Capa da publicação Cancelamento da CNH no período da permissão
Capa: Detran MS
Artigo Destaque dos editores

O cancelamento da CNH por infração no período da permissão e o devido processo legal administrativo

31/07/2024 às 23:47
Leia nesta página:

Há necessidade de abrir processo administrativo para cancelar a CNH por infração no período da permissão?

1 – Introdução.

É de conhecimento de todos que passam pelo processo de formação de condutores que, ao término das aulas teóricas, práticas e exames de saúde física e mental, se aprovado em todas as etapas, será expedida ao candidato uma PPD (Permissão para Dirigir) popularmente conhecida como “CNH provisória”.

Mas a CNH pode ser emitida para quem praticou infração gravíssima, grave ou ser reincidente em média no período da permissão?

O condutor que passou pelo processo de formação sabe que não pode cometer infração de natureza gravíssima, grave ou ser reincidente em infração média nos 12 meses que se seguem a expedição da PPD, sob pena de não ser expedida a CNH (Carteira Nacional de Habilitação) também chamada de “CNH definitiva”, expressão usada em contraponto a PPD costumeiramente chamada de “CNH provisória”.

Isso é o que diz o art. 148, § 3º do CTB in verbis:

Art. 148. Os exames de habilitação, exceto os de direção veicular, poderão ser aplicados por entidades públicas ou privadas credenciadas pelo órgão executivo de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, de acordo com as normas estabelecidas pelo CONTRAN.

§ 1º...

§ 2º Ao candidato aprovado será conferida Permissão para Dirigir, com validade de um ano.

§ 3º A Carteira Nacional de Habilitação será conferida ao condutor no término de um ano, desde que o mesmo não tenha cometido nenhuma infração de natureza grave ou gravíssima ou seja reincidente em infração média. [grifos nossos]

Apresentado o texto legal acima, a resposta à pergunta inicial parece evidentemente negativa, mas não se engane.

Nestes 20 anos que atuo no direito de trânsito como Procurador de DETRAN, não raras vezes há questionamentos referentes à permissão para dirigir (PPD) com infração no período de 1 ano como óbice para sua conversão em CNH, em confronto com o direito à ampla defesa e contraditório assegurado constitucionalmente.

2 – Contextualização do tema.

Apesar de bem clara a redação legal, há duas situações que precisam ser contextualizadas para melhor compreensão.

A primeira situação diz respeito ao condutor permissionado (CNH provisória) que tem contra si lavrado Auto de Infração de Trânsito (AIT) de natureza gravíssima, grave ou reincidência em média (art. 148, § 3º do CTB), cujo AIT já se tornou definitivo na esfera administrativa, antes de vencer o prazo da conversão da permissão (CNH provisória) para a habilitação (CNH DEFINITIVA).

No momento em que vence o período de 1 ano da permissão, deve-se verificar se o AIT lavrado durante esse período já se tornou definitivo na esfera administrativa do órgão autuador, ou seja, já foram remetidas as notificações da autuação e penalidade e o AIT não foi impugnado através de recurso ou foi impugnado e os recursos foram desprovidos.

Veja, a infração que gera o impedimento à conversão da CNH provisória em definitiva deve ser impugnado nos momentos oportunos de defesa da atuação (defesa prévia) e no momento do recurso da penalidade junto ao órgão autuador, conforme Resolução CONTRAN nº CONTRAN nº 918/2022 [1] e não no momento do protocolo do pedido de conversão da CNH provisória em definitiva.

Se os AITs lavrados com infração gravíssima, grave ou duas infrações médias já se consolidaram na esfera administrativa do órgão autuador, esse deve comunicar ao órgão executivo de trânsito para lançamento dessa penalidade e sua pontuação no RENACH, na forma dos arts. 256, § 3º do CTB c/c art. 290, parágrafo único do CTB, senão vejamos:

Art. 256. A autoridade de trânsito, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá aplicar, às infrações nele previstas, as seguintes penalidades:

§ 3º A imposição da penalidade será comunicada aos órgãos ou entidades executivos de trânsito responsáveis pelo licenciamento do veículo e habilitação do condutor.

