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Ação negatória de paternidade entre pais casados

29/02/2008 às 00:00
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O tema não é despido de polêmicas, e é primando pela concisão e objetividade que passamos a abordá-lo.

A ação negatória de paternidade que será discutida no presente trabalho é a que decorre da filiação resultante do casamento, que é particular, em face das presunções legais quanto à relação paterno biológica dos filhos havidos no andar do matrimônio.

O art. 1.597 do Código Civil estabelece a presunção de paternidade do marido quanto aos filhos concebidos na constância do casamento, nascidos logo após, ou, ainda, decorrentes de fecundação artificial homóloga (material genético do casal), concepção artificial homóloga (material excedente do casal com fecundação fora do corpo da mulher, a qualquer tempo) e inseminação artificial heteróloga (com material genético de terceiro).

Um dos efeitos dessa presunção é a permissão para que apenas um dos cônjuges compareça ao cartório de registro civil a fim de comunicar o nascimento do filho e documentá-lo através da certidão expedida pelo cartório.

A doutrina, comentando os julgados de nossos tribunais, tem apontado a perda de espaço que as presunções inseridas no art. 1.597 vem sofrendo, ante a sacralização do exame de DNA, que mesmo sendo questionável acaba suplantando os efeitos decorrentes das presunções de paternidade previstas em nossa legislação civil.

Diante do que foi exposto, para os fins deste trabalho, podemos conceituar a ação negatória de paternidade como o meio processual adequado para levar ao estado-juiz a pretensão de afastar a paternidade biológica do genitor casado, demonstrando a relatividade das presunções do art. 1.597, e requerendo seu afastamento no intuito de excluir a paternidade junto ao registro civil, barrando direitos consagrados legalmente, como é o caso dos alimentos e da herança.

Quanto a legitimidade para iniciar a lide, o art. 1.601 prevê o direito exclusivo do cônjuge varão, havendo discussão em sede doutrinária quanto a possibilidade do curador do marido interditado ingressar com o feito, sobre o que concordam Arnaldo Rizzardo (2004, pg. 429) e Carlos Roberto Gonçalves (2005, pg. 284). No mesmo artigo, em seu parágrafo único, é franqueado aos herdeiros dar continuidade ao feito no caso de falecimento do marido.

No pólo passivo deve figurar o filho, no caso de falecimento deste é conferida legitimidade aos herdeiros para prosseguirem no feito. Nesse particular, Carlos Roberto Gonçalves afirma que a genitora sempre deve fazer parte do pólo passivo quando tenha levado a registro a paternidade discutida (2005, pg. 284).

Também há divergência doutrinária quanto aos fundamentos do pleito promovido pelo pai duvidoso. O Código Civil elenca situações que podem embasar a negatória, porém, das lições de Carlos Roberto Gonçalves colhe-se que foram suprimidas todas as limitações à contestação da paternidade, ou seja, o fundamento não fica restrito as hipóteses legais (2005, pg. 286).

Passamos a falar das hipóteses, portanto.

A primeira encontra-se prevista no art. 1.599, e ocorre no caso de prova da impotência do cônjuge para gerar à época da concepção. Maria Helena Diniz afirma que a impotência pode ser tanto a coeundi (inaptidão para a prática do ato sexual) como a generandi (esterilidade) (2002, pg. 388).

O art. 1.597, V, do Código Civil que prevê a presunção de paternidade dos filhos havidos por inseminação artifical heteróloga, exige a prévia autorização do marido, sendo assim, ausente a manifestação a presunção resta afastada. Quanto a este dispositivo, é pertinente destacar que existindo a autorização a presunção torna-se absoluta, pelo menos esse é o teor no enunciado nº. 258 do CJF que assim dispõe: "Não cabe a ação prevista no art. 1.601 do CC, se a filiação tiver origem em procriação assistida heteróloga, autorizada pelo marido nos termos do inc. V do art. 1.597, cuja paternidade configura presunção absoluta.".

O art. 1600, por sua vez, fala na impossibilidade de ilidir a presunção paterno filial no caso de adultério, ainda que confessado pela mãe. Caio Mário da Silva Pereira sustenta que "não tem sentido manter-se a presunção da paternidade quando se comprove o adultério, se não foi aliado a outras provas que demonstram o efetivo desrespeito ao cônjuge." (Instituições de Direito Civil. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 14 ed. vol 5. p. 329). Maria Helena Diniz , citando Barros Monteiro, admite o adultério como prova complementar. (Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2002. 18 ed. vol. 5. p. 389).

Por derradeiro, o art. 1.602 estatui que nem mesmo a confissão materna basta para excluir a paternidade, o que se explica pela possibilidade de que a manifestação, segundo Maria Helena Diniz, citando Clóvis Bevilacqua, "pode ser fruto de alguma vingança, desespero ou ódio." (obra citada. p. 389).

A doutrina fala em outras hipóteses, e cita exemplos, os quais se resumem na comprovação pela parte de que não havia possibilidade do casal ter mantido relações sexuais à época da concepção.

Processualmente, é tida como obrigatória a intervenção do Ministério Público, e a decisão proferida deve ser averbada no registro de nascimento (Lei n. 6.015/73, art. 29, § 1º , b), tendo efeito erga omnes.

