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Livre mercado versus responsabilidade social.

A controvérsia a luz da Economia e do Direito

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3. Os princípios constitucionais relativos à ordem econômica: a Constituição Federal e a desconstrução do mito da "eficiência do livre mercado"

Define-se a atividade econômica como sendo a "produção de ampla gama de bens e serviços, cujo destino último é a satisfação das necessidades humanas" (Troster e Mochón, 1994: 19). Por este conceito, nota-se que a atividade produtiva organizará os fatores de produção – terra, trabalho e capital – e os resultados serão consumidos pela sociedade.

Qualquer atividade econômica implica na existência de inúmeras relações jurídicas entre os agentes econômicos e a sociedade em geral [03]. Essas relações jurídicas vão desde a interação dos agentes econômicos entre si, como as redes de contatos que estes estabelecem com os seus fornecedores, consumidores, empregados, Governos e outros.

É de extrema importância a atividade econômica dentro de um país. É este segmento que produz a riqueza e garante a sobrevivência das pessoas de uma nação.

Por sua importância, a atividade econômica não poderia se desenvolver baseada no mito da "eficiência do livre mercado". Os indivíduos, ao decidirem viver coletivamente em um país, estabelecem um "pacto social". Alienam parte de sua liberdade ao Estado que, legitimamente, regulará as relações entre as pessoas. O Estado, munido desta autorização, deverá por em prática ações que visem o bem estar da população em geral, garantindo uma razoável qualidade de vida a todos.

A Constituição Federal de 1988 reservou o seu Título VI para dispor sobre a ordem econômica e financeira. Trouxe ainda, no Capítulo I, os princípios da atividade econômica. Dispõe o caput do artigo 170 da Constituição Federal que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, deverá observar alguns princípios. Nota-se que a o dispositivo enaltece o trabalho humano, a realização produtiva do homem, e soma a isto a sua liberdade de criação, a autonomia para a realização desta produtividade. É esta faculdade que fundamenta o sistema capitalista no Brasil [04].

No entanto, a atividade econômica não é um fim em si mesma. Ela deve ser exercida para garantir a todos uma existência digna, buscando, sempre, a justiça social. Isto demonstra que o liberalismo econômico perdeu força na atual Constituição Federal. Inverte-se a ordem de valores: a dignidade da pessoa humana passa a ser um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito que permeará o tecido social. A vida social importa em respeitar o ser humano em toda a sua plenitude.

No mesmo dispositivo, estão previstos em seus incisos mais oito princípios que deverão ser observados na atividade econômica. São eles:

"I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte e constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País".

Os princípios, como se sabe, são aqueles preceitos que norteiam todo o sistema jurídico. Contrariar um princípio é alijar o sistema da coerência, da retidão, gerando um defeito avesso ao conjunto. Nas palavras de NUNES (2005:10):

"Embora os princípios e as normas tenham a mesma estrutura lógica, aqueles têm mais pujança axiológica do que estas. São, pois, normas qualificadas, que ocupam posição de destaque no mundo jurídico, orientando e condicionando a aplicação de todas as demais normas."

Tratam-se, desta forma, de mandamentos gerais que devem ser a fonte na elaboração, interpretação e aplicação das normas jurídicas [05]. Daí a importância do estudo destes princípios para que se possa entender qual o sistema econômico que o legislador constitucional desenhou para o país.

Nota-se pelos princípios que norteiam a ordem econômica que há o desejo social de uma nítida intervenção do Estado para conduzir o exercício da atividade econômica e preservar o bem comum. Do ponto de vista econômico, VASCONCELOS e GARCIA (1998: 24) justificam esta intervenção nos seguintes termos:

"... A intervenção governamental nos mercados se apóia nas chamadas ‘imperfeições de mercado’ – externalidades, informação imperfeita e poder de monopólio. As externalidades ou economias externas se observam quando a produção ou o consumo de um bem acarreta efeitos sobre outros indivíduos que não se refletem nos preços de mercado [06]. As externalidades dão a base econômica para a criação de leis antipoluição, de restrições quanto ao uso da terra, de proteção ambiental etc. "

Assim, o Estado intervêm na atividade econômica sempre que o seu exercício importe em desajustes sociais. Se, por exemplo, a produção de um determinado produto ameaçar o ecossistema de uma região, medidas deverão ser adotadas pelas empresas para eliminar estes riscos ou que os amenize. Neste caso, o bem-estar da sociedade é um valor maior a ser considerado pelo Estado, que agirá coercitivamente para que sejam cumpridas as normas jurídicas de proteção à sociedade.

Esta intervenção do Estado se dá por meio da normatização e regulação da atividade econômica. A sua responsabilidade é de fiscalizar, incentivar e planejar buscando a isonomia entre os entes federativos (art. 174, CF).

Passe-se agora, à análise de cada um dos princípios declarados na Constituição Federal e de que modo cada um interfere na atividade econômica.