Art. 290. Implicam encerramento da instância administrativa de julgamento de infrações e penalidades:

Parágrafo único. Esgotados os recursos, as penalidades aplicadas nos termos deste Código serão cadastradas no RENACH. (grifamos)

Feita essa comunicação, a infração pode ser computada como impedimento à conversão da CNH provisória em definitiva (art. 148, § 3º do CTB), sem a necessidade de abertura de processo administrativo. O que estava expresso no art. 1º, parágrafo único da Resolução CONTRAN nº 182/2005 [2], atualmente expresso no art. 21 [3] e no§ 2ºº do art.288 [4] da Resolução CONTRAN n72323/2018, haja vista que não há mais possibilidade de cancelamento do AIT e, consequentemente, da infração na esfera administrativa.

Nesta situação, a constatação da falta do requisito legal previsto no art. 148, § 3º do CTB é feito de forma objetiva, não havendo que se falar em abertura de processo, pois o condutor permissionado não tem direito à conversão da CNH provisória em definitiva de forma automática, mas mera expectativa de direito que não se concretiza, na hipótese, por falta do requisito legal.

Neste sentido a Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça in verbis:

ADMINISTRATIVO - CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO - CONCESSÃO - MERA EXPECTATIVA DE DIREITO - REQUISITOS NÃO PREENCHIDOS - DESNECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCESSO ADMINISTRATIVO -

1. O direito à obtenção da Carteira Nacional de Habilitação somente se perfaz se, após um ano da expedição da permissão provisória, não houver o candidato, aprovado em exame de habilitação, cometido infração de natureza grave ou gravíssima, ou seja, reincidente em infração média, nos termos do § 3º do art. 148 do CTB. Desse modo, a concessão automática da CNH, após o referido prazo, é mera expectativa de direito que se concretiza com o implemento dessas condições estabelecidas na lei.

2. Constatada a ocorrência de infração grave no período da permissão provisória, sem haver questionamentos a esse respeito pelo impetrante, torna-se desnecessária a instauração de processo administrativo para se averiguar a existência ou não do direito para obtenção da CNH, uma vez que o preenchimento dos requisitos estatuídos na legislação são aferidos de forma objetiva.

3. A não concessão da CNH, em razão do disposto no § 3º do art. 148 do CTB, não implica supressão de qualquer direito do candidato, sendo desnecessária a oportunização de ampla defesa. Não há direito a ser defendido; apenas expectativa de direito que não se concretizou.

4. Recurso provido. ( REsp 726.842/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 28.11.2006, DJ 11.12.2006 p. 338)

Por outro lado, sabemos que essa confirmação da consolidação do AIT na esfera administrativa do órgão autuador por parte do DETRAN não é tão fácil quando se trata de AITs lavrados por outros órgãos de trânsito, inclusive de outros entes federados, que são lançados no cadastro do veículo via sistema RENAINF (Registro Nacional de Infrações).

Todavia, lançada a infração ao condutor permissionado no sistema RENAINF, presume-se que o órgão de trânsito competente pela lavratura do AIT já tenha efetivado as notificações e que o AIT já tenha se consolidado na esfera administrativa do órgão autuador, nos termos do art. 256, § 3º do CTB, acima mencionado.

Inclusive, a Resolução CONTRAN nº 723/2018, que regulamenta o processo de suspensão e cassação do direito de dirigir, diz que para a instauração do processo de suspensão ou cassação deve se considerar exclusivamente as informações lançadas no sistema RENAINF, senão vejamos:

Art. 10.

§ 8º Os órgãos ou entidades integrantes do SNT, para fins de instauração do processo de suspensão do direito de dirigir ou de cassação do documento de habilitação, deverão considerar, exclusivamente, as informações constantes no RENAINF.

Assim, nesta situação hipotética da infração praticada no período da permissão já ter sido julgada em definitivo pelo órgão autuador e se tornado consolidada antes do termino do prazo probatório da permissão, não se faz a expedição da habilitação (CNH Definitiva) e, neste cenário, não há dúvida de que não se faz necessário a abertura de processo administrativo, bastando a subsunção do fato a norma legal prevista no § 3º, do art. 148 do CTB.

Nesse cenário é que a Resolução CONTRAN nº 723/2018 menciona a desnecessidade de instauração de processo administrativo nela descrito, como se vê do § 2º do art. 28, abaixo transcrito:

Art. 28. As disposições desta Resolução aplicam-se, no que couber, à Permissão para Dirigir, à Autorização para Conduzir Ciclomotor e à Permissão Internacional para Dirigir.