Outro ponto de embate, é a imprescritibilidade da ação, que vem prevista na parte final do art. 1.601. Arnaldo Rizzardo entende que "o estado da pessoa constitui emanação da personalidade, sendo indisponível." (Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 2 ed. vol. 5. p. 502). Enfim, concorda com a imprescritibilidade. Em sentido contrário, Tartuce e Simão afirmam que "não há que se falar em imprescritibilidade. Trata-se de tutela desconstitutiva que, portanto, está sujeita a decadência de acordo com o critério científico de Agnelo Amorim Filho. Ademais conforme lição que se extrai da Teoria Geral do Direito Civil a imprescritibilidade só atinge a pretensão e não a ação."(TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil. Família. São Paulo: Método, 2007. 2 ed. vol. 5. pg. 303).

O que foi aventado até o presente momento reflete a exege do texto legal. Na prática, temos o surgimento de dois panoramas, que ganharam vida nos tribunais pátrios e se resumem ao que segue.

O entendimento mais ultrapassado, mas ainda em voga, reconhece que as possibilidades de fundamentar a ação negatória não ficam adstritas as previsões legais, podendo serem fundadas em motivos outros. Para estes, o que determina essa mudança de paradigma é o surgimento e a evolução do método de exame através do DNA, do qual decorre a chamada verdade real ou verdade biológica, tida como sacra, e que tem resolvido os processos sem atentar-se para a possível falibilidade do exame.

Isso é patente nas ações de investigação de paternidade, mais corriqueiras, e onde o resultado do exame de DNA têm se revelado como a rainha das provas.

Quanto a prevalência da dita verdade biológica, colacionamos um julgado recente do Superior Tribunal de Justiça, que reformou decisão proferida no Rio Grande do Sul:

Direito civil. Família. Recurso especial. Ação negatória de paternidade. Exame de DNA. - Tem-se como perfeitamente demonstrado o vício de consentimento a que foi levado a incorrer o suposto pai, quando induzido a erro ao proceder ao registro da criança, acreditando se tratar de filho biológico. - A realização do exame pelo método DNA a comprovar cientificamente a inexistência do vínculo genético, confere ao marido a possibilidade de obter, por meio de ação negatória de paternidade, a anulação do registro ocorrido com vício de consentimento. - A regra expressa no art. 1.601 do CC/02, estabelece a imprescritibilidade da ação do marido de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, para afastar a presunção da paternidade. - Não pode prevalecer a verdade fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA. - E mesmo considerando a prevalência dos interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menor socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das conseqüências, inclusive materiais, daí advindas. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 878954 / RS RECURSO ESPECIAL 2006/0182349-0 Relator(a) Ministra NANCY ANDRIGHI (1118) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA. Data do Julgamento: 07/05/2007. Data da Publicação/Fonte: DJ 28.05.2007 p. 339).

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Mais modernamente surge uma nova corrente, inspirada nos novos princípios que norteiam o direito de família, florescidos com a promulgação do texto constitucional de 1988.

Essa nova corrente pauta seu entendimento em um princípio específico, o da afetividade. Quanto ao princípio, lição da nova guarda civilista brasileira, bem representada por Tartuce e Simão:

"O afeto talvez seja apontado, atualmente, como o principal fundamento das relações familiares. Mesmo não constando a expressão afeto no Texto Maior como sendo um direito fundamental, podemos dizer que o mesmo decorre da valorização constante da dignidade humana. (...) A valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, jurista de primeira grandeza, escrito no início da década de 80, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho." (obra citada, 2007, p. 39).

Essa nova corrente não admite o acolhimento da negatória de paternidade quando entre o pai duvidoso (biologicamente) e o filho tenha havido intensificação das relações afetivas a ponto de estar presente o afeto paternal, havendo este, deve-se julgar improcedente o feito, mantendo o vínculo entre as partes, agora não sob o enfoque biológico e sim sob o aspecto afetivo.

Nesse sentido, temos:

NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. IMPROCEDÊNCIA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Ainda que o autor, pai registral, não seja o pai biológico da ré, mantém-se a improcedência da ação negatória se estabelecida a paternidade socioafetiva entre eles. Em se tratando de relação de filiação não se pode compreender que seja descartável, ao menos em casos como o presente onde efetivamente se estabeleceu a afetividade, e a ré nasceu e formou sua personalidade tendo como pai o autor. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70018465104, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Ataídes Siqueira Trindade, Julgado em 04/10/2007)

Isto posto, conclui-se que o tema não é pacífico, o que é comum quando falamos em direito de família, mormente nos tempos atuais onde as relações pessoais, tanto dentro quanto fora do âmbito familiar, tem se revelado extremamente conflitantes. Particularmente, nos filiamos a corrente pautada no princípio da afetividade, porém, salientamos que o tema ora abordado carece de maiores estudos, inclusive com o auxílio de ciências afins ao debate jurídico, visando, precipuamente, o bem estar dos menores.


2. BIBLIOGRAFIA

RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família: Lei n. 10.406 de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 2. ed. 1032 p.

DINIZ, Maria Helena. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2004. 19 ed. 612 p.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. São Paulo: Atlas, 2005. 5 ed. 525 p.

TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito Civil: Direito de Família. São Paulo: Método, 2007. 2 ed. 480 p.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 13 ed. 321 p.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2005. 649 p.

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Sobre o autor
Marcio de Lima

Bacharelando em Direito pela Universidade Regional de Blumenau. Estagiário do Fórum da Comarca de Blumenau (SC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Marcio. Ação negatória de paternidade entre pais casados. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1703, 29 fev. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10999. Acesso em: 19 abr. 2024.

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