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A descriminalização da posse de maconha para uso próprio

01/07/2024 às 18:02
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Examina-se a decisão que trata da descriminalização da posse de cannabis sativa para consumo próprio, do procedimento para formalização da apreensão, quando for o caso, e da fixação de parâmetros para classificação de usuário de drogas.

O presente estudo busca trazer esclarecimentos a respeito da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema 506 (Repercussão Geral – Recurso Especial 635659), sobre a descriminalização da posse de maconha par uso próprio.

Primeiramente, vale registrar que nem toda droga é ilícita, pois o termo “droga” significa toda substância usada com propósitos químicos, farmacêuticos, em tinturaria etc. (RIBEIRO). Portanto, há drogas de uso liberado, de uso controlado – em diferentes níveis, a depender de suas especificidades –, e as de uso proscrito – proibidas, aqui compreendidas a cocaína, o crack, etc. As drogas de uso proibido estão elencadas no Anexo I, da Portaria nº 344/1998 da Secretaria da Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.

Em segundo lugar, o uso de drogas – ainda que ilícitas – não é proibido, pois implica em autolesão, do contrário, o Estado estaria interferindo na autodeterminação do indivíduo. Logo, o consumo/uso de drogas não é criminalizado, mas sim a posse, a compra, a guarda, o depósito, o transporte, o porte de drogas para consumo próprio:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

O debate acerca da criminalização da posse de drogas para uso próprio não é recente, porém, devido a inúmeros fatores – como o avanço do tráfico, facilidade de acesso, questões sociais e familiares – a questão veio ganhando relevância ao longo dos anos, seja pela questão primária da razão de existir do próprio crime.

Melhor discorrendo a respeito desse ponto, as lições de Cleber Masson e Vinicius Marçal (2019, p. 31/32):

1ª posição: O art. 28 da Lei de Drogas é inconstitucional, por violação ao direito à intimidade, à autodeterminação e à dignidade da pessoa humana. Ademais, a criminalização do porte de droga para consumo pessoal contraria o princípio da alteridade, pois a conduta causa prejuízo somente a quem praticou. Nessa perspectiva, Luís Greco aduz que“a posse de droga para consumo próprio é um comportamento que não ultrapassa a esfera de autonomia e que portanto não pode ser proibido.”No mesmo embalo, a concepção de Zaffaroni, para quem“viola o princípio da lesividade ou ofensividade a proibição de porte de tóxicos para consumo próprio em quantidade e forma que não lesione nenhum bem jurídico alheio.”

2ª posição: a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal é constitucional. A razão jurídica da punição daquele que adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou traz consigo para uso próprio“é o perigo social que sua conduta representa. Mesmo o viciado, quando traz consigo a droga, antes de consumi-la, coloca a saúde pública em perigo, porque é fator decisivo na difusão dos tóxicos. O toxicômano normalmente acaba traficando, a fim de obter dinheiro para aquisição da droga, além de psicologicamente estar predisposto a levar outros ao vício, para que compartilhem ou de seu paraíso artificial ou de seu inferno.” Da conduta do usuário emana, pois,“um evidente perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, de natureza difusa, ou seja, titularizado por toda a sociedade, que é a saúde pública. Afirmar-se o contrário é esquecer que o ser humano não é uma ilha, como já se disse, e, assim, relaciona-se com os demais indivíduos em sociedade.”. (grifou-se).

Além disso, há questões de ordem prática envolvendo o crime em tela, por ex.: um usuário de drogas dificilmente deixará de usá-las por ter sido autuado, ou mesmo condenado, pelo crime de posse para uso, não sendo raras autuações reiteradas dos mesmos usuários.

E há um volume muito relevante de autuações de usuários, que acarretam o registro de Termos Circunstanciados, que, por sua vez, deverão ser formalizados pela polícia e, após encaminhados ao Poder Judiciário, exigindo força de trabalho de, no mínimo, Polícia, Judiciário e Ministério Público, acarretando gasto de tempo e recursos humanos que poderiam estar sendo utilizados para investigações e processamento de crimes de maior relevância social (como o próprio tráfico de drogas).

Esclarecidas essas questões, o STF, no julgamento do Tema 506 (Repercussão Geral), fixou a seguinte tese:

1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em Juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da Lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/2006, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao Delegado de Polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.

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Os principais pontos da tese dizem respeito à descriminalização da posse de cannabis sativa para consumo próprio; à adoção de procedimento próprio para formalização do indivíduo que tiver consigo drogas apreendidas; e à fixação (temporária) de parâmetros orientativos objetivos para classificação de usuário de drogas.