§ 1º ...

§ 2º A não obtenção da CNH, tendo em vista a incapacidade de atendimento do disposto no § 3º do art. 148 do CTB, não exige a instauração do processo administrativo descrito nesta Resolução.

A segunda situação diz respeito ao condutor permissionado (CNH provisória) que tem contra si lavrado AIT de natureza gravíssima, grave ou reincidência em média (art. 148, § 3º do CTB) bem próximo ao encerramento do período de 1 ano da permissão, cujo AIT ainda está com prazo para recurso ou com recurso protocolizado pendente de julgamento, na fase da Resolução CONTRAN nº 918/2022.

Para essa segunda situação, se verificado no momento do protocolo do pedido de conversão da CNH Provisória em Definitiva que o condutor interessado tem infração anotada em seu prontuário, durante o período de permissão, cujos AITs ainda estão com prazo para recurso ou com recurso pendente de julgamento, esses não podem impedir a obtenção da CNH definitiva, por expressa previsão da Resolução CONTRAN nº 918/2022 que diz:

Art. 18. Somente depois de esgotados os recursos de que tratam os arts. 15 e 16, as penalidades aplicadas poderão ser cadastradas no RENACH.

Nesta segunda hipótese de haver sido praticada a infração bem próxima ao prazo de encerramento do período permissionado; infrações cujas notificações ainda não foram realizadas ou que já foram realizadas, mas ainda estão com prazo para recurso ou com recursos já protocolizados pendentes de julgamento, por certo que tais infrações, nessas condições, não podem obstar a emissão da CNH DEFINITIVA em obediência ao princípio da ampla defesa, contraditório e presunção de não culpabilidade.

Bom! Quem fez a leitura até aqui, essa é a resposta à pergunta inicial.

Nessas condições, a CNH deve ser expedida ao interessado sub conditione de que, se for confirmado o AIT na esfera administrativa do órgão autuador após o julgamento dos recursos ou após esgote do prazo sem que fossem apresentados, a CNH será cancelada.

Nesta situação, quando o AIT está pendente ou no prazo de recurso, não é razoável impedir a conversão da permissão (CNH provisória) em habilitação (CNH definitiva), submetendo o condutor a todo percalço de reiniciar o procedimento de formação de condutores novamente, pois a infração trazida pelo AIT pode vir a ser cancelada na análise dos recursos eventualmente protocolizados.

A CNH emitida nestas condições vem sendo chamada pelos setores internos de “CNH com efeito suspensivo” expressão que se pressupõe dar ciência ao condutor de que ela foi emitida com AIT’s pendentes no período da permissão, mas que poderá ser cancelada caso os AITs forem consolidados. Expressão que advém do § 1º do art. 28 da Resolução CONTRAN nº 723/2018 que diz:

Art. 28. As disposições desta Resolução aplicam-se, no que couber, à Permissão para Dirigir, à Autorização para Conduzir Ciclomotor e à Permissão Internacional para Dirigir.

§ 1º Havendo prazo a ser cumprido em relação a qualquer uma das penalidades previstas nesta Resolução aplicada ao condutor portador de Permissão para Dirigir, o reinício do processo de habilitação de que trata o § 4º do art. 148 do CTB somente se dará ao fim desse prazo, ainda que a CNH já tenha sido emitida em razão de efeito suspensivo, dispensado o curso de reciclagem.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Então, passado o prazo para recursos da infração (AIT) sem que fossem apresentados ou cujos recursos apresentados foram julgados desprovidos e a CNH já tenha sido emitida sub conditione, ela poderá ser cancelada.

Nessa hipótese a pergunta é: se a CNH pode ser cancelada de imediato após a confirmação de consolidação do AIT na esfera administrativa ou não? Creio que não.

Emitida a CNH sub conditione e se posteriormente vier a ser mantido em definitivo na esfera administrativa o AIT lavrado durante o período de permissão, para assegurar o contraditório e ampla defesa ao cidadão condutor, deverá ser aberto processo de cancelamento da CNH por infração no período da permissão, em obediência ao art. 263, § 1º c/c art. 265 do CTB:.

