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Direito constitucional à decisão judicial efetivamente fundamentada

06/03/2008 às 00:00
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Introdução breve

As pessoas vivendo coletivamente enfrentam basicamente duas fontes de agressões às suas esferas pessoais, compreendendo-se aí a liberdade e o patrimônio. A primeira fonte de agressões são os próprios cidadãos conviventes. Na medida da deseducação geral de uma população está a violência endógena praticada no grupo.

A outra fonte de agressões às pessoas – sujeitos de direitos e obrigações – é o Estado. Convém deixar bastante claro que o termo agressão não é tomado aqui como vetor de juízo de valor positivo ou negativo. Significa, pura e simplesmente, um avanço na esfera individual, resistido ou não desejado por aquele que o sofre. Poderia ser considerado sinônimo de limitação.

Então, ficam estabelecidas as duas principais origens de limitações ou agressões às liberdades individuais: o restante da sociedade e o Estado. As limitações sociais são muitíssimo mais sutis, elaboradas e interessantes que aquelas decorrentes de codificações jurídicas, mas não interessam ao presente texto senão parcialmente. Entende-se por agressões ou limitações derivadas do convívio tudo aquilo que não seja crime. A criminalidade não é o assunto aqui tratado.

As limitações jurídicas elaboram-se em função do interesse público na manutenção da coesão social e no estabelecimento de comportamentos que a maioria julga desejáveis. Não há tanta sutileza e sofisticação quanto nas regras sociais não-escritas e, por isso mesmo, seu estudo é mais facilmente realizável. Há – ou, pelo menos, deve haver – balizas para a normatização jurídica.


O cidadão e o Estado

Teoricamente, o Estado é opção menos ruim que a constante autodeterminação individual dos integrantes de certo grupo presente em certo espaço físico. Vamos assumir que assim seja. Essa entidade encontra-se em posição e condições de interferir muito intensamente nas vidas daqueles sob sua órbita de poder. Cabe-lhe impor as normas a se obedecerem na sua área territorial, inclusive aquelas destinadas a regrar o acesso às suas esferas decisórias.

A democracia de massas impôs a representação, quase como uma obviedade. Ante a inviabilidade prática da democracia direta para toda e qualquer tomada de decisões, adotam-se vários e matizados sistemas de representação do povo apto a votar. Então, em teoria, tanto a lei – emanada do parlamento – quanto outros atos normativos – emanados do chefe de governo, são atos legítimos de quem foi escolhido, desde que conformes a certas balizas formais.

O representante eleito democraticamente – abstraindo-se a dificuldade de democracia material em locais de farta incultura – é veículo de tomada de posições. O desacordo destas posições com as vontades dos outorgantes do mandato afere-se nas eleições subseqüentes. Comportando-se os representantes nos limites constitucionais do processo legislativo, suas decisões são expressão da vontade da maioria e, portanto, soberanas.

O mesmo não ocorre com a decisão judicial. O julgador não é representante do povo, não lhe deve prestação de contas política. Deve-lhe, contudo, prestar contas de sua atuação consoante à lei e dos caminhos trilhados para se chegar a determinada interpretação legal. Quanto à lei, comando geral e abstrato, não há – em sentido próprio – margem de opção.

O que foi dito imediatamente acima deve ser tomado precisamente. Há, sim, margens enormes de opção quanto à existência, caracterização e extensão dos fenômenos que implicarão a incidência de tal ou qual lei. Há, também, a possibilidade de não aplicação da lei, se ela revelar-se contrária à constituição. Contudo, opinião sobre a lei, como antecedente do proferimento de decisão, no sentido de tê-la como útil ou inútil, não é possível.

O julgador é órgão do Estado. Assim, é veículo potencial de cometimento das agressões às esferas individuais contra que se deseja proteger os cidadãos. Exatamente como garantia individual consagra-se a necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Com efeito, o agente público não escolhido popularmente e com função de aplicar a lei a casos específicos expõe-se à crítica técnica mediante a fundamentação de sua decisão.

A lei em sentido formal e material é norma genérica e abstrata a todos aplicável e, no caso brasileiro, veiculada em forma escrita. Não obstante as variações interpretativas possíveis, é certo que não há dúvidas sobre seu texto. A lei escrita visa a conferir maior grau de segurança que a norma não escrita ou a norma principiológica. Se tal finalidade é alcançada, não é assunto principal deste escrito.

