Princípio Federativo e Reforma Tributária

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I – ALTERAÇÔES APROVADAS

O art. 1º, da Emenda Constitucional nº 132, de 20/12/2023 (EC 132/2023) acrescentou à Constituição Federal (CF) a Seção V-A, integrada pelos arts. 156-A e 156-B, denominada “Do imposto de Competência Compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios”. Ela e os normativos que a compõem coexistem com o imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS) constante da Seção IV intitulada “Dos Impostos dos Estados e do Distrito Federal” (art. 155, II) e com o imposto sobre serviços de qualquer natureza não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar (ISS), constante da Seção V que trata “Dos Impostos dos Municípios” (art. 156, III). A convivência dessas disposições ocorrerá até 31.12.2032, porque em 2033 “revogam-se os arts. 155, II, e §§ 2º a 5º, art. 156, III, e § 3º,...” (EC 132/2023, art. 22, II, “a”). Os impostos, atualmente de competência exclusiva dos Estados, do Distrito Federal (ICMS) e ou dos Municípios (ISS) serão, então, definitivamente substituídos pelo novo imposto sobre bens e serviços (IBS) de competência compartilhada entre eles, vale dizer, de competência conjunta ou repartida, mas não mais exclusiva.

O caput do art. 156-A atribui à lei complementar a competência para instituir IBS, prescrevendo seu inciso IV que esse imposto “terá legislação única e uniforme em todo o território nacional, ressalvado o disposto no inciso V”, segundo o qual “cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica”.

A lei complementar indicada no caput do dispositivo é de competência da União Federal. Só ela pode editar “legislação única e uniforme em todo o território nacional”. Nenhum ente federado pode legislar para todo o território nacional. A estes restou a competência para fixação de alíquota própria através de lei específica válida, evidentemente, no âmbito de seu território. Se não o fizer, aplica-se a alíquota de referência prevista no inciso XII, do § 1º, do art. 156-A, cuja competência é do Senado Federal.

Em síntese, a EC 132/2023 subtraiu dos entes federativos a prerrogativa para legislar sobre os impostos que a CF definiu como de sua competência exclusiva. O compartilhamento da competência referida no caput do art. 156-A não é de natureza legislativa, porque a competência para instituir e legislar sobre o IBS passa a ser da União Federal. Também não lhes foi reconhecida a atribuição de arrecadar o imposto, porque, nos termos do art. 156-B cabe ao Comitê Gestor do IBS, nos termos da Lei Maior e do que vier a ser estatuído pela lei complementar nacional, “arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios” (inciso II). Reduziu-se a competência dos entes federativos à prerrogativa de participar do produto da receita do imposto, cuja arrecadação e distribuição são funções do Comitê Gestor do IBS. Além dessa competência expressa, cabe ao Comitê Gestor, para fins de “distribuição do produto da arrecadação do imposto”, reter o montante do saldo acumulado de créditos não compensados e não ressarcidos (art. 156-A, § 4º). A repartição entre os entes federativos obedecerá, ainda, “as regras para distribuição do produto da arrecadação do imposto” a serem estabelecidas pela lei complementar nacional (art. 156-A, § 5º, I).

Na verdade, a EC 132/2023 não se limitou a suprimir as competências legislativas e de arrecadação dos entes federados. Ela avançou, sem dúvida, nas esferas de fiscalização e organização administrativas dos mesmos. Embora o inciso V, do § 2º, do art. 156-B, assevere que a fiscalização, o lançamento, a cobrança, a representação administrativa e a representação judicial relativos ao IBS serão realizadas, no âmbito de suas respectivas competências, pelas administrações tributárias e procuradorias dos entes federativos, essas atribuições dependem do que vier a dispor a lei complementar nacional prevista nesse § 2º. Vale dizer, são atividades e atribuições a serem exercidas nos limites e condições que ela prescrever. Some-se a competência conferida ao Comitê Gestor do IBS de “editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto” e de “decidir o contencioso administrativo” (art. 156-B, I e III). Dir-se-á, certamente, para afirmar a subsistência da autonomia dos entes federados, que é a eles que cabem essas competências, numa exegese, no mínimo, enevoada do caput desse dispositivo. Lendo-se, sem subterfúgios e predisposições, o preceito, os entes federativos as exercerão “de forma integrada, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços”, nos termos e limites estabelecidos na lei complementar e não apenas do que previsto na CF. Adicione-se, ainda, ser da competência da União Federal, através de lei complementar, dispor sobre “o processo administrativo fiscal do imposto” e “os critérios para as obrigações tributárias acessórias” (art. 156-A, § 5º, VII e IX).