Os dois princípios previstos no caput do artigo 170, da CF, são os da valorização do trabalho humano e o da livre iniciativa. Pode-se afirmar que estes princípios reconhecem a criatividade humana para transformar a natureza em benefício próprio e assegurar ao homem a liberdade para esta realização. Estes princípios também sustentam o sistema capitalista. Mas esta liberdade sofre restrições, que são colocadas na forma de princípios nos incisos do artigo 170.

O princípio da livre iniciativa garante a autonomia da iniciativa privada em relação ao Estado, que não pode exigir sua autorização para que o particular exerça atividade econômica (§ único, artigo 170, CF). A única possibilidade disto acontecer ocorre quando o particular prestar serviço público. Esta prestação somente será feita por meio de concessão ou permissão, bastando para tanto, que sua proposta seja aprovada nos processos de licitação.

O princípio da livre iniciativa tem ainda, como complemento, o princípio da livre concorrência. É um princípio que deve ser exigido das empresas que exploram determinada área econômica. O Estado visa com isto a produção de melhores produtos. O empresário é compelido a investir em tecnologia, ofertar produtos mais baratos e maximizar seus lucros. Sabe que tem ao seu lado um concorrente voraz pelo mesmo mercado consumidor que o seu. A própria Constituição Federal prevê expressamente punições para comportamentos anti-concorrenciais:

"Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

(...)

§ 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."

Conquanto este princípio estimule a livre concorrência, é certo que determinadas atividades são exercidas exclusivamente pelo Estado, caracterizando o seu monopólio sobre elas. Uma vez mais, o Estado pretende com isto privilegiar a sua soberania. É o caso daquelas atividades previstas nos artigos 177 da CF.

A preocupação com a livre concorrência não veio para proteger o empreendedor, mas sim o mercado consumidor. Portanto este princípio reforça o de proteção ao consumido. Nas palavras de RIZZATO (2005:63):

"A livre concorrência é essencialmente uma garantia do consumidor e do mercado. Ela significa que o explorador tem de oferecer ao consumidor produtos e serviços melhores que os de seu concorrente. Essa obrigação é posta ad infinitum, de forma que sempre haja melhora. Evidente que esse processo de concorrência se faz não só pela qualidade, mas também por seu parceiro necessário: o preço. Todo elemento concorrencial na luta pelo consumidor é o duplo ‘qualidade/preço’"

A proteção ao consumidor decorre do princípio da dignidade da pessoa humana. A produção de bens em serviços não é um fim em si mesma, nem tampouco existe apenas para gerar lucro aos agentes econômicos. Ela é realizada visando o consumidor. A riqueza produzida por um país só tem sentido se distribuída entre as pessoas, estejam elas na qualidade de consumidoras ou de trabalhadores.

Assim, a Constituição Federal procurou proteger a parte hipossuficiente do todo este processo. A parte que não tem como interferir no processo produtivo e é obrigada a adquirir bens e serviços nas condições em que são colocados no mercado. Se ela não pode interferir, tem que ser preservada. O Código de Defesa do Consumidor, aprovado em decorrência desta previsão constitucional, é um dos mais avançados instrumentos de proteção e revolucionou as relações consumidor/fornecedor.

Do mesmo modo, a atividade econômica não pode ignorar os riscos que ela acarreta ao meio ambiente [07]. O desenvolvimento econômico deve ocorrer de forma sustentável. Os limites deste desenvolvimento são definidos pelo grau de ameaça à espécie humana. Não basta suprir as necessidades das pessoas. Este objetivo tem que vir acompanhado de uma preocupação com as gerações futuras.

Esta exploração dos recursos naturais (hídricos e minerais) deve ser controlada pelo Estado. Ao capital, pouco importa se as extrações destes recursos ou a poluição do solo e da atmosfera terrestre causem algum dano ao meio ambiente e para as gerações futuras. Estas preocupações, em geral, não geram nenhum lucro imediato. Apesar disto, a Constituição Federal também impõe à coletividade o dever de defender o meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225) e faz isto de forma coercitiva, tipificando como crime condutas lesivas ao meio ambiente [08].

O princípio da defesa do meio ambiente nos remete para outros dois: o da propriedade e o da função social da propriedade. Ao descrever estes dois princípios sucessivamente, o legislador constitucional demonstra a sua preocupação em garantir o respeito ao direito à propriedade privada, mas, logo a seguir, a função social da propriedade.

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No campo da ordem econômica, a propriedade privada deve ser entendida, na maioria das vezes, como o negócio do empresário: o ponto comercial, as patentes, as marcas, a organização dos instrumentos que geram o seu produto ou serviço. Esta propriedade não pode servir, contudo, para prejudicar outras pessoas, direta ou indiretamente. O negócio tem que ser lícito e respeitar as normas de segurança, meio ambiente, trabalhistas, etc. Caso contrário, a propriedade não estará cumprindo a sua função social.

