratória ou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade – não impede que mais adiante se venha a impugnar, em controle por via principal, concentrado e abstrato, sua validade. É que, como assentado, podem sobrevir mudanças no ordenamento constitucional, na situação de fato subjacente à norma ou até mesmo na própria percepção do direito que deve prevalecer em relação a determinada matéria. Por essa razão, não preclui para o próprio Supremo Tribunal Federal a possibilidade de voltar a se manifestar sobre a matéria, se assim alvitrar [02].
Neste sentido, já se manifestou o STF conforme voto do Ministro Carlos Mário Velloso no julgamento QO na ADC 1-DF, quando interpretou a norma inscrita na EC nº 03/93. No referido julgamento ele se manifestou no sentido de que a declaração de constitucionalidade de lei não impede, a meu ver, diante da alteração das relações fáticas ou da realidade normativa, a propositura da ação direta de inconstitucionalidade.
Acrescente-se ainda que alguns doutrinadores estrangeiros, por entenderem que a validade da lei não depende da declaração judicial e que ela continua em vigor mesmo após a decisão, tal como vigorava anteriormente, não fica o legislador, portanto, impedido de alterar ou até mesmo de revogar a norma em apreço. [03]
Desse modo, ao contrário do que se passa com o reconhecimento da inconstitucionalidade de determinada norma, a declaração de sua constitucionalidade não produz qualquer efeito objetivo, já que a lei declarada constitucional continua com o seu ciclo normal de vida, dotada de vigência e validade, já agora remarcadas pela certeza jurídica que se formou.
4. O controle de constitucionalidade e a "mitigação" da teoria da nulidade
Ademais, como o último comentário acerca da natureza da decisão que reconhece a inconstitucionalidade, é mister ressaltar que vige no Brasil, como regra geral, o entendimento de que a declaração de inconstitucionalidade implica na pronúncia de nulidade ab initio da lei ou ato normativo atacado. A decisão, segundo a doutrina é de natureza declaratória, pois apenas reconhece um estado preexistente. [04]
Em virtude disso, a decisão produz efeitos ex tunc bem como efeitos repristinatórios, ou seja, restabelece a legislação anterior revogada pela lei declarada nula. A própria Lei nº 9.868/99, no § 2º, do art. 11, prevê esse efeito restaurador para a medida cautelar, ao dispor que a concessão da medida cautelar torna aplicável a legislação anterior acaso existente, salvo expressa manifestação em sentido contrário.
No entanto, o próprio STF, por razões de segurança jurídica, diante do disposto no art. 27 da Lei n. 9868/98, admite a flexibilização dos efeitos temporais em relação à decisão que declara a inconstitucionalidade. Além disso, é possível diante da existência de uma ampla discussão judicial acerca da constitucionalidade de determinado dispositivo que se possa estabelecer uma eficácia puramente prospectiva da decisão ou de algum outro modo restringir seus efeitos, com base no juízo de ponderação previsto naquela norma, levando-se em conta a segurança jurídica ou excepcional interesse social.
Consoante os ensinamentos do doutrinador Luís Roberto Barroso, de acordo com o art. 27 da Lei nº 9868/99, o Tribunal pode: a) restringir os efeitos da decisão, excluindo de seu alcance, por exemplo, categoria de pessoas que sofreriam ônus ponderado como excessivo ou insuportável; b) não atribuir efeito retroativo a sua decisão, fazendo-a incidir apenas a partir do seu trânsito em julgado; e c) até mesmo fixar apenas para algum momento no futuro o início de produção dos efeitos da decisão, dando à norma uma sobrevida [05].
O STF também pode limitar a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade em sede abstrata, para dela excluir certas situações (como, v.g., excluindo alguns atos expedidos ou algumas relações constituídas sob a égide da lei declarada inconstitucional ou até algumas pessoas que a princípio seriam alcançadas pela decisão [06]).
É mister ressaltar que o STF tanto pode reconhecer a improcedência da ação declaratória de constitucionalidade como a procedência da ação direta de inconstitucionalidade, o que enseja, em ambos os casos, a declaração de inconstitucionalidade da lei questionada.
Ora, é cediço que a decisão do STF que declara a inconstitucionalidade de uma norma produz efeitos imediatos no plano normativo, atuando o referido Tribunal como legislador negativo, ao retirar a eficácia e a aplicabilidade da lei.