Esse conjunto de regras evidencia que a competência tributária exclusiva dos entes federados, hoje inscrita nos arts. 155, II, e 156, da CF, sobre as operações neles identificadas (mercadorias e prestações de serviços) foi drasticamente suprimida. Resta-lhes o consolo de fixar a alíquota do novo IBS.

II – FORMA FEDERATIVA DO ESTADO

Cabe considerar, então, se as normas dos novos artigos 156-A e 156-B da CF se compatibilizam com o princípio federativo. Ele está enfaticamente proclamado no art. 1º da CF, porque a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, “todos autônomos, nos termos desta Constituição” (CF, art. 18), podendo a inobservância do princípio da autonomia municipal justificar a intervenção da União (CF, art. 34, VII, c).

Comentando a Constituição Federal de 1946, Celso Bastos elencava entre os pressupostos de existência do Estado Federal “a distribuição de competências entre a União e os Estados”. Não obstante entendesse que o critério dessa repartição é basicamente político e não jurídico observou ser necessário “para que subsista a autonomia dos Estados frente à União,... que desfrutem eles de um mínimo de prerrogativas próprias, sob pena de a autonomia, ainda que formalmente reconhecida, perder qualquer significação substancial” (1).

Interpretando o art. 1º da CF de 1988, José Afonso da Silva ensina que ”se o poder se reparte no espaço territorial (divisão espacial de poderes), gerando uma multiplicidade de organizações governamentais autônomas, distribuídas regionalmente, tem-se Estado Federal ou Federação de Estados. A repartição regional de poderes autônomos constitui o cerne do conceito de Estado Federal” (2).

Sob a ótica do direito tributário, Bernardo Ribeiro de Moraes esclarece que “a atribuição constitucional de competência tributária (parcela de poder fiscal) compreende uma atribuição específica de poder legislativo. No poder fiscal, ou competência tributária, conferido à entidade pública, há implicitamente a outorga de uma capacidade legislativa plena, respeitadas, obviamente, as ressalvas contidos nos princípios e nas normas maiores do próprio ordenamento jurídico maior” (3). A atribuição constitucional de competência tributária não se restringe à capacidade legislativa de instituir o tributo. “Ao lado da competência tributária (poder de baixar normas jurídicas tributárias), a entidade tributante recebe funções tributárias”, inerentes ao dever “de aplicar as leis tributárias, de executar leis, atos ou decisões administrativas, onde se acham as funções de fiscalizar e arrecadar o tributo criado por lei” (4).

A Federação só existe e subsiste quando, na repartição de competências, se assegura às entidades federadas adequada autonomia. Esta não pode limitar-se à capacidade de legislar sobre sua organização administrativa, seus servidores e respectivo regime jurídico, ou à atribuição de competências para a gestão de tarefas de variada natureza que lhes são conferidas. É essencial que as entidades federativas gozem de competência legislativa plena para, no âmbito tributário, instituírem e disporem sobre os tributos a elas constitucionalmente outorgados, inclusive e, fundamentalmente, para regularem todos os aspectos relacionados à fiscalização e arrecadação. Se assim não for, sua autonomia, solenemente proclamada pela Lei Maior, desaparecerá ou será reduzida a mera figura de retórica. Se as unidades federadas não são ou não forem efetiva e verdadeiramente autônomas, o Estado Federal deixa ou deixará de existir concretamente, tornando-se, quiçá, uma figura ideal, uma noção vazia de conteúdo.

Na vigência da atual Constituição, quase sempre de forma nebulosa, a agressão à autonomia das entidades federadas não é desconhecida. Como destaca Rogério Vidal Gandra da Silva Martins, “não querendo partir para a redução de despesas e também não vendo pouco interesse fiscal direto no aumento de impostos, vez que estes teriam de ser partilhados entre outros entes federativos, a União iniciou sua investida de tributação por meio das contribuições de intervenção no domínio econômico, subespécie de contribuição especial que raramente era utilizada...” (5). Idêntica opinião é externada por Regis de Oliveira Fernandes, segundo o qual, “a União, para não ter de partilhar o bolo tributário com Estados, Distrito Federal e Municípios, passou a instituir contribuições. Por força de disposições constitucionais, os impostos são partilhados. Já as contribuições, não. Daí, o que aconteceu foi o forte crescimento das receitas da União e o desprezo da partilha com os demais entes federados. Tal situação criou desequilíbrio federativo, com concentração absurda de recursos no âmbito da União” (6).