Então, o cidadão sabe – ou pode saber – a que está obrigado e a que punições submete-se caso descumpra tal ou qual norma legal. A decisão judicial é aplicadora da lei e, consequentemente, não se sobrepõe a ela. No máximo – e com muito proselitismo judicial – considera-se lei entre partes. Tal noção, contudo, é antitética, pois o conceito estrito de lei contém ínsita sua aplicabilidade geral.

Resulta que as pessoas vivem sob o império de algo conhecido – pois foi publicado – e impositivo à todos. O ato aplicador da norma geral a um conflito entre partes é momento posterior à lei e de alcance evidentemente menor. Em outras palavras, uma sentença judicial é menos que a lei, exceto se contiver a declaração de inconstitucionalidade desta ultima.

Logo, se a lei é conhecida, o fundamento de um ato de sua aplicação deve sê-lo também. O contrário é negar vigência ao princípio da legalidade, base do Estado de direito. Invertendo os termos da proposição do parágrafo acima, tem-se que a lei é mais que qualquer sentença e tem ampla publicidade, logo o fundamento de sua aplicação a favor de uma parte e em detrimento de outra deve também ser aferível.

Outra garantia, ainda que parcial, segundo alguns, é corolário da necessidade de fundamentação: a recorribilidade das decisões judiciais. Com efeito, sem fundamentos, a recorribilidade torna-se virtualmente inútil. Ainda que se recorra contra a disposição – em tese – não se mostra viável a insurgência se não se conhecem os seus fundamentos. Então, a ausência de fundamentação é contrária à disposição inserta no inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal.


Negativa de vigência à lei

Se fatos apresentados como suporte de pedido de tutela judicial não se encaixam perfeitamente em modelos gerais típicos previstos em lei, o julgador deverá proceder à integração do sistema normativo para dar-lhes conseqüência jurídica.

A teoria sustenta que o ordenamento, amplamente considerado, não apresenta lacunas. Há previsibilidade para tudo quanto for juridicamente relevante, ainda que seja necessário lançar mão de instrumentos integrativos, como os princípios gerais. Por outro lado, a situação de inexistência muito específica de tipo legal onda caiba um fato não se confunde com a aparente existência de dois tipos igualmente aplicáveis.

A tipicidade legal estrita é sempre única – ou inexistente – e a ambigüidade afastável segundo critérios estabelecidos de temporalidade, espacialidade e recepção pela ordem constitucional superveniente. Enfim, a dúvida entre a aplicação de uma ou outra lei não é conflito de integração, senão de esforço de verificação de adequação.

Todavia, nenhum desses conflitos ou dificuldades de encontro da norma legal aplicável permite que o órgão judicial não decida, ainda que seja pela inviabilidade formal da ação. Tampouco, permite-se que a decisão do caso que encontrou tais dificuldades fuja à necessidade de explicitação dos caminhos trilhados para se chegar à conclusão. Ou seja, a opção, por um lado, e a integração, por outro, devem ser suficientemente explicadas.

A despeito desses parâmetros de aplicação da lei, ocorre o proferimento de decisões sem fundamentação, que são nulas. Contudo, a nulidade é terreno pantanoso e, muito embora teoricamente seja retroativa e inapta a produzir efeitos, no plano prático tem que ser reconhecida. Até que se declare nula uma decisão sem fundamentação, possivelmente muitos e perniciosos efeitos concretos terão se produzido.

Verifica-se que a previsão de nulidade, ou seja, de inexistência presumida, não se revela garantia suficientemente eficaz da ordem jurídica e das esferas juridicamente protegidas dos particulares. Há um divórcio bastante evidente entre o caráter aparentemente drástico da nulidade – algo que inexiste – e aquilo verificado na cotidiana prática jurídica.

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A nulidade da lei frente à constituição já ensejou solução heterodoxa e sofisticada no direito brasileiro. São tantas as dificuldades da Corte Constitucional comportar-se ortodoxamente conforme o dogma da não aptidão para produção de efeitos válidos que consagrou-se a manipulação dos efeitos. Caiu o dogma.

Com relação à sentença nula, não é possível adotar-se o mesmo tipo de solução, abrandando-se as conseqüências teóricas para se preservarem-se interesses maiores. O interesse maior no caso é que o julgador não decida sem dizer suas razões. A proteção aqui desejada teria o efeito inverso, ou seja, o mecanismo deveria atuar no sentido da nulidade ser visualizada e apontada imediatamente. Algo como a consagração do direito de resistência à decisão nula por ausência de fundamentação.

