O Decreto Federal nº 11.063/2022 e o Convênio Confaz nº 38/2012, sob o pretexto de regulamentação, restringem os Direitos de todos autistas à isenção, respectivamente, do Imposto sobre a Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto de Circulação de Mercadorias (ICMS) na compra de veículos novos.
1. Proteção jurídica aos autistas e a isenção de impostos
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) corresponde a um transtorno neurológico global independentemente do “espectro” em que a pessoa deficiente se encontre - graus 1, 2 ou 3 de suporte. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) estabeleceu tal gradação de acordo com a autonomia do autista viver em sociedade.
O TEA se caracteriza por um déficit na comunicação (socialização e comunicação verbal e não verbal) e pelos comportamentos (interesse restrito e repetitivos e apego à rotina).
A ordem legal contempla uma gama de proteção. A própria Constituição da República (CR), Leis e inclusive decretos, conferem direitos aos autistas, a exemplo da Carteira nacional de identificação (CIPTEA), da educação especial, prioridade no atendimento e em processos administrativos e judiciais, entre outras.
A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência amplia e reforça garantias, buscando promover a dignidade e a inclusão. Trata-se do primeiro tratado internacional aprovado como Emenda Constitucional pelo processo legislativo previsto no art. 5º, § 3º, da CR. Destaca-se:
“Artigo 4º 1. Os Estados Partes se comprometem a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência.”
A Lei Federal nº 12.764/12 regulamentou a Carta Magna. Estabeleceu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Tal Lei dispõe, em síntese, que deve haver políticas públicas voltadas aos autistas. Dispõe ainda no artigo 1º, § 2º: “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”.
A Lei nº 8.989/1995 compõe o importante conjunto de regras de proteção e inclusão dos autistas. Preconiza a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) na compra de veículos sem nenhuma discriminação por subcategorias do TEA:
“Art. 1º Ficam isentos do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) os automóveis de passageiros de fabricação nacional … quando adquiridos por: … IV - pessoas com deficiência física, visual, auditiva e mental severa ou profunda e pessoas com transtorno do espectro autista, diretamente ou por intermédio de seu representante legal;”
Por sua vez, a Lei Complementar n° 24/1975 estabelece regras para a isenção de ICMS na compra de veículos novos:
“Art. 1º - As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei.”
2. Regulamentos impedem o Direito à isenção de impostos a todos autistas
Em total divergência com o ordenamento jurídico e jurisprudência dos Tribunais superiores, o Decreto Federal nº 11.063/2022 e o Convênio Confaz n° 38/2012 estabelecem restrições que obstam a todos portadores do TEA obterem a isenção de IPI e ICMS na compra de veículos novos:
“ Decreto 11.063/2022
Art. 1º Este Decreto estabelece os critérios e os requisitos para a avaliação de pessoas com deficiência ou pessoas com transtorno do espectro autista para fins de concessão de isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI na aquisição de automóveis de que trata o inciso IV do caput do art. 1º da Lei nº 8.989 …
§ 2º Na hipótese de transtorno do espectro autista, o preenchimento do laudo de avaliação atenderá à codificação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e da CID-10, contemplados o transtorno autista (F.84.0) e o autismo atípico (F.84.1).”
“Convênio Confaz 38/2012
Cláusula segunda. Para os efeitos deste convênio é considerada pessoa com:
…
IV - autismo aquela que apresenta transtorno autista ou autismo atípico e gera a incapacidade de dirigir.”
Padecem de inconstitucionalidade formal decorrente do Chefe do Executivo e do Conselho Nacional de Política Fazendária – Confaz (colegiado formado pelos Secretários de Fazenda dos Estados e Distrito Federal e pelo Ministro da Fazenda) extrapolarem o poder regulamentar previsto na Constituição, artigos 84 (caput e inciso IV), e 155 (inciso II, § 2°, II, e inciso XII, alínea g), bem como na Lei 8.989/1995 e Lei Complementar n° 24/1975.
Também presente o vício de inconstitucionalidade substancial por terem densidade normativa ao inovarem no ordenamento jurídico. Preceituam a isenção somente a duas subcategorias do autismo: Transtorno Autista F.84.0 (CID 10) e Autismo Atípico F.84.1 (CID 10). Outra discriminação absurda do referido Convênio exige a incapacidade de dirigir.
Provável que a finalidade dessas discriminações sejam de ordem puramente financeira: manter a arrecadação dos tributos.
Mas, os regulamentos citados deveriam se ater à sua essência integrativa.
Definir procedimentos para um grupo de pessoas deficientes ter acesso indiscriminado às garantias da ordem legal.
Contemplar a proteção a todas as pessoas diagnosticadas com essa deficiência pela Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID 10, realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A CID estrutura as mais diversas doenças e sintomas em grupos ou categorias. No caso do autismo, categoria F 84, que compreende um conjunto de deficiências no desenvolvimento:
“CID F 84 – Transtornos globais do desenvolvimento engloba a condição oficialmente denominada Transtorno do Espectro Autista (TEA).
F 84.0: Autismo infantil
F 84.1: Autismo atípico
F 84.2: Síndrome de Rett
F 84.3: Outro transtorno desintegrativo da infância
F 84.4: Transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados
F 84.5: Síndrome de Asperger
F 84.8: Outros transtornos globais do desenvolvimento
F 84.9: Transtornos globais não especificados do desenvolvimento.”
