1. Introdução
O abandono do Estado Liberal Clássico e a evolução do papel desempenhado pelos membros da sociedade fez com que os indivíduos naturalmente passassem a se organizar em prol de um chamado interesse coletivo, o interesse de uma pluralidade de pessoas em relação à satisfação de uma pretensão comum.
A percepção da necessidade de garantir tutela a essas crescentes demandas coletivas fez surgir variados instrumentos tendentes a tutelar os direitos difusos e coletivos, dentre eles a ação popular e o mandado de segurança coletivo [01]. Nenhum deles, no entanto, tão detidamente elaborado quanto a ação civil pública.
2. Ação civil pública: matriz constitucional e diplomas reguladores
A Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, não foi o primeiro documento legislativo a prever mecanismos processuais de defesa de interesses coletivos. O ordenamento jurídico brasileiro já dispunha da ação popular, admitindo que, na defesa do interesse público, um único cidadão pudesse ingressar em juízo para solicitar a intervenção da Justiça.
A ação popular encontrou previsão e regulamentação na Lei 4.717, de 29 de junho do ano de 1965. A atual Constituição de 1988, em seu art. 5º, inciso LXXIII, apenas ampliou seu objeto, que além da defesa do patrimônio público, insere-se agora também na garantia da moralidade administrativa, do patrimônio histórico e cultural, bem como do meio ambiente.
O constituinte de 1988 também previu, em seu artigo 5º, LXX, a possibilidade de impetração do mandado de segurança por partido político com representação no Congresso Nacional, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano. Admitiu-se, assim, que os interesses comuns aos membros de um grupo possam ser tratados num único mandado de segurança coletivo.
A Lei Complementar 40/1981, então Lei Orgânica do Ministério Público, também trazia, em seu artigo 3º, III, a ação civil pública como uma das funções institucionais do Ministério Público. Posteriormente, e amparada nesta lei complementar, a Lei 6.938/1981, responsável pelo regramento da Política Nacional do Meio ambiente, previu a ação civil pública como atribuição do Ministério Público, no exercício de tutela jurisdicional do meio ambiente [02].
No entanto, a demanda crescente para a resolução dos conflitos coletivos não era satisfeita pelos mecanismos até então vigentes. Os contratos de massa, vinculados à informática, à incontrolável concentração urbana e às relações sociais cada vez mais desiguais entre as partes envolvidas, passaram a exigir instrumentos mais eficientes, sob pena de frustração quanto ao alcance da tutela jurisdicional efetiva. É dentro dessa atmosfera de necessidade que surge a Lei 7.347, a Lei da Ação Civil Pública, instrumento de busca à tutela global dos interesses difusos.
De fato, antes do advento da Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, poucas fórmulas eram encontradas para a efetiva defesa judicial de interesses coletivos e difusos [03].
Assim, apesar de não ser pioneira, a Lei 7.347/1985 surgiu como o instrumento mais aperfeiçoado e adequado à proteção dos direitos difusos, rompendo alguns dogmas do processo civil clássico, principalmente no que se refere à legitimação para a defesa em juízo dos direitos coletivos, a ampliação dos efeitos subjetivos da coisa julgada e, por derradeiro, a previsão e regulamentação de meios de tutela preventiva dos direitos coletivos [04].
Também vale destacar que, apenas no ano de 1985, com a edição da Lei 7347/85, a ação civil pública alcançou autonomia quanto a seu diploma regulador. Antes disso, era apenas mencionada em leis esparsas, como vimos anteriormente.
Nos termos da Lei 7.347/85 a ação civil pública surgia mecanismo de defesa contra condutas causadoras de danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. O seu objeto era, portanto, mais restrito.
Posteriormente, a Constituição Federal garantiu a inclusão da ação civil pública às funções institucionais do Ministério Público, ampliando seu objeto não só para a proteção do patrimônio público, social e do meio ambiente, como também para a guarda de outros interesses difusos e coletivos, conforme preceituou o art.129, III.
Assim, a tutela coletiva, elevada ao plano constitucional, tornou-se mais abrangente, mantendo-se a disciplina ditada pela Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, com as modificações que lhe foram introduzidas pela Lei 8078, de 11 de setembro de 1990, o aclamado Código de Defesa do Consumidor, que definitivamente consagrou o neologismo "interessses difusos".
Decerto, a Lei 8.078/1990 foi decisiva, alterando e ampliando vários aspectos da Lei 7347/85. Arruda Alvim tratou resumidamente destas alterações:
A Lei de ação civil pública nasceu no âmbito dos interesses difusos e coletivos, em relação a bens nominalmente indicados; sucessivamente, foram esses generalizados, ainda que o legislador tenha voltado ao critério da indicação nominal. Se era ação destinada a restaurar situações motivadas por ilícitos em relação à responsabilidade civil e para tutelar as obrigações de fazer e de não fazer, inclusive preventivamente, sucessivamente ampliou-se o espectro de sua utilidade à luz do âmbito descrito no artigo 84 do CDC, a ela aplicável. E, se nasceu vocacionada à proteção de interesses difusos e coletivos, com o Código de Defesa do Consumidor, passou a poder atingir as situações de "interesses ou direito individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum". Este é o perfil das principais evoluções legislativas ocorridas [05].