“Art. 263. A cassação do documento de habilitação dar-se-á:

§ 1º Constatada, em processo administrativo, a irregularidade na expedição do documento de habilitação, a autoridade expedidora promoverá o seu cancelamento.

Art. 265. As penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação serão aplicadas por decisão fundamentada da autoridade de trânsito competente, em processo administrativo, assegurado ao infrator amplo direito de defesa. ” (grifamos)

Isso porque, não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de terceiros, sem que o faça mediante o Devido Processo Legal, através do qual se oportuniza a manifestação prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados da Ampla Defesa e do Contraditório, mesmo que no exercício da chamada autotutela administrativa prevista nas Súmulas 346 e 473 do STF [5].

O próprio Supremo Tribunal Federal vem mitigando o rigorismo de tais sumulas [6], emprestando-lhe interpretação restritiva ao poder de autotutela, consolidando o entendimento de que, se o cancelamento do ato administrativo viciado surte efeitos no interesse de terceiro, deve-lhe ser oportunizado o direito de se defender (STF, RE 158.543/RS, Segunda Turma, Min. Março Aurélio, DJ 06/10/1995; RE 594296/MG, Rel. Min. Dias Toffoli, 21.9.2011) em razão do princípio do contraditório e ampla defesa, como se vê do seguintes julgados:

EMENTA DIREITO ADMINISTRATIVO. ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO CUJA FORMALIZAÇÃO TENHA REPERCUTIDO NO CAMPO DE INTERESSES INDIVIDUAIS. PODER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. NECESSIDADE DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO SOB O RITO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E COM OBEDIÊNCIA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. ( RE 594296 RG, Relator (a): MENEZES DIREITO, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2008, DJe-030 DIVULG 12-02-2009 PUBLIC 13-02-2009 EMENT VOL-02348-06 PP-01087)

EMENTA RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DO PODER DE AUTOTUTELA ESTATAL. REVISÃO DE CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO E DE QUINQUÊNIOS DE SERVIDORA PÚBLICA. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. 1. Ao Estado é facultada a revogação de atos que repute ilegalmente praticados; porém, se de tais atos já decorreram efeitos concretos, seu desfazimento deve ser precedido de regular processo administrativo. 2. Ordem de revisão de contagem de tempo de serviço, de cancelamento de quinquênios e de devolução de valores tidos por indevidamente recebidos apenas pode ser imposta ao servidor depois de submetida a questão ao devido processo administrativo, em que se mostra de obrigatória observância o respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa. 3. Recurso extraordinário a que se nega provimento. ( RE 594296, Relator (a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2011, REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-030 DIVULG 10-02-2012 PUBLIC 13-02-2012 RTJ VOL-00234-01 PP-00197)

Ainda, pode-se falar em outros limites a autotutela que se verificam em razão de sua adequação ao meio jurídico no qual está inserida e que estabelece outros princípios a serem observados, e que se aplicam a Administração Pública, dentre eles os princípios da Razoabilidade, Proporcionalidade, Boa-fé, Segurança Jurídica, princípio da confiança e outros. Nessa situação, deverão os princípios serem observados sempre que a Administração Pública venha a agir e especialmente quando atinja terceiros.

Muito embora para essa hipótese a CNH seja emitida sub conditione em razão da existência de prazo ou recurso pendente contra a infração; e, muito embora, é dado à Administração a possibilidade de rever seus próprios atos; também é sabido que na hipótese dessa revisão implicar afetação na esfera de direitos de terceiro (condutor) é de cautela e prudência, para prevenir o insucesso em ações judiciais, que se abra processo de “cancelamento da CNH por infração no período de permissão”.

O Superior Tribunal de Justiça, corroborando o entendimento ora mencionado, tem decidido pela necessidade de instauração de processo administrativo, haja vista que o documento a ser cancelado pelo DETRAN não se trata de uma permissão provisória para dirigir, mas, sim, de uma Carteira Nacional de Habilitação definitiva, o que afasta a aplicação do precedente firmado por essa Corte no Resp. 726.842/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 338, senão vejamos:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INFRAÇÃO DE TRÂNSITO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 20, III, 148, §§ 3º e 4º, e 265 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO DEFINITIVA. CANCELAMENTO. INFRAÇÕES GRAVE E GRAVÍSSSIMA. EXIGÊNCIA DE PRÉVIO PROCESSO ADMINISTRATIVO. FUNDAMENTO INATACADO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. SÚMULA 283/STF. ENQUADRAMENTO DOS FATOS À JURISPRUDÊNCIA DESTA CORTE. INVIABILIDADE. DISTINGUISHING.

