Na quarta-feira da semana passada o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a ação direta de inconstitucionalidade proposta há aproximadamente três anos pelo então Procurador Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, que teve como objetivo discutir a compatibilidade de dispositivos da Lei nº 11.105/05 com o ordenamento constitucional vigente. É possível afirmar que na história do mencionado tribunal poucos processos judiciais tiverem tanta repercussão junto à imprensa e aos meios acadêmicos, tendo em vista a importância estratégica do que está para ser decidido.
Prova disso é que, pela primeira vez na história do Poder Judiciário brasileiro, a referida corte realizou uma audiência pública para fazer um debate com a sociedade civil a respeito das implicações sociais da matéria. Artistas, cientistas, juristas e religiosos, além dos portadores de doenças genéticas degenerativas e seus familiares, foram convocados para expor o seu ponto de vista e fundamentar os seus posicionamentos.
Com efeito, estão em jogo questões diretamente relacionadas à saúde pública e ao desenvolvimento do conhecimento científico no país, entre outras temáticas. O ponto mais polêmico do processo, inquestionavelmente, diz respeito à legalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias – procedimento que somente passou a ser permitido e regulamentado com a lei em comento.
(Vale salientar que a citada ação direta da inconstitucionalidade discute também dispositivos relativos aos organismos geneticamente modificados e à atuação dos órgãos administrativos de meio ambiente. A Lei da Política Nacional de Biossegurança, ao mesclar assuntos tão distintos, como transgenia e fertilização in vitro, pecou pela péssima técnica legislativa).
É das células-tronco embrionárias que as demais células e tecidos do organismo humano se originam, pois aquele tipo de célula tem como principal característica a possibilidade de produzir qualquer tipo de tecido ou célula. O potencial das células-tronco adultas é muito mais limitado, pois somente geram uma única modalidade de célula.
Por conta disso os cientistas defendem as células-tronco embrionárias podem ajudar no tratamento de doenças degenerativas, como Alzheimer e Parkinson, além de atuar na regeneração de lesões permanentes à coluna cervical. Na verdade, na opinião de cientistas como Mayana Zatz, professora de genética da Universidade de São Paulo, essa provavelmente é a única esperança para o tratamento de doenças genéticas degenerativas.
A mencionada lei permite o uso de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, para fins de pesquisa e terapia, desde que se trate de embriões inviáveis ou de embriões congelados há mais de três anos. É importante destacar que para a comunidade científica essa limitação do hiato de três anos, entre outras exigências feitas, é um limite severo demais para os pesquisadores e por isso merece ser revisto.
O posicionamento defendido pelo Ministério Público Federal é que a vida surge com a fecundação, sendo os embriões seres humanos, de forma que manipulá-los afrontaria o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana. Esse é também o entendimento da Igreja Católica, representada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, e de outras instituições religiosas, que consideram as pesquisas com células-tronco embrionárias uma espécie de aborto.
Em seu voto o ministro Carlos Ayres Britto defende que, em não sendo o embrião in vitro um ser vivo, inexiste qualquer óbice constitucional às pesquisas com células-tronco embrionárias, posicionamento que foi seguido pela ministra Ellen Gracie. O ministro Carlos Alberto Menezes Direito pediu vistas ao processo, devendo nas próximas semanas trazer o seu voto e fazer com que o julgamento tenha continuidade.
Quem é acostumado com o debate jurídico sabe que o mesmo argumento pode fundamentar posicionamentos diametralmente opostos, e é exatamente isso o que ocorre no caso em comento. Não parece razoável acreditar que o direito à vida e o princípio da dignidade da pessoa humana estariam com os que defendem que o embrião in vitro é um ser vivo, até porque o começo da vida humana é ponto controverso para cientistas, juristas e religiosos de uma forma geral.
Por outro lado, ignorar o sofrimento dos que padecem de doenças genéticas degenerativas, e de seus amigos e familiares, parece ainda menos razoável. É o direito à vida e à saúde de milhares de pessoas integrantes das gerações futuras que está em jogo, caso o Supremo Tribunal Federal acolha a tese do Parquet, pois as gerações presentes possivelmente não se beneficiarão tanto dessas pesquisas.
Ademais, sabe-se que as células-tronco embrionárias não podem gerar vida, a não ser que haja manipulação pelo ser humano. A esse respeito cabe transcrever parte do que a Dra. Mayana Zatz afirmou na audiência pública citada: "Toda célula é vida, um coração a ser transplantado é vivo, mas não é um ser humano. Estamos defendendo que, da mesma maneira que um indivíduo em morte cerebral doa órgãos, um embrião congelado possa doar suas células".
É claro que o grande beneficiado por essas pesquisas será o cidadão comum, do pobre ao classe média. Caso a decisão proíba definitivamente as pesquisas, nada impedirá que os mais abastados viajem ao estrangeiro e realizem o seu tratamento com tranqüilidade.
Outra questão relevante diz respeito ao desenvolvimento do conhecimento científico, o que implica o engessamento de um setor estratégico para o país. No futuro o Brasil poderá ficar dependente dos países onde a pesquisa foi liberada, tendo de pagar royalties para se utilizar das técnicas desenvolvidas.
Consequentemente existem prejuízos de ordem econômica e política que também devem ser levados em consideração. Basta dizer que o simples fato de a matéria estar sendo objeto de um julgamento já paralisa todo o investimento em pesquisa em células-tronco embrionárias (nos limites permitidos no art. 5º da lei questionada), trazendo grandes prejuízos às instituições de pesquisa responsáveis e aos seus pesquisadores.
O que se espera do Supremo Tribunal Federal é que a defesa do direito à vida e do princípio da dignidade da pessoa humana ocorra independentemente de questões de cunho religioso ou teológico, e que o possível bem-estar das gerações futuras seja devidamente apreciado. Resta, então, aguardar o pronunciamento dos demais ministros, pois somente com o veredicto final é que se colocará um fim nessa insegurança jurídica.