No mesmo sentido, Luiz Guilherme Marinoni sintetizou, de forma bastante clara, o mecanismo de simbiose existente entre os dois textos legislativos:
A essa lei (Lei 7.347) agregou-se o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90), formando assim um sistema integrado. Isto porque o art. 90 do Código de Defesa do Consumidor manda aplicar às ações ajuizadas com base nesse Código as regras pertencentes à Lei de Ação Civil Pública e ao Código de Processo Civil, naquilo que sejam compatíveis. Por outro lado, em razão da regra constante no art. 21 da Lei da Ação Civil Pública – introduzida pelo art. 117 do Código de Defesa do Consumidor – são aplicáveis às ações nela calcadas as disposições processuais existentes no Código de Defesa do Consumidor. Portanto, a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor estão interligados, existindo perfeita interação entre os dois estatutos legais [06].
Dentre estas as mudanças trazidas pelo Código de Defesa do consumidor, destaca-se possível inclusão dos interesses ou direitos individuais homogêneos no âmbito de incidência da ação civil pública, com a modificação do artigo 21 da Lei da ação civil pública, introduzida pelo artigo 117 do Código de Defesa do Consumidor [07]. Face à importância e relativa controvérsia gerada em torno da possibilidade de proteção aos direitos individuais homogêneos por meio da ação civil pública, o assunto será tratado adiante, em tópico próprio.
Além disso, o Código de Defesa do Consumidor, atento às distinções das modalidades de interesses transindividuais, passou a tratá-las de forma pormenorizada em seu artigo 81, parágrafo único, o que também será detidamente tratado adiante.
Finalmente, após a promulgação da Constituição, outros diplomas legais vieram a admitir a ação civil pública para a proteção jurisdicional de certos direitos difusos, tais como: a defesa das pessoas portadoras de deficiência (Lei 7.853/89); para apurar a responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários (Lei 7.913/89); para a proteção da infância no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90); e, para a defesa dos consumidores, com o Código do Consumidor (Lei 8.078/90), que inclusive admite outras ações coletivas cujo perfil não corresponde exatamente ao da ação civil pública [08].
Em síntese, pode-se dizer que as leis e normas constitucionais, ora referidas, promoveram, em verdade, um movimento de renovação do processo, possibilitando a sua socialização e modernização [09]. A ação civil pública, instrumento de maior vulto nessa engrenagem, já se consolida como instrumento avançado da tutela jurisdicional. Nas palavras de Rodolfo Camargo Mancuso, "a ação civil pública apresenta um largo espectro social de atuação, permitindo a acesso à Justiça de certos interesses metaindividuais que, de outra forma, permaneceriam num certo ‘limbo jurídico’" [10].
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
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SILVA, Wilney Magno. Ação civil pública e controle jurisdicional dos atos administrativos. Rio de Janeiro: Aldebarã/FEMPERJ, 1996.
Notas
01 O professor Mauro Capelletti, em célebre estudo, identificou o que convencionou denominar de "ondas" renovatórias em favor do acesso à justiça. A primeira onda dizia respeito à assistência judiciária para os pobres e aos juizados de pequenas causas. A segunda, de especial importância ao presente estudo, relacionava-se à representação jurídica dos interesses difusos, buscando superar as noções tradicionais básicas do processo civil e assegurar legitimidade para a defesa judicial desses direitos. A terceira "onda" dava conta de um enfoque global de acesso à justiça, de modo a empreender uma total reestruturação judiciária. CAPELLETTI, Mauro e BRYANT, Garth. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 12.
02 MILARÉ, Edis et al. A ação civil pública e a tutela jurisidcional dos interesses difusos. 1. ed. São Paulo:Saraiva, 1994.
03 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13. ed. São Paulo:Saraiva, 2001, p.16.
04 GAVRONSKI, Alexandre Amaral. Das origens ao futuro da lei de ação civil pública: o desafio de garantir acesso à justiça com efetividade. In: MILARÉ, Édis. (Coord.). A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 23.
05 ALVIM, Arruda. Ação Civil Pública – Sua evolução normativa significou crescimento em prol da proteção às situações coletivas. In: MILARÉ, Édis. (Coord.). A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 80.
06 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento. 5. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.722-723.
07 ALVIM, Arruda. Op. cit. p. 80.
08 Ibid. p. 76-77.
09 Essa transformação correspondeu à criação de um direito processual das ações coletivas, configurando-se no fenômeno chamado de "molecularização" do Direito, expressão utilizada pelo Professor Kazuo Watanabe. WATANABE, Kazuo. (Colab.). Código brasileiro de defesa do Consumidor comentado pelos autores do projeto. Rio de Janeiro:Forense. 1991. p. 224.
10 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Ação Civil Pública. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p.18.