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A crise armada Colômbia-Equador à luz do Direito Internacional do uso da força no contexto da guerra contra o terrorismo internacional

20/03/2008 às 00:00
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1. Introdução

O conflito entre o governo da Colômbia e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, é sem dúvida o maior barril de pólvora da América Latina. Trata-se de conflito interno armado [01] com amplas repercussões internacionais [02], envolvendo atores estatais e não-estatais diversos. A natureza do conflito é eminentemente ideológica, tanto do ponto de vista interno quanto internacional.

Internamente, o conflito é caracterizado pela luta entre marxistas e capitalistas. As FARC originaram-se nos anos sessenta, como facção armada do Partido Comunista Colombiano, o PCC [03]. Nos anos 80, as FARC tornaram-se uma guerrilha e se separaram definitivamente do PCC, passando a adotar o tráfico internacional de drogas e atos de terrorismo internacional como meios de atuação. Tais métodos são contrários ao direito internacional e constituem violação de tratados internacionais em ambas as áreas [04]. Além disso, o envolvimento das FARC com diversos Estados, dentre eles Venezuela e Cuba [05], coloca o conflito colombiano em situação ímpar na relação Estados Unidos e América do Sul, no contexto da guerra contra o terrorismo internacional iniciada a partir de 11 de setembro de 2001. Não por acaso, o governo da Colômbia recebe a terceira maior ajuda financeira [06] e militar do governo dos Estados Unidos, perdendo somente para Israel e Egito. A afinidade entre os governos colombiano e norte-americano, entretanto, parece extrapolar a seara econômica e repercutir diretamente no campo de batalha.


2.Fatos, Normas e Perspectivas internacionais envolvendo o estado de beligerância Colômbia-Equador, Março de 2008

No dia 1º de março de 2008, o o exército da Colômbia bombardeou um acampamento das FARC situado em território equatoriano, matando o número dois da guerrilha, Raul Reyes, juntamente com outros dezesseis guerrilheiros [07]. O uso da força da Colômbia contra o Equador [08] não diz respeito a nenhum conflito existente entre esses dois Estados, mas ao conflito entre um Estado, a Colômbia, e um ator não-estatal, as FARC. Essa situação é, sem dúvida alguma, semelhante à situação enfrentada por Israel [09], pelos Estados Unidos [10] e pela Turquia [11] na guerra contra o terrorismo internacional. E a Colômbia, ao que tudo indica, passa a adotar o mesmo ponto de vista desses países no que se refere ao uso da força no direito internacional.

A pratica denominada ''target killing'' significa o extermínio de lideranças de guerrilhas e organizações terroristas em guerras assimétricas entre Estados e forças armadas irregulares, ainda que tais operações sejam levadas a cabo em território de Estados soberanos, onde tais entidade encontram abrigo. Apesar de tais operações serem dirigidas contra alvos específicos, freqüentemente tais assaltos terminam em verdadeiros massacres, resultando em extenso número de mortos e feridos.

Do ponto de vista do Direito Humanitário, tais atos são injustificáveis, e a regra do ''aut dedere aut judicare'' [12] prescreve soluções compatíveis com o Direito Penal Internacional [13], e não com o Direito Internacional do uso da força, mais propriamente, o jus ad bellum [14].

Do ponto de vista do Direito Internacional do uso da força [15], mais especificamente no tocante ao argumento da legítima defesa, com base no artigo 51 [16] da Carta da ONU, a questão é fonte de grande divergência entre Estados, doutrinadores [17] e juízes da Corte Internacional de Justiça. Tais divergências podem ser agrupadas em duas interpretações do artigo 51. A primeira, defendida pelos Estados Unidos, Israel e alguns Estados Europeus, considera que o direito de legítima defesa deve ser interpretado de maneira a permitir o uso da força em resposta a ataques armados executados por atores não-estatais, tais como guerrilhas e organizações terroristas. A segunda corrente, defendida pelos países árabes e países não-alinhados, entende que o direito de legítima defesa passa a existir somente em caso de ataque armado levado a cabo por Estados. Isto é, não prescreve a possibilidade de uso da força em legítima defesa contra ataques armados cujos autores são forças armadas irregulares.


3. A jurisprudência Corte Internacional de Justiça

A posição majoritária adotada pela Corte Internacional de Justiça entende pela interpretação restritiva do artigo 51. Tal posicionamento foi estabelecido em 1986, no caso Nicarágua [18], envolvendo o uso da força dos Estados Unidos, através dos contras, ator não-estatal, no conflito entre Nicarágua e El Salvador. Segundo a maioria dos juízes da Corte, o Estado que for vítima de um ataque armado levado a cabo por um grupo irregular deverá atribuir os atos do referido grupo a um Estado [19]. Isto é, a relação entre o grupo irregular e o Estado que lhe oferece abrigo deve atingir elevado grau de interdependência, a ponto que tal grupo seja equivalente a outros órgãos estatais [20].