1. O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firmada de que, "ausente a impugnação a fundamento suficiente para manter o acórdão recorrido, o recurso especial não merece ser conhecido, por lhe faltar interesse recursal. Inteligência da Súmula 283 do STF, aplicável, por analogia, ao recurso especial" ( Resp. 1.367.651/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 3/12/2013).

2. No caso, o recorrente não impugnou todos fundamentos do julgado combatido no sentido de que "a controvérsia não se amolda ao disposto previsto nos §§ 3º e 4º do art. 148 do CTB, pois,"em 06.05.2011, o Apelado resultou habilitado pelo órgão de trânsito estadual ora Apelante para condução de veículos automotores de duas e quatro rodas e, após 01 (um) ano - 10.05.2012 - recebeu a CNH definitiva, contudo, no ano de 2016, ao postular a renovação de sua CNH, surpreendido, recebeu a informação de cancelamento da habilitação ocasionada pela prática de uma multa grave e outra gravíssima recebida em 19.12.2011". Incide, por analogia, a Súmula 283/STF.

3. O presente litígio não se enquadra ao precedente firmado por este STJ no Resp. 726.842/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 28/11/2006, DJ 11/12/2006, p. 338, haja vista que o documento cancelado pelo ente autárquico não se trata de uma permissão provisória para dirigir, mas, sim, de uma Carteira Nacional de Habilitação definitiva, circunstância que afasta o entendimento consagrado de desnecessidade de instauração de processo administrativo.

4. Agravo interno a que se nega provimento. ( AgInt no AREsp n. 1.194.029/AC, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 21/3/2019, DJe de 28/3/2019.) [grifamos]

Estabelecido esse pilar – de que se faz necessária a abertura de processo para cancelamento da CNH por infração no período da permissão – o problema é saber se esse processo será regido pela Resolução CONTRAN nº 723/2018 e se deverá seguir todas as fases nela previstas, inclusive com recursos à JARI e ao CETRAN.

Embora não haja uma Resolução CONTRAN que regulamente o processo de cancelamento da CNH, vez que a Resolução CONTRAN nº 723/2018 refere-se à suspensão e à cassação como se extrai de seu preâmbulo [7], entendo que ela deve ser aplicada aos casos de cancelamento da CNH por infração no período da permissão por analogia, já que se trata de normativa especial e específica para caso semelhante, a fim de assegurar ao cidadão o direito à ampla defesa e contraditório, inclusive com os recursos previstos em primeira e segunda instâncias administrativas de trânsito.

Até porque, em seus “considerandos” a Resolução CONTRAN nº 723/2018 faz expressa menção ao art. 263 do CTB que trata dos casos de cassação e de cancelamento da CNH, vejamos:

“Considerando a necessidade de uniformizar os procedimentos relativos à imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação na forma do disposto nos arts. 261 e 263 do CTB, bem como do curso preventivo de reciclagem, previsto no art. 261, § 5º, do mesmo diploma legal;”

“Art. 1º. Estabelecer o procedimento administrativo para aplicação das penalidades de suspensão do direito de dirigir e cassação da Carteira Nacional de Habilitação – CNH. ”

“Art. 263...

§ 1º Constatada, em processo administrativo, a irregularidade na expedição do documento de habilitação, a autoridade expedidora promoverá o seu cancelamento.

Além disso, tratando-se de cancelamento da CNH por infração no período da permissão, há necessidade de que se faça a cassação dessa, ainda que de forma diferida, o que atrai a incidência da Resolução CONTRAN nº 723/2018 segundo previsão de seu artigo 28. [8]

3 – Conclusão.

A partir dessas reflexões, embora a previsão legal do § 3º do art. 148 do CTB seja taxativa, ela deve ser interpretada em consonância com os postulados do devido processo legal, ampla defesa e contraditório.