Assim, a dúvida reside quanto à eficácia da declaração de inconstitucionalidade em relação aos atos singulares praticados com base no ato normativo declarado inconstitucional.
Se o princípio da supremacia da Constituição é o fundamento da própria existência do controle de constitucionalidade, o STF pode dosar os efeitos retroativos da decisão, valendo-se de um juízo de ponderação entre a norma violada e as normas constitucionais que justificam a preservação dos efeitos do ato inconstitucional, tais como moralidade, boa-fé, coisa julgada, irredutibilidade dos vencimentos, razoabilidade, dentre outras, o que enseja uma espécie de "mitigação" à teoria da nulidade.
5. A declaração de inconstitucionalidade e os atos singulares praticados com base no ato normativo declarado inconstitucional.
No plano das situações concretas já constituídas em decorrência de atos jurídicos individuais, tanto entre partes privadas como os que envolvem o Poder Público, essas decisões deverão sofrer os reflexos da decisão, merecendo, todavia, maior cautela no julgamento.
Apesar da ordem jurídica brasileira não conter regra expressa sobre o assunto, concebe-se a proteção ao ato singular, de acordo com a doutrina, procedendo-se à diferenciação entre o efeito da decisão no plano normativo e no plano singular mediante a utilização das fórmulas de preclusão [07].
Enquanto o direito alemão prescreve a intangibilidade dos atos não mais suscetíveis de impugnação, o direito brasileiro não contempla de forma expressa tal possibilidade. No entanto, não é razoável admitir que a declaração de inconstitucionalidade possa afetar todos os atos praticados com fundamento na lei inconstitucional, consoante entendimento doutrinário a seguir transcrito:
Os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade. Em outros termos, somente serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade com eficácia geral os atos ainda suscetíveis de revisão ou impugnação.
Pode haver casos, por exemplo, em que o desfazimento de situações constituídas com base no ato considerado inválido exija um devido processo legal, administrativo ou judicial. Um contrato que vigore de longa data entre particulares ou entre administrado e Administração no qual o primeiro já tenha cumprido sua parte na obrigação. Nessas situações, deve ser resguardada a boa-fé ou prevalecer a segurança jurídica ou ainda ser impedido o enriquecimento ilícito, dentre outros.
6. Conclusão
Em virtude disso, a utilização das fórmulas de preclusão, permite afirmar que os atos praticados com base na lei inconstitucional que não mais se afigurem suscetíveis de revisão não são afetados pela declaração de inconstitucionalidade, no entanto, aqueles atos suscetíveis de revisão ou impugnação serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade diante da sua eficácia erga omnes.
Desse modo, a declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado de modo geral produzirá efeitos contra todos, ou seja, erga omnes e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, assim como também terá efeito retroativo, ex tunc, retirando do ordenamento jurídico o ato normativo ou lei incompatível com a Constituição.
Pelo exposto, da mesma forma que o STF poderá, por maioria qualificada de 2/3 de seus ministros, restringir os efeitos da declaração ou decidir que ela só venha a ter eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado, tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, conforme o disposto no art. 27 da Lei n. 9.868/99, os atos já exauridos praticados com base na lei inconstitucional e não suscetíveis de revisão, excepcionalmente, como exceção à regra geral do princípio da nulidade, não serão afetados pela declaração de inconstitucionalidade.
Notas
01 Apud DA CUNHA JUNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. Salvador,: JusPODIVM, 2006, 186 p.
02In O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. d. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, 213 p.
03 MAUNZ, Theodor et al. Bundesverfassungsgerichtsgesetz: Kommentar. cit. n. 42; GUSY, Christoph. Parlamentarischer Gesetzgeber und Bundesverfassungsgericht. Berlim, 1985, 223 p.
04 DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. Salvador, JusPODIVM, 2006, p. 187-188. Assinala ainda o autor que no direito português havia previsão constitucional de modulação da eficácia temporal da decisão declaratória de inconstitucionalidade e que tal possibilidade também foi proposta no Brasil na Assembléia Constituinte de 1986-88 a fim de autorizar o STF a determinar se a lei declarada inconstitucional em sede abstrata haveria de perder eficácia ex tunc ou se a decisão deixaria de ter eficácia a partir da data de sua publicação, todavia, a referida proposta foi rejeitada.
05In O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. 2. d. rev e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, 187 p.
06 DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle de Constitucionalidade: Teoria e Prática. Salvador: JusPODIVM, 2006, 190 p.
07 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p.1215-1216.