A interpretação da CIJ diz respeito ao uso indireto da força entre Estados, mais precisamente à situação em que um Estado contrata mercenários ou envia tropas irregulares para executar ataques terroristas armados contra alvos ligados ao Estado inimigo, sem entretanto revelar sua identidade para a comunidade internacional. O conflito entre Estados Unidos e Líbia, nos anos sessenta, reflete tal entendimento. O governo de Qadafi promoveu atentados terroristas contra alvos americanos, tais como aeronaves e clubes frequentados por soldados americanos. Os Estados Unidos responderam com o uso da força, alegando o direito de legitima defesa em 1986, em resposta ao atentado à La Belle, uma discoteca em Berlim [21]. A ação norte-americana foi amplamante criticada na ONU, e deixou de ser condenada no Conselho de Segurança em razão do veto norte-americano. [22]

Após os atentados de 11 de setembro de 2001, ficou claro para a comunidade internacional que a situação envolvendo tais eventos não se enquadrava ao contexto do uso da força indireto. Apesar disso, o Conselho de Segurança prontamente reconheceu o direito de legítima defesa dos Estados Unidos, com base no artigo 51 da Carta da ONU [23], sem qualquer referência ao autor dos atos. A posição adotada pelo Conselho de Segurança contraria o entendimento fixado pela Corte no caso Nicarágua.

Em 2005, no caso Congo v. Uganda [24], a Corte manteve o entendimento fixado no caso Nicarágua. Tal posicionamento foi amplamente criticado pela posição minoritária [25], que critica a Corte por deixar de esclarecer a relação entre Estados e atores não-estatais, quando o ato de tais atores não possam ser atribuídos a outros Estados. Crítica semelhante aparece nas posições minoritárias dos juízes Higgins, Buerguental e Koroma no Parecer Consultivo sobre a Legalidade da Construção de um Muro nos Territórios Ocupados da Palestina [26], em 2003.


4. Do Global ao Regional

Na Organização dos Estados Americanos, a OEA, a incursão do exército colombiano foi considerada violação da soberania e da integridade territorial do Equador e de princípios de Direito Internacional [27]. A Resolução 930, aprovada em 05 de março de 2008 pelo Conselho Permanente da Organização em Washignton, ao condenar o uso da força sem o consentimento expresso do governo do Equador, também chama atenção para o fato de que tal ataque tinha por objetivo atingir membros de um grupo irregular das FARC que se encontrava clandestinamente acampado no setor fronteiriço equatoriano. A resolução da OEA refere-se às FARC como grupo irregular, isto é, um ator não-estatal, como por exemplo organizações terroristas, guerrilhas e insurgências, sem entretanto fazer menção à existência de quaisquer direito de legítima defesa da Colômbia.

Por fim, o governo da Colômbia apresentou pedido de desculpas formal ao governo do Equador, e os dois Estados retomaram relações diplomáticas. A crise chegou ao fim sem intervenção da ONU ou envio de forças de paz para a região. Para o Presidente do Equador, a ''América Latina começa uma nova era, na qual vão sobressair os princípios, a justiça e o direito internacional, e na qual nunca mais deve sobressair o poder'' [28]. É possível que a crise Colômbia-Equador de março de 2008 se trate de evento isolado, e qualquer semelhança com a guerra contra o terrorismo internacional seja mera coincidência.


Notas

01 O termo ''conflito interno armado'' refere-se a todos os conflitos armadas que n''ao podem ser caracterizados ''conflitos internacionais armados'' ou ''guerras de liberação nacional''. Ver artigo 1 (1) do Protocolo II da Convenção de Genebra.

02 O Conselho de Segurança qualificou o ataque terrorista de 07 de fevereiro de 2004 como ''ameaça a paz e segurança'' internacional e invocou a reolução 1373 (2001) que cria o Comitê de Combate ao terrorismo internacional. Veja a resolução do UN/Res/1465 (2004) <http://www.un.org/terrorism/sc-res.shtml>

03 Pardo, Rafael. Colombia''s Two-Front War. Foreign Affairs, July/August 2000

04 A UNDOC, o Departamento das Nações Unidas para combate às drogas e crimes, é responsável pela iniciativa de uma série de tratados regulando crimes internacionais, dentre eles o tráfico de drogas e o terrorismo internacional. Veja em <http://www.unodc.org/unodc/en/treaties/index.html>

05 A Secretaria de Estado dos Estados Unidos afirma que Cuba oferece suporte as FARC. Veja <http://www.state.gov/s/ct/rls/crt/2006/82736.htm>

06 A Colombia recebe pacote de ajuda dos Estados Unidos no Valor de 1.6 bilhões de dólares, ficando atrás somente de Israel e Egito, dois poderosos aliados norte-americanos no Oriente Médio. <http://www.fas.org/irp/news/2000/02/000214-col-us1.htm>

07 Folha Online. Embaixador do Equador qualifica ataque colombiano de "ato de guerra". 02.03.08 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u377862.shtml>