Se no momento da conversão da permissão (CNH provisória) em CNH definitiva houver infração no período da permissão já consolidada na esfera administrativa do órgão autuador e já cadastrada em definitivo no RENACH, essa infração deve ser considerada como impedimento à conversão da CNH provisória em definitiva, nos termos do art. 148, § 3º, do CTB, sem a necessidade de abertura de processo administrativo pelo DETRAN, haja vista que, nesses casos, não há mais possibilidade de cancelamento do AIT na esfera administrativa do órgão autuador.

Nessa situação, a constatação da falta do requisito legal previsto no art. 148, § 3º, do CTB, é feito de forma objetiva, não havendo se falar em abertura de processo administrativo no DETRAN, pois o condutor permissionado não tem direito à conversão da CNH provisória em definitiva de forma automática, mas mera expectativa de direito que não se concretiza, na hipótese, por falta da implementação das condições estabelecidas no CTB.

Considerando a situação na qual o condutor permissionado (CNH provisória) que tem contra si lavrado AIT de natureza gravíssima, grave ou reincidência em média (art. 148, § 3º do CTB) que ainda está com prazo para recurso ou com recurso protocolizado pendente de julgamento no momento do protocolo do pedido de conversão da CNH Provisória em Definitiva, tal circunstância não poderá impedir a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação.

Emitida a CNH sub conditione ou chamada com efeito suspensivo (vide o art. 28, § 1º, da Resolução Contran n.º 723/2018) e, posteriormente, venha a ser mantido em definitivo na esfera administrativa do órgão autuador o AIT lavrado durante o período de permissão, deverá ser aberto processo de cancelamento da CNH por infração no período da permissão, a fim de assegurar o contraditório e ampla defesa ao cidadão condutor.


[1]. Resolução CONTRAN nº 918/2022 “Consolida as normas sobre procedimentos para a aplicação das multas por infrações, a arrecadação e o repasse dos valores arrecadados, nos termos do Código de Trânsito Brasileiro ( CTB).”

[2]. Resolução CONTRAN nº 182/2005. Art. 1º. .Parágrafo único. Esta resolução não se aplica à Permissão para Dirigir de que trata os §§ 3º e 4º do art. 148 do CTB.

[3] . Resolução CONTRAN nº 723/2018. Art. 21. A não concessão do documento de habilitação nos termos do § 3º do art. 148, do CTB, não caracteriza a penalidade de cassação da Permissão para Dirigir.

[4]. Art. 28. As disposições desta Resolução aplicam-se, no que couber, à Permissão para Dirigir, à Autorização para Conduzir Ciclomotor e à Permissão Internacional para Dirigir. [...] § 2º A não obtenção da CNH, tendo em vista a incapacidade de atendimento do disposto no § 3º do art. 148 do CTB, não exige a instauração do processo administrativo descrito nesta Resolução.

[5]. Súmula 436 – STF - A Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos.

Súmula 473 – STF - A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

[6]. Tema 138 - Anulação de ato administrativo pela Administração, com reflexo em interesses individuais, sem a instauração de procedimento administrativo.

[7]. Referendar a Deliberação CONTRAN nº 163, de 31 de outubro de 2017, que dispõe sobre a uniformização do procedimento administrativo para imposição das penalidades de suspensão do direito de dirigir e de cassação do documento de habilitação, previstas nos arts. 261 e 263, incisos I e II, do Código de Trânsito Brasileiro ( CTB), bem como sobre o curso preventivo de reciclagem.

[8]. Art. 28. As disposições desta Resolução aplicam-se, no que couber, à Permissão para Dirigir, à Autorização para Conduzir Ciclomotor e à Permissão Internacional para Dirigir.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Alandnir Cabral da Rocha

Procurador do DETRAN-MS. Conselheiro do Conselho Estadual de Trânsito de Mato Grosso do Sul. Procurador de Entidade Pública de MS. Pós Graduado em Direito Constitucional pela UNAES-2015. Pós Graduado em Gestão e Direto de Trânsito pela Faculdade Focus-RJ. Pós Graduado em Direito Público pela Unigran e Escola de Direito do Ministério Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Alandnir Cabral. O cancelamento da CNH por infração no período da permissão e o devido processo legal administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7700, 31 jul. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110369. Acesso em: 21 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos