Capa da publicação Responsabilidade estatal pelos danos de enchentes
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A omissão estatal no combate às enchentes no Rio Grande do Sul e a sua responsabilização civil

26/08/2024 às 17:36

Resumo:


  • Chuvas intensas causaram inundações no estado do Rio Grande do Sul em maio de 2024, afetando 463 municípios e deslocando cerca de 408,1 mil pessoas.

  • Especialistas alertaram sobre a possibilidade desses eventos climáticos extremos, como enchentes, e destacaram a importância de ações preventivas, como o planejamento urbano e ambiental.

  • A omissão do Estado em adotar medidas preventivas pode configurar responsabilidade civil objetiva, com base na teoria do risco administrativo, em casos de omissão em situações de alagamentos e inundações.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A omissão do Estado em tomar medidas preventivas contra enchentes, mesmo diante de previsões claras de riscos, ocasionando a violação de direitos, configura responsabilidade civil objetiva.

As chuvas intensas que atingiram o estado do Rio Grande do Sul (RS) em meados de maio de 2024, causaram inundações com impactos desastrosos. Dos 497 municípios do Estado, 463 foram afetados, resultando em cerca de 408,1 mil indivíduos fora de suas residências1 e um número total ainda incerto de mortes. O governo do estado já classificou o evento como “a maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul”2, mesmo com dimensões ainda incalculáveis.

Contudo, como foi admitido pelo próprio governador do estado em entrevista à Folha de São Paulo3, a tragédia deste ano era prevista por especialistas e, assim, danos poderiam ter sido mitigados. Em entrevista ao Jornal do Comércio em 2021, Pedro Valente, geógrafo climatologista e pesquisador do Centro Polar e Climático da UFRGS, alertou sobre a possibilidade de eventos similares aos históricos ocorrerem novamente no estado4.

Valente explicou que, durante seu mestrado, ele estudou anomalias históricas de precipitação no Rio Grande do Sul, abrangendo o período de 1901 a 2000. Seu estudo revelou uma correlação significativa entre dados históricos e dados simulados, indicando a previsibilidade desses eventos climáticos extremos. Segundo ele, enchentes como a de 1941, que foi uma das maiores da história de Porto Alegre, são resultado de uma combinação de fatores climáticos e sociais. Entre os fatores climáticos, destaca-se a influência do El Niño, que intensifica as chuvas na região.

Apesar dessas previsões e do conhecimento existente, Valente criticou a falta de ações preventivas por parte do Estado. Ele afirmou que, desde 1960, com a padronização das estações meteorológicas, tem sido mais fácil prever tais eventos. No entanto, a mitigação dos danos requer não apenas previsão, mas também ações concretas de planejamento urbano e ambiental. Todavia, ao longo dos anos, nada disso foi feito eficazmente e a urbanização desordenada, além da falta de medidas adequadas de contenção agravam os impactos das chuvas. Neste tópico, Roberto Reis, professor da PUCRS, ressalta que a construção em áreas de várzea, como ocorre em Porto Alegre, é um erro recorrente que persiste há décadas e a negligência na manutenção de diques e barragens exacerbam a situação. “A culpa da enchente é do planeta. Mas a culpa da tragédia é dos administradores do estado e das cidades”, afirma5.

Já sob um panorama global, Paulo Artaxo, renomado físico e membro do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, destaca que desde a Conferência de Estocolmo em 1972, a comunidade científica tem emitido alertas claros sobre os riscos das mudanças climáticas6.

Nesse contexto, depreende-se que as intensas chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul em maio de 2024, causando inundações devastadoras, poderiam ter sido previstas, se o Estado tivesse se atentado aos alertas dos cientistas e centros de pesquisa, como o Centro Polar e Climático da UFRGS. Contudo, o que se observa é a falta de priorização na alocação de recursos para a prevenção de desastres ambientais pelos governos estaduais e municipais do Rio Grande do Sul. À título exemplificativo, conforme informações do Portal da Transparência7, não houve qualquer investimento no último ano na melhoria do sistema de proteção contra cheias pela Prefeitura de Porto Alegre, apesar dos R$ 429 milhões disponíveis no orçamento do Departamento Municipal de Águas e Esgoto8.

No entanto, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico (art. 23, IX, CF). Assim, incumbe aos entes federativos a adoção de medidas preventivas para evitar danos causados por enchentes e alagamentos. Entretanto, a postura inerte dos governos estaduais e municipais prejudicou a adoção de medidas preventivas, tais como o mapeamento de áreas suscetíveis à inundação, a melhoria da capacidade de previsão de eventos climáticos, a capacitação de profissionais da Defesa Civil, e a implementação de seguros contra inundações. Ademais, a manutenção inadequada das infraestruturas existentes, como diques e comportas, também contribuiu para a falha na proteção contra enchentes.

Cabe, por conseguinte, concluir que houve omissão estatal, resultando em violações significativas aos direitos constitucionais dos cidadãos. Em primeiro lugar, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225, caput, CF) foi violado, já que as inundações causaram danos irreparáveis à biodiversidade e aos ecossistemas locais. Além disso, as enchentes comprometeram os direitos à vida e à propriedade (art. 5°, caput, CF) de inúmeras pessoas.

Em face disso, o Estado poderá ser responsabilizado com base na responsabilidade civil em casos de omissão. Há duas principais teorias que fundamentam essa responsabilidade: a objetiva e a subjetiva. A teoria objetiva, baseada na aplicação do risco administrativo, encontra fundamento no artigo 37, § 6º da CF. Segundo esta teoria, a responsabilidade do Estado independe da comprovação de culpa, bastando a demonstração do dano e do nexo causal9. Por outro lado, há uma corrente doutrinária e jurisprudencial que adota a teoria subjetiva, também conhecida como teoria da culpa do serviço público10, que exige a comprovação de uma falha administrativa, conjugada pelos elementos da omissão, lesividade, nexo causal e culpa11.

