Palavras-chave: Licitações. Saneamento. Diligências. Seleção da proposta mais vantajosa. Formalismo moderado. Inexequibilidade da proposta. Presunção relativa. Princípio da legalidade.
Trata-se de pesquisa relacionada à análise de situações que envolvem o saneamento de documentos do processo licitatório, apresentados pelas empresas, especialmente em ocorrências que permitem a realização de diligências, por parte do agente de contratação, observando, em qualquer caso, a legalidade e as disposições do instrumento convocatório.
1. Previsão legal
É fato incontroverso que o instrumento convocatório vincula o proponente e que este não pode se eximir de estar de acordo com as exigências editalícias. Dispõe o artigo 5º da Lei Federal nº 14.133/2021, que nas licitações será observado o princípio da vinculação ao edital, bem como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (LINDB), in verbis:
Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).
Contudo, o princípio da vinculação ao edital não deve ser utilizado como um dogma, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (Mandado de Segurança nº 5418-DF): “O princípio da vinculação ao edital não é absoluto, pois o excessivo rigor poderia afastar possíveis proponentes, prejudicando a administração pública”.
Ademais, importante referir a redação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, que determina que nas decisões da Administração sejam consideradas as consequências práticas da decisão e que esta não deve ser tomada com base em valores jurídicos abstratos (art. 20. e parágrafo único).
Destaca-se a redação do inciso III, do art. 12, da Lei Federal nº 14.133/2021, que em sua interpretação aduz que a desclassificação depende da concretização de um defeito complexo. Ou seja, não basta a mera existência de uma desconformidade ou irregularidade de infração do texto legal ou do instrumento convocatório, é necessário que este defeito resulte em dano a um interesse, seja público ou privado.1
Art. 12. No processo licitatório, observar-se-á o seguinte:
[...]
III - o desatendimento de exigências meramente formais que não comprometam a aferição da qualificação do licitante ou a compreensão do conteúdo de sua proposta não importará seu afastamento da licitação ou a invalidação do processo; (grifamos e sublinhamos)
Neste sentido, o art. 64. da Lei de Licitação refere as possibilidades de realização de diligência na fase de habilitação. Na interpretação do autor Marçal Justen Filho, as possibilidades previstas neste artigo devem abarcar todas as etapas do processo licitatório, inclusive a da proposta.2
Art. 64. Após a entrega dos documentos para habilitação, não será permitida a substituição ou a apresentação de novos documentos, salvo em sede de diligência, para:
I - complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;
[...]
§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica , mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação. (grifamos e sublinhamos)
A redação do art. 59, da Lei Federal nº 14.133/2021, menciona as hipóteses em que a proposta será desclassificada. Além disso, o § 2º refere a possibilidade de realização de diligências, para certificar a exequibilidade dos valores ofertados pelos licitantes. O § 4º do mesmo artigo fixa o percentual de 75% do valor orçado pela Administração para classificação da proposta inexequível, para os casos de obras e serviços de engenharia, sendo necessário ressaltar que, em todos os casos, caberá à Administração oferecer ao licitante a oportunidade de demonstrar sua capacidade de executar/entregar o objeto pelo valor proposto:
Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:
I - contiverem vícios insanáveis;
II - não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III - apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;
IV - não tiverem sua exequibilidade demonstrada, quando exigido pela Administração;
V - apresentarem desconformidade com quaisquer outras exigências do edital, desde que insanável.
[...]
§ 2º A Administração poderá realizar diligências para aferir a exequibilidade das propostas ou exigir dos licitantes que ela seja demonstrada, conforme disposto no inciso IV do caput deste artigo.
[...]
§ 4º No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração. (grifamos e sublinhamos)
É necessário referir, portanto, que a realização de diligências para saneamento é viável em qualquer etapa do procedimento licitatório já que o fim que se busca é a seleção da melhor proposta para a Administração, tanto em aspectos econômicos quanto técnicos, sem, contudo, macular os princípios relacionados, tais como a isonomia, a impessoalidade e a legalidade.
2. Entendimento doutrinário
Acerca do tema, o autor Marçal Justen Filho realizou a interpretação da previsão normativa, alertando que, ainda que vantajosa, a proposta da licitante precisa atender os requisitos da lei e do edital. O autor esclarece que os vícios que acarretarão a desclassificação da proposta, exclusivamente, serão adstritos à violação legal ou ao instrumento convocatório:
Rigorosamente, o julgamento da proposta envolve duas análises qualitativamente diversas. O exame da regularidade em face da lei e do edital não se confunde com a avaliação da vantajosidade propriamente dita.
Isso não significa que o julgamento não seja orientado a apurar a vantajosidade das propostas.
Deve-se reconhecer que uma proposta irregular, eivada de vícios formais ou de conteúdo insanáveis, não se configura como vantajosa. Portanto e independentemente dos benefícios ofertados pelo licitante, uma proposta irregular é destituída de vantajosidade. Isso não significa desclassificar proposta em virtude de falhas irrelevantes, destituídas de gravidade e que não afetam o seu conteúdo.
[...]
Os defeitos da proposta que acarretam a desclassificação consistem na ausência de preenchimento de requisitos exigidos na lei ou no edital. 3 (grifamos e sublinhamos)
O autor enfatiza que não existe uma regra clara acerca das razões vinculadas à desclassificação dos licitantes, devendo ser realizada análise em cada caso, conforme a pertinência:
Um dos temas mais problemáticos nas licitações se relaciona com as causas da desclassificação. A dificuldade decorre da impossibilidade de preestabelecer na lei ou no edital uma disciplina precisa, exata e dissociada de variações de entendimento.
Isso significa que a indagação sobre quais são os vícios que acarretam a desclassificação não comporta uma resposta simples, direta e abrangente. Tanto a lei como o edital contemplam soluções genéricas, que exigem avaliação em cada caso concreto.
[...]
A jurisprudência consolidou o entendimento de que não cabe desclassificação se o defeito não prejudicar a proposta ou os demais licitantes.
[...]
A questão envolve a contraposição entre segurança e justiça.
A solução mais compatível com a segurança seria determinar que todo e qualquer defeito numa proposta acarretaria a sua desclassificação. Mas isso conduziria ao risco de violação à justiça, eis que a aplicação automática e mecânica da lei propicia muitas vezes resultados incompatíveis com valores protegidos pelo próprio direito.
[...]
Mas a isonomia não conduz à imposição de exigência de cumprimento de requisitos desnecessários, irrelevantes ou inúteis, ainda que previstos no edital. A circunstância de que um licitante cumpriu um requisito destituído de relevância não significa que deverá ocorrer a desclassificação de outro licitante que deixou de atender o dito requisito. Ou seja, o problema fundamental não é a isonomia, mas a natureza da exigência prevista no edital. 4 (grifamos e sublinhamos)
Ou seja, o autor refere que, ainda que a licitante tenha descumprido requisitos previstos no edital, caberá a análise fática para apurar se o vício, de fato, é relevante para a contratação e para conferência da proposta apresentada, devendo ser desconsiderados requisitos inúteis, desnecessários ou irrelevantes.
Acerca da classificação dos vícios, o autor traz os seguintes conceitos:
Os defeitos de uma proposta podem ser classificados em formais e substanciais. Formais são os defeitos relacionados aos requisitos de exteriorização da proposta. E substanciais aqueles pertinentes aos requisitos de conteúdo da proposta.
[...]
A distinção nem sempre é simples, inclusive porque se pode entender que o defeito substancial se exterioriza no aspecto formal da proposta. Assim, por exemplo, suponha-se que o erro material de soma de parcelas numa planilha. Trata-se de erro formal ou de um defeito substancial? Essa indagação específica não comporta resposta absoluta, aplicável a todos os casos.
Um erro de soma pode ser um defeito meramente formal quando não traduzir nem importar um defeito substancial.
Contudo, esse erro pode refletir-se no conteúdo da proposta, tornando-a absolutamente defeituosa. Basta imaginar que o valor defeituoso tenha sido considerado para a formulação de outros elementos. Imagine-se uma proposta para uma obra de engenharia em que se verifique um erro de soma no tocante às cargas a serem suportadas por uma certa estrutura. Aquilo que poderia ser irrelevante adquire, nesse contexto, o caráter de essencialidade. É absolutamente insanável tal defeito. 5 (grifamos e sublinhamos)
E continua, ao distinguir os vícios e as possibilidades de saneamento:
A distinção entre os defeitos formais e substanciais é útil, porque os defeitos formais comportam maior dose de saneabilidade do que os substanciais. Assim, há regras formais cujo descumprimento é absolutamente irrelevante.
É incorreto afirmar que todos os vícios formais são sanáveis e que todos os substanciais não o são. Em todos os casos, é indispensável determinar a extensão e as decorrências do defeito. Há efeitos formais e substanciais sanáveis e existem aqueles que não comportam saneamento.
[...]
Somente é cabível desclassificar a proposta quando a falha produzir a inutilidade do conteúdo da proposta ou do documento ou implicar, de modo irreversível, a sua inviabilidade jurídica.
A Lei 14.133/2021 reconheceu que a desclassificação das propostas não será uma consequência automática da desconformidade formal com a lei e o edital.
[...]
A pronúncia da desclassificação reflete reconhecimento de um defeito que invalida a proposta.
Seguindo essa orientação é indispensável a presença de um efeito nocivo, que fundamente a desclassificação da proposta.
[...]
O saneamento de defeito reflete o reconhecimento de que eventuais insuficiências, limitações ou imperfeições no tocante à conduta do licitante devem ser corrigidos, prevalecendo a vontade do licitante quanto ao conteúdo dos documentos e da sua proposta. 6 (grifamos e sublinhamos)
Acerca dos vícios formais, Marçal destaca eventuais defeitos irrelevantes, que seriam internos à proposta:
[...] são irrelevantes os defeitos de forma que possam ser superados por meio da análise do restante da documentação apresentada pelo licitante . Assim, por exemplo, um erro material constante de uma planilha não autoriza a desclassificação se for possível atingir o resultado correto mediante consideração às demais informações existentes.
Se o conteúdo do ato for identificável e se for apto a atingir o resultado pretendido, deve ser admitida a validade da proposta . 7 (grifamos e sublinhamos)
As conclusões do autor referem a possibilidade de sanear os defeitos, que não afetem a contratação e não representem uma vantagem indevida ao licitante:
Se o defeito não acarretar a impossibilidade de determinar a oferta formulada pelo licitante, se não frustrar os objetivos pretendidos pela Administração no tocante à futura contratação, se não representar uma vantagem indevida para o licitante, não haverá cabimento – em princípio – em promover a desclassificação da proposta . 8 (grifamos e sublinhamos)
No que se refere à exequibilidade das propostas, Marçal refere as dificuldades em estabelecer critérios exatos, recomendando que a Administração utilize da sua experiência com contratos semelhantes já realizados, para apurar eventuais valores desproporcionais:
Um problema relevante envolve o critério para determinação da exequibilidade.
Isso conduz que a Administração se valha das informações obtidas mediante a sua experiência em contratações com objetivo similar ou decorrentes de elementos disponíveis no âmbito genérico das contratações públicas. Contratos passados, versando sobre objetos similares, permitem estabelecer padrões quanto aos preços. 9 (grifamos e sublinhamos)
Quanto a inexequibilidade das propostas, o autor reforça a previsão legal que torna imperiosa a realização de diligências, antes da desclassificação sumária do licitante:
Admite-se que a Administração promova diligências para determinar a exequibilidade da proposta apresentada pelo licitante. Essas diligências podem envolver atuação exclusiva da Administração ou se traduzir em exigência de que o particular promova a comprovação da exequibilidade.
[...] a Administração pode remeter indagações a órgãos públicos e instituições privadas ou desenvolver vistorias e outras formas de apuração dos fatos.
Uma alternativa reside em a Administração solicitar do próprio licitante a demonstração da viabilidade da execução da proposta.
Nada impede que ambas as providências sejam adotadas concomitante ou sucessivamente.
[...]
A prova da exequibilidade far-se-á por meio de todas as provas admissíveis. Isso compreende, basicamente, documentos demonstrando os custos necessários à execução do objeto e evidenciando os motivos pelos quais o particular dispõe de condições para executar a prestação por valores muito inferiores aos estimados pela Administração. 10 (grifamos e sublinhamos)
O apego a formalismos exagerados e injustificados configura uma violação ao princípio básico das licitações, que se destina a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração, causando danos ao erário. Neste aspecto, ainda menciona Marçal Justen Filho:
Não se cumpre a lei mediante o mero ritualismo dos atos. O formalismo do procedimento licitatório encontra conteúdo na seleção da proposta mais vantajosa . Assim, a série formal de atos se estrutura e se orienta pelo fim objetivado. Ademais, será nulo o procedimento licitatório quando qualquer fase não for concretamente orientada para a seleção da proposta mais vantajosa para a administração . 11 (grifamos)
Ao discorrer sobre o princípio da razoabilidade e a aplicação do direito, o referido autor dispõe:
A atividade administrativa exige prestígio aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O princípio da regra da razão expressa-se em procurar a solução que está em harmonia com as regras de direito existentes e que, por isso, parece a mais satisfatória, em atenção à preocupação primária de segurança, temperada pela justiça, que é a base do direito.
[...]
Os princípios da proporcionalidade e razoabilidade acarretam a impossibilidade de impor consequências de severidade compatível com a relevância de defeitos. Sob esse ângulo, as exigências da lei ou do edital devem ser interpretadas como instrumentais. [...] Portanto deve-se aceitar a conduta do sujeito que evidencie o preenchimento dessas exigências legais, ainda quando não seja adotada a estrita imposta originariamente na lei ou no edital . Na medida do possível, deve promover, mesmo de oficio, o suprimento de defeitos de menor monta . Não se deve conceber que toda e qualquer divergência entre o texto da lei ou do edital conduz à invalidade, à inabilitação ou à desclassificação . 12 (grifamos)
E complementa:
Essa é a orientação consagrada pelo Poder Judiciário no sentido de assegurar a necessidade de interpretar as exigências da lei e do ato convocatório como instrumentais em relação à satisfação do interesse público. Mesmo vícios formais – de existência irrefutável – podem ser superados quando não importarem prejuízo ao interesse público ou ao dos demais licitantes . 13 (grifamos)
Por fim, o autor assim elucida:
Vale referir, ainda outra vez, decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do MS nº 5418-DF. O Edital exigia que as propostas consignassem os valores em algarismos e por extenso. Um dos licitantes apresentou proposta onde o valor constava apenas em algarismos e grafada segundo padrão estrangeiro (com vírgulas e não pontos para indicar os milhares). A proposta foi classificada como vencedora, em um primeiro momento. Após e atendendo recurso, a Comissão desclassificou-a. O STJ concedeu o mandado para restabelecer a classificação original. Reputou que a redação da proposta, ainda que descoincidente com a exigência do edital não acarretava dúvida acerca do montante ofertado [...]. O precedente tem grande utilidade por balizar a atividade de julgamento das propostas pelo princípio da proporcionalidade. Não basta comprovar a existência do defeito. É imperioso verificar se a gravidade do vício é suficientemente séria, especialmente em face da dimensão do interesse público. Admite-se, afinal, a aplicação do princípio de que o rigor extremo na interpretação da lei e do edital pode conduzir à extrema injustiça ou ao comprometimento da satisfação do interesse público. 14 (grifamos)
O autor destaca a importância de que o órgão mantenha coerência em suas decisões ao longo das licitações, evitando posicionamentos conflitantes, já que tal prática violaria os princípios da isonomia e da moralidade.15