08 O ataque ocorreu próximo à fronteira entre os dois países, e foi prontamente condenado pelo governo do Equador como violação do Direito Internacional. Giraldi, Renata. Correa chama Uribe de "traidor" e cobra ação da OEA; Lula quer solução diplomática. Folha Online. 05.03.08 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u378875.shtml>

09 Tal ataque guarda semelhanças com o ataque armado que matou Imad Mughnieh, o número dois de outra poderosa guerrila, o Hizbollah, em território Sírio em meados de fevereiro desse ano. Folha Online. Líder do Hizbollah morre em explosão na Síria; grupo acusa Israel. 13.02.08 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u372177.shtml>

10 Os Estados Unidos atacou o Sudão e o Afeganistão na tentativa de exterminar o terrorist Osama Bin Laden, lider da Al Qaeda. Veja tembém Folha Online. EUA atacam suposto acampamento da Al Qaeda, France Presse 07/01/2002 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u35621.shtml>

11 A Turquia, na guerra das lideranças da grupo terrorista e guerrilha curda, o PKK, atacou o território do Iraque várias vezes com o objetivo de exterminar os chefes do ator não-estatal. Folha Online, Força Aérea da Turquia ataca alvos de separatistas curdos no Iraque, da Efe. 22/12/2007 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u357538.shtml>

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12 Tata-se da obrigação de julgar ou extradicar individuos acusados de praticarem crimes internacionais. Ver Plachta, Michael. The Lockerbie Case: The Role of the Security Council in the Enforcing of the Principle Aut Dedere Aut Judicare. EJIL. 2001; 12: 125-140

13 O ''law enforcement approach'' é considerado um ponto de vista específico para responder a violações de normas internacionais. Outro ponto de vista para responder a tais violações, é o uso da força armada, denominado ''conflict management approach''. Veja Travalio, Greg.  Altenburg, John. Terrorism, state responsibility, and the use of military force. Chicago Journal of International Law.  Chicago:Spring 2003.  Vol. 4,  Iss. 1,  p. 97-119

14 Jus ad bellum diz respeito a permissibilidade do uso da força nas relações internacionais, isto é, quando é permitido o uso da força entre Estados.

15 O uso da força armada entre Estados é ilégal por força do artigo 2.4 da Carta da ONU, o Princípio da Proibição do uso da força nas relações internacionais.

16 ARTIGO 51 - Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

17Veja Drumbl, Mark; Reisman, W Michael; Jinks, Derek; Dinstein, Yoram; Glennon, Michael J. SELF-DEFENSE IN AN AGE OF TERRORISM American Society of International Law. Proceedings of the Annual Meeting.  Washington:Apr 2-Apr 5, 2003.  p. 141-152; Franck, Thomas M. Terrorism and the rights of self-defense. The American Journal of International Law.  Washington:Oct 2001.  Vol. 95,  Iss. 4,  p. 839-843; Murphy, Sean D. Terrorism and the Concept of "Armed Attack" in Article 51 of the U.N. Charter. Harvard International Law Journal. Winter, 2002. 43 Harv. Int''l L.J. 41 

18 ICJ Reports, 1986 <www.cij-icj.org>

19 Veja Nicaragua case, 1986, para. 195, 203

20 Veja Nicaragua Case, 1986, para. 108-9, veja também o artigo 8 (3), contido na ILC Draft Articles on State Responsibility for Wrongful Acts, (2001), p. 104

21 President Reagan. Address to the Nation on the United States Air Strike Against Libya. April 14, 1986 <http://www.reagan.utexas.edu/archives/speeches/1986/41486g.htm>

22 Pra discussão veja Franck, Thomas M. Recourse to Force. State Ation against Threats and Armed Attacks. 2002. P. 89-90; A/RES/41/38 (1986)

23 Veja UN/Res/1368 (2001), de 12 de setembro de 2001.

24 ICJ Reports, 2005 Congo v. Uganda <http://www.icj-cij.org/docket>

25 Veja as posições dos Juízes Simma, Kateka, Kooijimas e Tomka no caso Congo contra Uganda, ICJ Reports, 2005. < http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3&k=51&case=116&code=co&p3=4>

26 Veja < http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=4&k=5a&case=131&code=mwp&p3=4>

27 OEA, CP/RES. 930 (1632/08), 05 de março de 2008 <http://www.oas.org/OASpage/esp/ultimasnoticias/ultimasnoticias.asp>

28 Folha Online. Após fim do conflito, Correa diz que América Latina começa nova era. 08/03/2008 <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u379875.shtml>

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Sobre a autora
Tatiana Waisberg

Professora de Direito Internacional na Escola Superior Dom Helder Câmara. Mestre em Direito PUC-MG e Universidade de Tel Aviv, Consultora Juridica em Belo Horizonte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

WAISBERG, Tatiana. A crise armada Colômbia-Equador à luz do Direito Internacional do uso da força no contexto da guerra contra o terrorismo internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1723, 20 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11079. Acesso em: 16 abr. 2024.

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