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Contudo, o próprio tribunal atingido, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), tem uniformizado seu entendimento em casos de responsabilidade civil ambiental, adotando a teoria objetiva em situações de omissão por alagamentos ou inundações. Conforme estabelecido em enunciado de incidente de uniformização de jurisprudência, “a responsabilidade civil estatal, nos casos de omissão, genérica ou específica, em hipótese de alagamentos e inundações, é objetiva, ressalvada a prova, pelo ente público, de rompimento do nexo causal entre a omissão e o dano experimentado pelo particular” 12.

Outro exemplo é o caso de alagamento em São Leopoldo, em que a responsabilidade objetiva do município foi reconhecida pelo TJRS. Naquele contexto, a ausência de obras aptas a evitar o transbordamento do Rio dos Sinos resultou em danos materiais e morais aos moradores, configurando a omissão do poder público13.

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), entende que “a responsabilidade civil por danos ambientais é propter rem, além de objetiva e solidária entre todos os causadores diretos e indiretos do dano”14.

Portanto, a omissão do Estado em tomar medidas preventivas, mesmo diante de previsões claras de riscos, ocasionando a violação de direitos constitucionais, configura responsabilidade civil objetiva, cabendo aos prejudicados pleitearem em juízo indenização pelos danos sofridos.


Notas

  1. G1 RS. Temporais no RS: mais três mortes são confirmadas e total sobe para 116. 10. de maio de 2024. Disponível em: <https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2024/05/10/temporais-no-rs-sobe-para-113-o-numero-de-mortes.ghtml>. Acesso em: 10 de maio de 2024.

  2. BIERNATH, André; COSTA, Camilla; SOUZA, Caroline. Os gráficos e imagens que mostram dimensão da tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul. BBC, 6 maio 2024. Atualizado 10 maio 2024. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72p96eqkvxo>. Acesso em: 28 maio 2024.

  3. SOPRANA, Paula; TEIXEIRA, Matheus. ‘Estudos alertaram, mas governo também vive outras agendas’, diz Eduardo Leite sobre falta de plano para conter cheias no RS. Folha de S.Paulo, Porto Alegre, 19 maio 2024. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/estudos-alertaram-mas-o-governo-tambem-vive-outras-agendas-diz-leite-sobre-falta-de-plano-para-conter-cheias-no-rs.shtml>. Acesso em: 4 jun. 2024.

  4. Retirado de entrevista ao canal do YouTube do Jornal do Comércio em 2021, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=SK4nYYADfSs>. Acesso em: 29 maio 2024.

  5. HAESBAERT, Juliano. Parte da tragédia histórica no Rio Grande do Sul foi causada por negligência humana. Terra, 21 maio 2024. Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/parte-da-tragedia-historica-no-rio-grande-do-sul-foi-causada-por-negligencia-humana,ac760dde42799f2d988f2037b8df6e52c4hkzp3w.html>. Acesso em: 5 jun. 2024.

  6. INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS – IHU. Tragédia do Rio Grande do Sul. Um desastre previsto. Entrevista especial com Paulo Artaxo. Por: IHU e Baleia Comunicação, 07 maio 2024. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/639153-enchentes-no-rio-grande-do-sul-sao-desastre-previsto-entrevista-especial-com-paulo-artaxo>. Acesso em: 29 maio 2024.

  7. PORTO ALEGRE. Portal da Transparência de Porto Alegre. Programas, Ações, Projetos e Obras. Disponível em: <https://transparencia.portoalegre.rs.gov.br/obras-publicas/programas-acoes-projetos-obras>. Acesso em: 13 jun. 2024.

  8. REDAÇÃO EXAME. Porto Alegre não investiu nada em prevenção a enchentes em 2023, diz UOL. Exame, 07 maio 2024. Disponível em: <https://exame.com/brasil/porto-alegre-nao-investiu-nada-em-prevencao-a-enchentes-em-2023-diz-uol/>. Acesso em: 13 jun. 2024.

  9. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 37. ed. Barueri [SP]: Atlas, 2023.p. 465.

  10. TJSP, 3ª Câm. Dir. Público, Ap. cível com revisão n. 323.325.200, rel. Rui Stoco, dj 22.02.1999

  11. FIAX HORVATH, Miriam Vasconcelos. Direito administrativo. Barueri, SP: Manole, 2011. p. 105.

  12. TJRS, Turmas Recursais da Fazenda Pública Reunidas, Incidente de Uniformização Jurisprudência nº 71008591331, rel. Laura de Borba Maciel Fleck, dj 19.12.2019.

  13. TJRS, Terceira Turma Recursal da Fazenda Pública, Recurso Cível nº 71008207193, rel. Alan Tadeu Soares Delabary Junior, dj 28.03.2019.

  14. STJ, 2ª Turma, AgInt no AREsp 2.115.021/SP, rel. Ministro Francisco Falcão, dj 16.3.2023.

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Sobre o autor
Erik Gottlieb Martins

Graduando em Direito na FGV Direito Rio, pesquisador do NEASF-FGV e competidor em torneios acadêmicos sobre direito civil, mediação e arbitragem. E-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Erik Gottlieb. A omissão estatal no combate às enchentes no Rio Grande do Sul e a sua responsabilização civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7726, 26 ago. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/110669. Acesso em: 22 dez. 2024.

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