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Estatuto do Desarmamento e Medida Provisória nº 417/08.

A ressurreição da "vacatio legis" indireta

Leia nesta página:

Em 1º de fevereiro de 2008, data de sua publicação no Diário Oficial da União, entrou em vigor a Medida Provisória n.° 417, que, conforme a sua ementa, altera e acresce dispositivos à Lei 10.826/2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm e define crimes.

Chama-nos a atenção que o art. 30 do Estatuto do Desarmamento recebeu nova redação pela referida MP, passando a ficar assim redigido:

"Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de fabricação nacional, de uso permitido e não registradas, deverão solicitar o seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008, apresentando nota fiscal de compra ou comprovação da origem ilícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos, ou declaração firmada na qual constem as características da arma e a sua condição e a sua condição de proprietário.

Parágrafo único. Os possuidores e proprietários de armas de fogo de procedência estrangeira, de uso permitido, fabricadas anteriormente ao ano de 1997, poderão solicitar o seu registro no prazo e condições estabelecidos no caput." (grifamos)

Oportuno salientar que a redação original do dispositivo em tela previa o prazo de cento e oitenta dias para o registro da arma de fogo, lapso temporal este que foi posteriormente dilatado por normas regulamentares supervenientes. Neste interregno, passou-se a entender, de forma acertada, que as condutas típicas previstas no artigo 12 e no artigo 16 do Diploma Legal em apreço estariam provisoriamente sem eficácia jurídica, denominando-se o fenômeno de vacatio legis indireta. É o que se observa de decisões como a que abaixo se transcreve, proferida recentemente pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 12 DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO. ATIPICIDADE DA CONDUTA. FLAGRANTE OCORRIDO DENTRO DO PERÍODO CHAMADO DE VACATIO LEGIS INDIRETA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO QUANTO AO DELITO TIPIFICADO NO ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, INCISO II, DA LEI 9.605/98. VIABILIDADE DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. OBRIGATORIEDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. As condutas previstas nos arts. 12 (posse ilegal de arma de fogo de uso permitido) e 16 (posse ilegal de armas de fogo de uso restrito) da Lei 10.826/03 praticadas dentro do período de regularização ou entrega de arma de fogo à Polícia Federal não são dotadas de tipicidade.

2. Flagrado o paciente dentro do período chamado de vacatio legis indireta, em que estava suspensa a eficácia do preceito legal que dispõe sobre o delito que lhe foi imputado, deve ser reconhecida a atipicidade da conduta. (HC 47706 / SP – Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA - T5 - QUINTA TURMA - Data do Julgamento 09/08/2007 - Data da Publicação/Fonte - DJ 10.09.2007 p. 249).

Por sua vez, a Medida Provisória 417/08, ingressando no ordenamento jurídico pátrio com força de lei, tem o condão de afastar, provisoriamente, apenas a tipicidade da conduta capitulada no art. 12 da Lei 10.826/03, porquanto a nova redação dada ao art. 30, ao contrário do previsto na redação original, fala expressamente em armas de uso permitido, estando excluídas, portanto, as armas de fogo de uso proibido ou restrito. Em outras palavras, é falar: quem, até 31 de dezembro de 2008, possuir, em sua residência ou nas dependências desta, ou ainda no seu local de trabalho, arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, não poderá ser incursionado nas sanções do artigo 12 do Estatuto do Desarmamento.

A "atipicidade temporária" (se é que poderemos afirmar isso) da conduta que, em tese, subsuma-se formalmente ao artigo 12 da Lei de Armas é justificada por dois argumentos:

Primeiro: o tipo do art. 12 da Lei do Desarmamento prevê o elemento normativo "em desacordo com determinação legal ou regulamentar". Logo, se a lei prevê um prazo para que o possuidor de arma de fogo solicite o devido registro nos órgãos competentes, a posse do armamento no interior das residências e locais de trabalho torna-se uma conduta perfeitamente lícita, até o advento do dies ad quem.