Os votos dos Ministros – até o momento em que elaborado esse artigo – ainda não foram publicados, porém é possível, de antemão, fixar alguns pontos para a razão de decidir.

Descriminalização para quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa: a cannabis – maconha – é uma das drogas ilícitas que causam menos efeitos adversos no usuário, o risco de dependência é baixo, há uma tendência mundial na descriminalização – alguns estados dos EUA, México Holanda, Espanha, Portugal, Alemanha, Argentina, Uruguai, Chile, etc. (SANCHEZ, 2015) – e dificilmente um indivíduo sob efeito de maconha é agressivo – diferente do que ocorre com cocaína, oxi, carck, álcool (droga lícita) por ex. Também é uma droga pouco relacionada com o cometimento de crimes para suprir a dependência do usuário.

Outrossim, houve descriminalização somente quanto à maconha, todas as outras drogas ilícitas seguem configurando o crime do art. 28 da Lei de Drogas.

Adoção de procedimento próprio para formalização do indivíduo que tiver consigo drogas apreendidas: a maconha continua sendo droga ilícita. A decisão do STF não altera a Portaria nº 344/1998 da SVS. Portanto, a cannabis será apreendida (ainda que esteja sendo portada por usuário) e remetida à análise e destruição, não havendo possibilidade legal de restituição – salvo naqueles casos em que for destinada a uso medicinal, como os salvos condutos já expedidos pelo STJ para uso e cultivo para tratamento de epilepsia, por ex.

Como se tratará de apreensão de drogas, deverá ser elaborado o devido registro de ocorrência policial e o auto de apreensão das drogas.

Em relação ao usuário, acredita-se que continuará sendo mencionado nos autos policiais, mas com outra classificação que não importe em autoria delitiva – suspeito, autor do fato, etc. Também deverá ser elaborado outro procedimento específico para sua formalização e encaminhamento ao Juízo, para aplicação das medidas de advertência e encaminhamento a medida educativa.

Repise-se, o usuário de maconha não será simplesmente liberado após a apreensão das drogas, ele seguirá sujeito às medidas previstas nos inc. I e III, do art. 28, da Lei nº 11.343/2006, mas sem implicações de natureza penal.

Fixação de parâmetros orientativos objetivos para classificação de usuário de drogas: até que o Congresso Nacional legisle a respeito do tema, o STF, por ora, estabeleceu a quantia de 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas.

Contudo, esse critério é orientativo, podendo a autoridade policial afastá-lo, quando, pelas circunstâncias do caso – investigação prévia, venda/distribuição de droga, posse de petrechos utilizados para venda de drogas – for constatado que o indivíduo, mesmo portando menos de 40 gramas de cannabis, está traficando drogas.

Nesse ponto, relevante anotar que a quantificação das drogas para diferenciação de usuário e traficante já é usado em outros países, conforme já mencionado acima.

A tese do STF não mencionou plantas macho, porque é a flor da planta fêmea que possui alta concentração de tetrahidrocanabinol (THC) – substância psicoativa da cannabis. A planta macho é necessária para a produção de pólen para a reprodução das plantas, porém não apresenta concentração significativa de THC.

Em suma: a tese fixada pelo STF, no julgamento do Tema 506 estabeleceu interpretação conforme à constituição e critérios para descriminalizar a posse de maconha para uso próprio – 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas – , mas com possibilidade de afastamento desse parâmetro, a depender das circunstâncias do caso concreto.


Referências:

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html>. Acesso em 30 Jun. 2024.

BRASIL. Lei nº 11.343/2006. Disponível em <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em 30 Jun. 2024.

_____STF. RE 635659, Rel. Min. Gilmar Mendes, Julgamento: 26/06/2024.

RIBEIRO, Débora. Significado de Droga. Dicionário On-Line Português. Disponível em <https://www.dicio.com.br/droga/>. Acesso em 30 Jun. 2024.

BRASIL. Secretaria da Vigilância em Saúde. Ministério da Saúde. Portaria nº 344/1998. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso 30 Jun 2024.

MASSON, Cleber. MARÇAL, Vinicius. Lei de Drogas: Aspectos processuais e penais. São Paulo: Método, 2019.

SANCHEZ, Leonardo. Conheça os países onde o porte de drogas para uso pessoal não é crime. Folha de São Paulo. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/asmais/2015/09/1671352-conheca-os-paises-onde-o-porte-de-drogas-e-liberado-para-uso-pessoal.shtml#article-aside>. Acesso em 30 Jun. 2024. 

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NERO, Marcos. A descriminalização da posse de maconha para uso próprio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7670, 1 jul. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110035. Acesso em: 3 jul. 2024.

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