No final de março, publiquei nesta coluna o artigo “A Silenciosa Epidemia da Invasão da Medicina” , diante do trágico caso da biomédica presa após causar uma morte através da prática ilegal da medicina. Hoje retomamos o tema, abordando mais um caso de invasão da medicina com desfecho trágico. Trata-se do óbito ocorrido na semana passada, após um jovem empresário se submeter a um procedimento estético invasivo em SP.
O procedimento em questão é o Peeling de Fenol, que consiste na aplicação de um produto tóxico na pele, provocando uma reação inflamatória. Arriscado e invasivo, só pode ser realizado por médicos e em hospitais ou clínicas com estrutura para intervenção de suporte à vida. O produto pode afetar o funcionamento do coração, rins e fígado, por isso seu uso é precedido de exames e contraindicado a pacientes com histórico de problemas. Sua comercialização é proibida pela ANVISA.
Assim como no caso de março, a responsável pela morte do paciente não estudou medicina. A do caso anterior era biomédica, e esta, pasmem: é uma influencer que só cursou o ensino médio. No lugar de 6 anos de medicina, ela fez um curso on-line com duração de 6 horas (e que sequer foi concluído). Como no caso anterior, o procedimento não foi realizado em um hospital ou clínica médica devidamente estruturada. O local foi o estúdio de beleza da Influencer, onde não havia sequer um aparelho de monitoramento cardíaco ou equipamentos para socorro emergencial, mas somente um medidor de pressão arterial e um oxímetro (sem pilhas). Além disso, não havia no local nenhum profissional da saúde, ou alguém minimamente preparado para lidar com complicações e emergências.
Será que estes fatores contribuíram para a fatalidade? Embora as autoridades ainda aguardem o laudo do IML, basta uma simples análise dos fatos para compreender o ocorrido. Vejamos: o paciente sofria de arritmia cardíaca, mas seu histórico de saúde não foi analisado, pois não houve anamnese. A indicação do procedimento e seus riscos não foram avaliados, pois não foi realizado eletrocardiograma ou qualquer outro exame. O paciente não foi informado ou consentiu com os riscos, pois não houve cumprimento do dever de informação. Passou por intenso sofrimento, pois não ocorreu a manipulação adequada de anestésicos. Sofreu queimaduras na glote ao inalar o produto, diante da não utilização de equipamentos de proteção. Houve parada cardiorrespiratória, causada por choque anafilático (reversível em um centro cirúrgico adequado) ou arritmia pela absorção do produto (idem). A parada cardiorrespiratória evoluiu a óbito sem qualquer assistência profissional (salvo uma atrapalhada massagem cardíaca), pois ninguém sabia como lidar com a complicação. A influencer se limitou a gritar pelo marido (que acionou o SAMU) e fugir do local levando o frasco de Fenol, para evitar a prisão em flagrante.
Ora, não precisamos aguardar o IML para apontar assertivamente o motivo do óbito: faltou médico, e faltou estrutura cirúrgica adequada! Ou seja, faltou o essencial, o indispensável.
Após a fatalidade a influencer concedeu duas entrevistas, e sua aparição foi um grande choque de realidade, expondo o quão falacioso é “universo paralelo” das redes sociais. Cinderela nas fotos do Instagram, pessoalmente a influencer mais parece a carruagem de abóbora. No lugar do posicionamento seguro e pragmático das redes sociais, o que se viu nas entrevistas foi uma figura insossa e enfadonha. Convenientemente vestida de rosa e Disney, a influencer tentou de forma atrapalhada se vitimizar, murmurando coisas como “isso acabou com a minha vida” e “carregarei esse trauma para sempre.” Causou perplexidade ao afirmar: “não pedi exames, pois não sou médica” e “não temos aparelhos, pois não somos uma clínica médica”.
Na delegacia, a cidadã se apresentou como esteticista. Pouco depois, descobriu que a referida profissão demanda estudo e profissionalização, e não somente a mera autodeclaração (como a de influencer). Assim, abandonou sua carreira de esteticista e se apresentou como empresária nas entrevistas. Mas sua carreira de empresária também não durou, pois dias após a fatalidade, a vigilância sanitária fechou seu estúdio de beleza em função da realização ilegal de procedimentos médicos. Sua farmácia de manipulação teve o mesmo fim, sendo fechada em seguida por conta da adulteração sistemática dos medicamentos. Assim, só lhe restou a ocupação de influencer.
Seu “pacote influencer ” era um festival de fraudes: loiríssima e bem articulada, se dizia esteticista e oferecia serviços médicos, além de comercializar sua linha de produtos pelo Instagram, onde possuía mais de 235 mil seguidores. Como se não bastasse, oferecia um curso on-line para qualificar suas seguidoras a reproduzir seu método inovador, por meros R$ 5 mil! O curso já tinha centenas de inscritos e teria início esta semana (mas acabou adiado, por motivos óbvios).
A influencer foi indiciada por homicídio com dolo eventual, e responde em liberdade. As autoridades investigam também a farmacêutica que lhe vendeu o curso, por exercício ilegal da medicina. O Conselho Federal de Farmácia – CFF saiu em sua defesa, dizendo ser especialista em Saúde Estética e estar respaldada por resoluções do CFF (que foram suspensas pela justiça, diga-se de passagem). O órgão “tirou o seu da reta” dizendo não lhe caber a fiscalização de cursos livres. Por fim, manifestou seu repudio ao que chamou de reserva de mercado por parte dos médicos.
Ora, CFF não poderia ter sido mais infeliz em sua manifestação! É exatamente por esse tipo de postura, por parte dos conselhos das profissões da saúde , que chegamos a este ponto. São suas resoluções que sustentam a invasão da medicina por profissionais de outras áreas, e causam tragédias exatamente como esta. Se queres ser médico, que curse medicina, e não fisioterapia ou enfermagem! E não menos importante: dar o nome de curso livre não autoriza influencers a ministrar aulas de medicina pela internet, estimulando qualquer idiota a realizar procedimentos invasivos, colocando em risco a vida de inocentes. Isso é crime! A cada dia, mais cursos livres são vendidos nas redes sociais por milhares de influencers, com muita estratégia e sem nenhum conteúdo, gerando um exército de não-médicos que colocam a população em grande risco.
As únicas iniciativas reais de combate a esta imoralidade foram tomadas pela própria classe médica. Recentemente o CFM reforçou o arcabouço ético-legal e a fiscalização contra médicos que vendem cursos irregularmente, a profissionais de outras áreas. No mesmo sentido, determinou que todos os médicos devem se identificar como tal nas redes sociais, justamente para facilitar que a população identifique os não-médicos. Mas o CFM só alcança os médicos, e não fiscaliza os profissionais de outras áreas, este encargo cabe ao poder público (que é omisso) e aos conselhos das respectivas profissões (alguns omissos, outros coniventes).
Em relação aos esteticistas, como não existe um Conselho Federal que regulamente sua atuação, a fiscalização das clínicas de estética fica a encargo da vigilância sanitária dos municípios. Mas na prática esta fiscalização não acontece, e a ação do poder público é sempre atrasada, como no presente caso. Ainda assim, enquanto uma clínica é fechada, surgem 50 novas.
A situação já se tornou uma crise de saúde pública em função dos milhares de criminosos se passando por médicos em cínicas clandestinas, e nas redes sociais. Só teremos uma luz no fim do túnel quando houver uma formação acadêmica cuidadosa e regulamentada para todos os profissionais da saúde, associada a uma fiscalização adequada dos órgãos e conselhos, de forma a garantir a segurança da população e a credibilidade do setor. Além disso, é essencial que sejam feitas campanhas de conscientização da população, para que saiba identificar os impostores e compreendam os riscos envolvidos na escolha de um profissional.
Vivemos uma gravíssima epidemia de influencers no Brasil que, silenciosamente, mata milhares de pessoas das mais variadas formas. Precisamos entender que no ambiente das redes sociais, nada (ou ninguém) realmente é o que parece. E precisamos, mais do que tudo, reverter o acelerado processo de emburrecimento coletivo da nossa sociedade.