Segundo: do ponto de vista analítico do conceito tripartite do crime, a questão deve ser tratada em sede de tipicidade conglobante. Nessa lógica, a mesma norma que impõe uma conduta a ser implementada pelos possuidores e proprietários de armas de fogo (qual seja, o dever de registro das armas de fogo de uso permitido até o prazo máximo de 31 de dezembro de 2008), não pode, a um só tempo, torná-la típica. Por corolário, afastada a tipicidade conglobante, resta prejudicada a tipicidade da conduta.

A celeuma que, certamente, atormentará os operadores do direito diz respeito às possíveis conseqüências jurídico-penais em face da nova redação dada ao art. 32 do Estatuto do Desarmamento, pelo qual não mais se estabeleceu um prazo para os possuidores e proprietários de armas de fogo entregarem, espontaneamente, o armamento (de uso permitido, proibido ou restrito) às autoridades.

De qualquer modo, entendemos que a vacatio legis indireta ora restaurada não abrange a conduta capitulada no art. 14 do Estatuto do Desarmamento (porte de arma de fogo), consoante entendimento jurisprudencial esposado nos seguintes arestos:

STJ: HABEAS CORPUS – POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO – PRÁTICA DURANTE O PERÍODO DE VACATIO LEGIS INDIRETA ESTABELECIDA PELO ESTATUTO DO DESARMAMENTO – DENÚNCIA QUE TAMBÉM NARRA O PORTE DE ARMA DE FOGO – TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL – IMPOSSIBILIDADE – DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE POSSE ILEGAL DE ARMA DE FOGO – NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO – ESTREITA VIA DO WRIT – SUPERVENIÊNCIA DE SENTENÇA QUE RECONHECEU O PORTE – ORDEM DENEGADA.

1. A vacatio legis indireta trazida pelo Estatuto do Desarmamento abarcou apenas a hipótese de posse ilegal de arma de fogo, excluído o porte, salvo quando acompanhado de competente licença expedida pela autoridade policial. (HABEAS CORPUS Nº 58.924 - SP - RELATORA: MINISTRA JANE SILVA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/MG)

STJ: HABEAS CORPUS. PACIENTE CONDENADO POR PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO NA VIGÊNCIA DA LEI 9.437/97. ABOLITIO CRIMINIS INEXISTENTE.

VACATIO LEGIS DOS ARTS. 30 E 32 DA LEI 10.826/03 INAPLICÁVEL, NA HIPÓTESE. PRECEDENTES DO STJ. ORDEM DENEGADA. 1. A Lei 10.826/03 não aboliu o crime de porte ilegal de arma de fogo e munições, anteriormente regulado pelo art. 10 da Lei 9.437/97, prevendo-o, expressamente, agora nos arts. 12, 14 e 16, inclusive com alteração da pena máxima para maior, inexistente, assim, a abolitio criminis do referido delito.

2. Esta Corte firmou o entendimento de ser atípica a conduta apenas no concernente ao crime de posse irregular de arma de fogo, tanto de uso permitido (art. 12) quanto de uso restrito (art. 16), no período estabelecido nos arts. 30 e 32 da Lei 10.826/03, que permitiu a entrega das armas à Polícia Federal mediante indenização ou a sua regularização. A conduta de portar arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, que ensejou a condenação do impetrante/paciente, continuou típica e não foi abrangida pela descriminalização temporária.

3. Parecer do MPF pela denegação da ordem

4. Ordem denegada. (HABEAS CORPUS Nº 71.821 - MG RELATOR : MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO).

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Outrossim, dúvidas emergirão em torno da constitucionalidade material da medida provisória em questão. Nada obstante, tal matéria refoge ao objetivo proposto no presente ensaio, que é tão-somente o de provocar a discussão do assunto na comunidade jurídica.

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Sobre o autor
Alessandro Júnior de Carvalho

bacharelando em Direito pela Faculdade de Direito de Varginha (MG), oficial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Alessandro Júnior. Estatuto do Desarmamento e Medida Provisória nº 417/08.: A ressurreição da "vacatio legis" indireta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1716, 13 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11043. Acesso em: 28 dez. 2024.

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