Em duas oportunidades distintas mencionei o perigo da automatização da repressão à litigância predatória (vide 1, vide 2). As notícias, entretanto, demonstram que essa tendência está se acentuando.
Tudo indica que o Judiciário está sendo redefinido. Ele não será mais um poder que respeita a constituição, mas um puxadinho dos predadores capitalistas. No lugar da presunção de inocência está sendo colocada a suspeita automatizada contra advogados e cidadãos.
Empresas com poder econômico de movimentar as redações de jornais, revistas e redes de TV certamente serão apresentadas como vítimas de clientes gananciosos e advogados malfeitores. O fato delas sistematicamente prejudicarem seus clientes para maximizar os lucros será considerado um fato juridicamente irrelevante quando da extinção de processos com base na litigância predatória? Essa pergunta é retórica. Afinal, como a Lava Jato demonstrou, a união entre imprensa e justiça é capaz de deformar o sistema legal até provocar a supressão total ou parcial de direitos e garantias individuais.
Mutiladas pelo aprendizado de máquina, as prerrogativas dos advogados rapidamente serão transformadas em piadas nas salas dos juízes. Eles obviamente terão muito mais tempo para fofocar se centenas de milhares de demandas forem imediatamente jogado na lata do lixo de maneira automática antes mesmo de serem objeto do devido processo legal.
Viva o neoliberalismo jurídico empoderado por IA.
A litigância predatória é uma senha para a abolição de três institutos constitucionais: o direito de petição, a garantia do devido processo legal e o julgamento da causa pelo juiz natural. O Judiciário 4.0 garantirá ativamente a proteção dos predadores capitalistas de maneira eficiente e continuará proporcionando aos juízes salários acima do teto e penduricalhos abaixo da moralidade. Aos cidadãos lesados restará apenas a vingança privada?
A busca por eficiência, entretanto, dificilmente chegará ao STF. Ele é uma mãe generosa para os governadores, prefeitos e legisladores de extrema direita que aderiram ao neoliberalismo e fomentam a litigância predatória passiva. Todo santo dia uma demanda nova dá entrada na Suprema Corte porque uma assembleia legislativa, câmara de vereadores, governador ou prefeito resolveu se colocar fora do sistema constitucional de 1988 promulgando acintosamente uma Lei ou um Decreto que acintosamente inconstitucional.
No RS foi promulgada recentemente uma Lei estadual que discrimina cidadãos que fazem parte do MST. Isso deu origem ao ajuizamento da ADI 7690. Não compete a um Estado-membro legislar acerca de matéria penal. Note-se, ademais, que a propriedade privada e sua proteção são matérias de Direito Civil. E a competência exclusiva para legislar sobre essas questões também é outorgada exclusivamente à União (art. 22, I, da CF/88).
É evidente, por outro lado, que o Rio Grande do Sul não pode e não deve estabelecer distinções entre os cidadãos brasileiros que vivem em seu território por causa de convicções políticas consideradas inadequadas pelo legislador. Isso fere frontalmente o disposto no art. 5º, caput da CF/88.
Como o direito subjetivo a um benefício social é um bem, em tese o cidadão não pode ser dele privado sem o devido processo legal (art. 5º, LIV, da CF/88). O fato de a Lei estadual 16.139/2024 assegurar isso através de processo administrativo (art. 1º, parágrafo único) é irrelevante. O Estado-membro não tem competência para suprimir através de processo administrativo direito outorgado ao cidadão por Lei federal. Isso somente poderia ser feito pela União ou, eventualmente, pelo Poder Judiciário.
Não é a primeira vez que o governo protofascista gaúcho tenta impor em seu território um sistema de poder desvinculado daquele que foi instituído pela Constituição Cidadã. O RS tem sido um cliente frequente do STF. E essa frequência no mínimo tangencia a litigância predatória passiva. Todavia, dificilmente a Suprema Corte será capaz de reprimir esse fenômeno. O mais provável é que os governadores, prefeitos e legisladores de extrema direita que aderiram ao neoliberalismo continuem cometendo abusos e ficando impunes.
O Brasil é uma república federativa “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” (art. 1º, da CF/88), mas como vimos no caso da ADI 7690 o RS se comporta como se pudesse provocar uma ruptura desse vínculo. Sendo assim, o relator do processo poderia mandar a administração do Tribunal certificar nos autos todas as decisões de inconstitucionalidade que, nos últimos 4 anos, foram decretadas pelo STF em processos envolvendo leis estaduais e atos administrativos do Rio Grande do Sul.
Evidenciado o padrão de comportamento secessionista, medidas criminais seriam adotadas contra os legisladores que acintosamente aprovaram e promulgaram a Lei estadual 16.139/2024? Essa é mais uma pergunta retórica. Assim como não reprime a litigância predatória passiva de governadores, prefeitos e legisladores neoliberais, o STF certamente não ousaria utilizar suas prerrogativas constitucionais para colocar um ponto final na palhaçada secessionista.
Viva a farra do neoliberalismo jurídico empoderado por IA. Quem pode o menos (fomentar a litigância predatória passiva constitucional) certamente pode o mais (cometer crime de conspirar contra a unidade territorial do Brasil) sem sofrer qualquer tipo de retaliação.