A OMS editou em 2023 uma nova classificação, CID 11. Entrará em vigor em 2025. Classifica na categoria 6A02 os portadores com TEA e as subdivisões visam a melhorar a compreensão da funcionalidade dos indivíduos com autismo.
Dessa forma, o Presidente da República e o Confaz deveriam ter reconhecido o Direito pleno à isenção de impostos aos portadores do TEA e definir procedimentos legítimos da maneira como o autista efetivar tais proteções.
Além disso, deveriam considerar constituir em um dever do Poder Público reservar recursos orçamentários para assegurar os direitos fundamentais, segundo Castro.
Nesse sentido também a posição pacífica do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Pode-se mencionar os seguintes precedentes:
““É inconstitucional lei estadual que (a) reduza o conceito de pessoas com deficiência previsto na Constituição, na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de estatura constitucional, e na lei federal de normas gerais; (b) desconsidere, para a aferição da deficiência, a avaliação biopsicossocial por equipe multiprofissional e interdisciplinar prevista pela lei federal; ou (c) exclua o dever de adaptação de unidade escolar para o ensino inclusivo”.
(ADI 7028, Relator Min. Roberto Barroso, DJe 23.06.2023)
“... Apreciação conjunta das ADIs 6675, 6676, 6677, 6680 e 6695. Decretos Presidenciais que dispõem sobre aquisição, cadastro, registro, posse e porte de armas de fogo, acessórios e munições (Decretos nºs 10.627, 10.628, 10.629 e 10.630, de 12 de fevereiro de 2021). Atos normativos editados com o propósito de promover a chamada “flexibilização das armas”no Brasil. Inovações regulamentares incompatíveis com o sistema de controle e fiscalização de armas instituído pelo Estatuto do Desarmamento. Dever estatal de promover a segurança pública como corolário do direito à vida. Normas que exorbitam dos limites do poder regulamentar outorgado pela Constituição ao Presidente da República, vulnerando, ainda, políticas públicas de proteção a direitos fundamentais.
… 5. Os regulamentos estão subordinados às leis que lhes dão fundamento, devendo observância ao espaço restrito de delegação normativa. O respeito a este limite de conformação regulamentar adquire relevância constitucional, na medida em que configura corolário do postulado da separação dos Poderes.
6. Os Decretos presidenciais impugnados, ao inovarem na ordem jurídica, fragilizaram o programa normativo estabelecido na Lei 10.826/2003, que inaugurou uma política de controle responsável de armas de fogo e munições no território nacional.
7. Ações diretas conhecidas em parte e, nessa extensão, julgadas procedentes.”
(ADI 6625. Rel. Min. Rosa Weber. DJe 06.09.2023)
“Referendo de medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade. Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020. Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Ato normativo que inova no ordenamento jurídico. Densidade normativa a justificar o controle abstrato de constitucionalidade. Cabimento. Artigo 208, inciso III, da Constituição Federal e Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Educação inclusiva como paradigma constitucional. Inobservância. Medida cautelar deferida referendada.
… 4. … O Decreto nº 10.502/2020 pode vir a fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino. 5. Medida cautelar referendada.”
(ADI 6590 MC-Ref, Rel. Min. Dias Toffolli, DJe 12.02.2021)
“... O art. 72, IV da Lei 8.383/91 e o § 1º c/c IV do art. 1º, da Lei nº 8.989/95 asseguram a isenção do IPI na aquisição de veículo automotor por deficientes físicos e autistas, entre outros, com a finalidade promover a inclusão social dos portadores de necessidades especiais. … Isso porque, além da legalidade, certo é que a atuação administrativa deve estar atenta à boa-fé e sensível aos interesses do administrado, valendo-se de interpretações flexíveis e razoáveis quanto à forma do procedimento, sob pena de esta ser vista como fim em si mesma, desligada da verdadeira finalidade do processo.”
(REsp 2131021, Min. Herman Benjamin, DJe 19/04/2024)
“1. É indevido o indeferimento da inicial do mandado de segurança por ausência de direito líquido e certo, quando a análise adentra no mérito da impetração e, notadamente, quando a matéria discutida, que se restringe ao reconhecimento do direito à isenção do IPVA, com conseqüente declaração de inexigibilidade dos créditos tributários cobrados, é passível de comprovação pela via documental. Sentença cassada. Julgamento do mérito, nos termos do art. 1.013. do CPC.
2. A ação mandamental é cabível para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, alguém sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la.
3. Em respeito e interpretação conforme aos princípios constitucionais da isonomia e da proteção à pessoa com deficiência, não se afigura razoável limitar a isenção de IPVA ao preço de venda de automotor, quando em benefício da pessoa portadora de autismo.
4. Presentes, nos autos, os requisitos autorizadores à concessão da segurança. …”
(REsp 1944351, Min. Assusete Magalhães, DJe 30.06.2021)
3. Reflexões finais
Os multicitados Decreto e Convênio Confaz não poderiam ser editados para instituírem discriminações em sentido oposto tanto aos das Leis que os fundamentam, quanto da própria Constituição da República. Afasta de todas as pessoas autistas o pleno exercício do Direito à isenção de impostos. Há de haver o respeito à dignidade de todas as pessoas autistas e a irrestrita inclusão desses portadores de deficiência sem qualquer discriminação.
Revela-se também a necessidade premente de se acionar o Supremo Tribunal Federal, a fim de que essas regras sejam declaradas inconstitucionais.