O CNJ aprovou em 20.08.24, alterações a serem realizadas na Resolução n.º 35/2007. As alterações decorreram do PP 0001596-43.2023.2.00.0000 e já estão em vigor desde 30.08.24 com a publicação da Resolução n.º 571, de 26.8.2024 que altera a Resolução n.º 35/2007. As alterações são na verdade inovações. Dentre estas alterações está a previsão de possibilidade de realização de inventários e partilhas na via extrajudicial, mesmo havendo interessado incapaz ou menor de idade. O dispositivo aprovado acerca da matéria tem o seguinte teor:
Art. 12-A. O inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde que o pagamento do seu quinhão hereditário ou de sua meação ocorra em parte ideal em cada um dos bens inventariados e haja manifestação favorável do Ministério Público.
§ 1º Na hipótese do caput deste artigo é vedada a prática de atos de disposição relativos aos bens ou direitos do interessado menor ou incapaz.
§ 2º Havendo nascituro do autor da herança, para a lavratura nos termos do caput, aguardar-se-á o registro de seu nascimento com a indicação da parentalidade, ou a comprovação de não ter nascido com vida.
§ 3º A eficácia da escritura pública do inventário com interessado menor ou incapaz dependerá da manifestação favorável do Ministério Público, devendo o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante.
§ 4º Em caso de impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juízo competente.
Dentre os vários requisitos que devem ser observados para a realização do inventário na via extrajudicial com interessado incapaz ou menor de idade, um deles é a manifestação favorável do Ministério Público, inclusive como condição para a eficácia do ato (§ 3º, art. 12-A).
Ocorre que não há no caput do artigo 12-A e nem em seus parágrafos informação clara se esta manifestação será dada na própria escritura pública de inventário e partilha (MP como parte interveniente/anuente) ou se em procedimento prévio à lavratura do ato, no qual contará com a minuta da escritura a ser lavrada e os documentos que lhe dão suporte. Noticia divulgada no site do CNJ diz que “[...] os cartórios terão de remeter a escritura pública de inventário ao Ministério Público (MP). Caso o MP considere a divisão injusta ou haja impugnação de terceiro, haverá necessidade de submeter a escritura ao Judiciário. Do mesmo modo, sempre que o tabelião tiver dúvida a respeito do cabimento da escritura, deverá também encaminhá-la ao juízo competente”.
Ora, como o § 3º menciona que “[..] deve[ndo] o tabelião de notas encaminhar o expediente ao respectivo representante” e o § 4º admite a possibilidade de “[..] impugnação pelo Ministério Público ou terceiro interessado [...]” devendo “[...] o procedimento [...] ser submetido à apreciação do juízo competente” [juízo competente=igual a juízo sucessório], tudo indica que, o que deve ser encaminhado pelo tabelião de notas ao representante do MP é o expediente [procedimento=processo administrativo] que dará origem a escritura pública, acompanhado da minuta da escritura a ser lavrada e dos documentos que lhe dão subsídio, e não a própria escritura pública já lavrada e selada. O próprio caput do art. 12-A deixa registrado que “o inventário poderá ser realizado por escritura pública, ainda que inclua interessado menor ou incapaz, desde [...] haja manifestação favorável do Ministério Público, ou seja, somente se pode realizar o inventário no extrajudicial na hipotese descrita se houver a manifestação favorável do Ministério Público. Ademais, vejam que, os §§ 3º e 4º falam, de modo respectivo, em “expediente” e “procedimento” [que devem ser encaminhados respectivamente ao MP e ao juízo competente] conceitos que devem ser buscados no direito administrativo.
Segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, os atos de expediente são atos internos da Administração que visam dar andamento aos serviços desenvolvidos por uma entidade, um orgão ou uma repartição1. Esses mesmos autores citam como exemplos de atos de expediente o encaminhamento de documentos à autoridade que possua atribuição de decidir sobre o merito; a formalização de um processo protocolado por um particular e o cadastramento de um processo nos sistemas informatizados de um órgão público2.
Lado outro, a noção de procedimento ainda sobrevive no âmbito do direito administrativo para indicar os processos administrativos que, por sua própria natureza, carecem do contraditório. Segundo Hely Lopes Meirelles, “os autores de língua castelhana ora empregam a palavra ‘procedimento’ no sentido de processo administrativo, ora no de procedimento propriamente dito, o que exige do leitor a devida atenção para fazer a distinção necessária, uma vez que para nós processo e procedimento tem significado jurídico diverso”3. Odete Medauar ao tratar dos critérios comumente invocados para distinguir procedimento e processo revela que “[...] o procedimento consiste na sucessão necessária de atos encadeados entre si, que antecede e prepara um ato final”4. Por sua vez, Edmir Neto Araújo afirma que “[...] seriam procedimentos as formalizações de passos escalonados em sequência lógica, em direção ao objetivo formal (‘produto’ formal, ‘provimento’ formal) visado, sem a previsão do contraditório na respectiva estrutura”5.