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A criação do novo IBS participa desse movimento de aniquilação, ou, no mínimo, de esvaziamento ou depauperamento da autonomia das entidades federadas e, por conseqüência, da Federação. Sua forma e conteúdo não são inéditos, como atesta Regis de Oliveira Fernandes, ao recordar a tramitação “pelo Congresso Nacional, (de) mais uma meia reforma tributária, pela qual o Estado busca acabar com a denominada guerra fiscal entre os Estados, instituindo um ICMS que seria implementado por lei complementar. A idéia é que terminem as leis estaduais, passando a existir apenas uma lei, federal, que disciplinaria todo o tributo. Observem que há sempre a idéia de concentração de poderes. Ainda que disciplinada por órgão composto de representantes de
Estados e regiões, evidente está que os poderes dos Estados ficarão limitados”
(7).

III – CLÁUSULA PÉTREA

Sem entidades federativas realmente autônomas não há Federação. Portanto, qualquer iniciativa, ainda que o resultado não seja desejado por seu autor, que deteriore a coesão federativa prescrita pelo constituinte originário deverá ser rechaçada, sob pena contribuir para a dilaceração do pacto federativo. Certamente por ter vislumbrado a possibilidade de, sorrateira e paulatinamente, virem elas a ser adotadas, o art. 61, § 4º, inciso I, determinou que “não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado”. A exegese dessa norma está muito bem delineada por José Afonso da Silva, porque “o texto não proíbe apenas emendas que expressamente declarem ‘fica abolida a Federação’, ou ‘a forma federativa de Estado’;... A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual da Federação ou do voto direto...; basta que a proposta de emenda se encaminhe, ainda que remotamente, ‘tenda’ (emendas ‘tendentes’ – diz o texto) para a sua abolição” (8).

Ninguém se atreveria a subscrever uma emenda à Constituição que, clara e abertamente, propusesse a extinção da forma federativa do Estado. É suficiente para impedir que uma emenda não possa ser objeto de deliberação que ela, se discutida e aprovada pudesse ser, tenha propensão para, ainda que indiretamente, alcançar essa finalidade. Basta que ela tenha vocação, tendência, inclinação, pendor para afetar a forma federativa.

IV – CONCLUSÃO

A formatação constitucional do novo imposto (IBS) definida pela EC 132/2023, tem, em síntese, as seguintes características:

1. Elimina a competência exclusiva dos entes federados para legislar sobre os impostos de sua competência, a qual passa a ser titulada pela União Federal através de lei complementar;

2. Institui o Comitê Gestor do IBS, ao qual comete as funções de editar regulamento único, uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto, arrecadá-lo e distribuir o produto de sua arrecadação e decidir o contencioso administrativo, dentre outras, tudo a ser objeto de lei complementar da União;

3. Como conseqüência, suprime, também, as funções dos entes federados de organizar, fiscalizar e arrecadar o imposto.

Em conclusão, os arts. 156-A e 156-B da CF, na forma como aprovados pela EC 132/2023, afetam a autonomia dos entes federados, especialmente na esfera tributária. Tendem a abolir a forma federativa de Estado, contrariando o art. 60, § 4º, inciso I, da Constituição Federal.

São Paulo, 27 de fevereiro de 2024.

Antônio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado – OAB/SP 24.975

Procurador do Estado de São Paulo aposentado

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 6ª ed., 1983, p. 100.

(2) José Afonso da Silva, Comentário Contextual à Constituição, Malheiros, 2005, p. 33.

(3) Bernardo Ribeiro de Moraes, Compêndio de Direito Tributário, Forense, 4ª ed., 1995, p. 264.

(4) Bernardo Ribeiro de Moraes, Compêndio... cit., p. 265.

(5) Rogério Vidal Gandra da Silva Martins, Da Tributação e do Orçamento, in Constituição Federal – Avanços, contribuições e modificações no processo democrático brasileiro, Coordenação de Ives Grandra Martins e Francisco Rezek, Ed. Revista dos Tribunais, 2008, p.561.

((6) Regis de Oliveira Fernandes, A Evolução do Direito Financeiro no Brasil (Análise de 20 anos da Constituição), in Constituição Federal cit., Revista dos Tribunais, 2008, p. 566.

(7) Regis de Oliveira Fernandes, artigo e loc. cit., p.566.

(8) José Afonso da Silva, ob. cit., p.441.

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