A atividade econômica deve levar em conta a soberania nacional. A intenção do legislador constitucional foi impedir a interferência estrangeira, mesmo no âmbito econômico. Por este princípio, os interesses do país tornam-se maiores que o do capital internacional, principalmente o capital especulativo. Tenta-se conter a "nocividade" do capital internacional que não conhece fronteiras e não tem nacionalidade. Neste sentido, ensina AGRA (2004):

"A definição da soberania econômica significa que os interesses da nação serão superiores aos interesses dos capitais internacionais, mormente do capital especulativo. O Estado deverá intervir no mercado quando as multinacionais tentarem boicotar as metas fixadas pelo governo, de modo a preservar em sua plenitude a autonomia econômica. A entrada do capital estrangeiro deve se dar em uma perspectiva de que a ele cabe uma função suplementar em relação ao capital nacional, devendo o Estado regular a remessa de lucros às matrizes e a função social que desempenham no país. O capital especulativo deve ser reprimido porque a sua única finalidade é arruinar as finanças nacionais."

Mas com uma economia cada vez mais globalizada, este princípio perde um pouco a sua relevância. A integração econômica entre países, formando os blocos econômicos; o rompimento de barreiras alfandegárias; as fusões e incorporações de empresas multinacionais; tudo isso fez com que se buscasse uma amenização na aplicação do princípio. Como exemplo disto, temos que, em 1995, a Emenda Constitucional nº 6, revogou-se todo o artigo 171 da CF, que previa:

"Art. 171. São consideradas:

I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País;

II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para gerir suas atividades.

§ 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital nacional:

I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou imprescindíveis ao desenvolvimento do País;

II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:

a) a exigência de que o controle referido no inciso II do "caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para desenvolver ou absorver tecnologia;

b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.

§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional."

Este artigo previa uma proteção às empresas nacionais, com um tratamento diferenciado em relação às empresas estrangeiras instaladas no país, ou que comercializasse no mercado nacional. A mesma Emenda Constitucional garantiu o tratamento diferenciado apenas para as empresas de pequeno porte (inciso IX, artigo 170, CF). Denota-se desta iniciativa, um nítido interesse em estimular a vinda de capital estrangeiro para o Brasil.

Por fim, a atividade econômica deve buscar o pleno emprego. Este princípio alia-se ao da redução das desigualdades regionais e sociais. São princípios que partem do reconhecimento da existência de classes sociais em situação de desigualdades no país. E mais, a integração nacional também depende da homogeneidade de condições sociais do povo. Não se pode ainda esquecer das idéias de desmembrar regiões que se consideram autosuficientes economicamente.

O pleno emprego consiste em ter ocupação para todos que estão em condições de exercer atividade laboral. Este princípio será efetivado principalmente através de políticas públicas que estimulem a geração de empregos. Também poderão ser determinadas obrigações à atividade privada para que aproveite a mão-de-obra excedente em processos de rearranjos produtivos, que gerem extinção de postos de trabalho. Imposições de custos com despedidas arbitrárias também constituem mecanismos de retração ao desemprego, embora tenha o viés da informalidade do mercado de trabalho, que facilita o descarte do trabalhador.

A redução de desigualdades regionais parte da constatação de que no país há uma grande concentração de empresas em regiões metropolitanas. Esta situação também depende de políticas de investimento em infra-estrutura nas áreas com pouca densidade de indústrias. A iniciativa privada deve ser estimulada pelo Estado para se instalarem em regiões pouco desenvolvidas.

Diante do exposto, nota-se que a Constituição Cidadã trouxe um arcabouço jurídico de princípios que intensificam o controle, a fiscalização e o planejamento do Estado sobre a atividade econômica do país. Não deixa às livres forças do mercado a harmonização social. Impõe de forma categórica o bem estar social das pessoas, rompendo com as idéias liberais do início do século XX.

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Sobre os autores
Maria da Consolação Vegi da Conceição

Advogada. Mestranda em Direito na UNIMES. Professora de Direito na Fundação Santo André. Coordenadora Jurídica do Sindicato dos Bancários do ABC.

Jefferson José da Conceição

Secretário de Desenvolvimento Econômico e Turismo de São Bernardo do Campo. Professor Doutor da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Ex-economista do DIEESE nas Subseções do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (1987-2003) e da CUT (2003-2008). Autor do livro "Quando o apito da fábrica silencia" (Santo André: ABCDMaior, 2008) e um dos autores do livro "O abc da crise" (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONCEIÇÃO, Maria Consolação Vegi ; CONCEIÇÃO, Jefferson José. Livre mercado versus responsabilidade social.: A controvérsia a luz da Economia e do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1718, 15 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11052. Acesso em: 18 abr. 2024.

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