Interessaria ao direito processual a confecção e formatação da garantia, quiçá em moldes semelhantes ao que se adotou para a inexequibilidade do título flagrantemente desconforme à constituição. Contudo, de tanto quanto se disse, o instrumento necessariamente teria que ser munido de características que o tornassem bastante célere no trâmite e decisão declaratória. Mas, a questão afasta-se do tema central.


Lesividade institucional

Mais que ser potencialmente lesiva a direitos individuais, decisão judicial sem fundamentação é frontalmente atentatória da própria organização constitucional do Estado e de seus poderes independentes. Eis um aspecto de dano institucional.

Se uma sentença ou uma decisão preliminar não aplica uma lei, nem aponta porque deixou de fazê-lo, usurpa competência legislativa de revogá-la. Com efeito, o julgador não é legislador negativo, nem mesmo quando declara a inconstitucionalidade incidental de lei em determinado processo.

No caso da declaração incidental de inconstitucionalidade, estará afastando um obstáculo à busca da norma correta a ser aplicada ao caso. A lei, contudo, permanece lei, até que seu eventual vício seja declarado abstratamente pelo Supremo Tribunal Federal.

Ademais, a declaração incidental de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo infralegal tem previsão expressa e consiste mesmo em imperativo da função do julgador. Há verdadeiro dever de vigilância de constitucionalidade na apreciação de uma lide concreta. Nesta hipótese, o julgador não extirpa a norma que considerou inconstitucional, mas, apontando suas razões, deixa de aplicá-la em defesa da supremacia da norma maior do sistema e na busca de correta solução do caso.

Deixando, pura e simplesmente, de aplicar aos fatos demonstrados no processo uma lei, sem apontar outra verdadeiramente cabível, o julgador afronta a separação dos poderes do Estado. Não estará atuando na defesa da hierarquia normativa, que tem a Constituição no ponto mais elevado. Estará em desacordo injustificado com a opção do poder constitucionalmente competente para fazer ou desfazer leis.

Pode-se dizer que o legislador é conivente com esta possibilidade, ao descuidar do dever de adotar boa técnica legislativa e de vigiar a autoridade daquilo que ele produz em nome do mandato outorgado. Todavia, este não é argumento de suporte a prática que implica violação da separação dos poderes e do direito das pessoas a uma decisão fundamentada e, portanto, recorrível de maneira viável.


Algumas conclusões

A decisão judicial não fundamentada é contrária à constituição e nula. Essa nulidade, todavia, não significa efetiva proteção para os cidadãos vitimados pela sentença destituída de razões de julgar. O sistema demanda aperfeiçoamentos e incorporação de mecanismos protetivos de sua própria higidez e dos particulares que litigam judicialmente.

A Constituição brasileira vigente consagrou o princípio da legalidade. Significa que ninguém será obrigado a fazer ou não fazer algo, senão por lei. A lei, em sentido formal e material, é o comando geral, abstrato e impositivo a todos, elaborado segundo procedimentos pré-estabelecidos e emanado do poder estatal representante da vontade soberana da população.

Logo, dizer-se que as pessoas estão obrigadas apenas nos termos da lei, significa dizer-se que se submetem à vontade da maioria, segundo os mecanismos da democracia representativa. Todo comando discrepante da lei é passível de resistência e de crítica judicial. Em sentido inverso, todo comando específico, seja ato normativo de efeitos concretos, seja sentença judicial, somente tem validade na medida de sua conformidade à lei.

Resulta que a força de uma decisão judicial esvai-se na ausência de fundamentação. Com efeito, decisão sem fundamento é apenas vontade própria, ou opinião, do julgador, reduzida a termo em papel timbrado. Sem referência à lei, à razão de sua aplicação, à adequação dos fatos ao molde típico legal, a decisão não obriga.

Enfim, o ato judicial decisório destituído de fundamentos é inconstitucional porque viola o princípio da legalidade. Viola, ainda, a cláusula da separação dos poderes estatais, porque, equivalendo a deixar de aplicar lei válida, usurpa competência legislativa própria.

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Sobre o autor
Andrei Lapa de Barros Correia

procurador federal em Campina Grande (PB), lotado no órgão de arrecadação da Procuradoria Geral da Fazenda

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORREIA, Andrei Lapa Barros. Direito constitucional à decisão judicial efetivamente fundamentada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1709, 6 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11017. Acesso em: 19 dez. 2024.

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