Dos conceitos apresentados infere-se que o procedimento corresponde a uma sucessão concatenada de atos e formalidades, estrutural e funcionalmente distintos, com ou sem a cooperação de outros sujeitos, com vistas à concretização de um ato final, como a expedição de uma decisão ou de um regulamento e até mesmo a formalização de um contrato administrativo. Desta forma, como bem pontuado por Odete Medauar, o procedimento antecede e prepara o ato final visado.
Assim, o expediente ou o procedimento, a que se refere os § 3º e 4º, serve para preparar o ato final, que será a lavratura e a selagem da escritura de inventário e partilha com interessado incapaz ou menor.
Um outro argumento que justifica esta interpretação é o fato de que tanto o capút do art. 12-A quanto o seu § 3º falam em ‘manifestação do Ministério Público’ e não em anuência. O termo anuência, que tem a sua previsão no artigo 220 do CC significa concordância com o que está escrito no instrumento, bem como a ciência do ato pela parte. No cotidiano da atividade notarial o mais comum é a anuência simultânea à realização do negócio jurídico, manifestada na própria escritura pública, onde, inclusive, o anuente estará qualificado. Vale dizer, a prática da atividade notarial tem demonstrado o corriqueiro é a formalização do consentimento do anuente na própria escritura pública. Por outro lado, é costumeiro o MP exercer a suas atribuições através de manifestação exarada em autos do processo judicial, em inquéritos policial e em procedimentos administrativos, no que serve de exemplo os procedimentos administrativos instaurados pelo próprio MP. Um outro exemplo também de manifestação obrigatória do MP em procedimento administrativo pode ser buscado no processo de habilitação de casamento. A manifestação do aludido órgão ocorria no bojo do processo de habilitação (através de parecer, para que o ato final visado, a celebração do casamento, fosse concretizado) e não no registro do casamento lavrado pelo registrador civil das pessoas naturais.
Há ainda um outro problema. É que se for encaminhada ao MP a escritura lavrada e selada, se ela for impugnada pelo órgão ministerial ou pelo terceiro interessado e esta impugnação vir a ser mantida pelo juiz competente, como ficará a questão dos emolumentos previamente recolhidos para a prática do ato? A a parte que pagou o ato terá direito à restituição total ou parcial do valor pago ou irá perdê-lo? Não se vê dos dispositivos aprovados nada sobre isso. É bem provável que muitos não irão querer se aventurar em pagar emolumentos (que tem como base de cálculo o valor dos bens) pela lavratura e selagem da escritura de inventário com o risco de perder o dinheiro desembolsado.
Não obstante, e se o julgamento da impugnação demorar a ocorrer, de forma que seja ultrapassado o prazo que todas as partes têm para assinar o ato manifestando a sua concordância com ele? Teria o tabelião de notas que aguardar o julgamento da impugnação, em razão de uma suposta suspensão do prazo para assinatura, tal como ocorre no procedimento de suscitação de dúvida, como sabido, uma vez instaurado suspende o prazo da prenotação do título? Ou o tabelião de notas teria que declarar a escritura sem efeito, não sendo devida qualquer restituição de emolumentos por parte deste profissional, tendo em vista a reguar prática do ato no que concerne as suas atribuiçoes? Veja que, os dispositivos aprovados também nao chegaram a tratar disso.
Não se pode esquecer que a extrajudicialização têm que proporcionar não só economia de tempo na resolução de um interesse jurídico, mas também economia financeira para as partes interessadas.
A próposito desses argumentos aqui expendidos, parece mesmo que, o que deverá ser encaminhado ao MP é o expediente (o procedimento administrativo ou o processo administrativo) que dará origem ao ato final a ser confeccionado. Esse expediente deverá conter a minuta da escritura pública a ser lavrada, acompanhada dos documentos necessários à confecçao do ato, inclusive, dentre eles, a pré-minuta do advogado dos interessados.
Quando da lavratura do ato, para a sua segurança e a própria eficácia, é importante transcrever no corpo da escritura os dados resumidos da manifestação favorável do MP, como a data, número do expediente junto ao MP e nome do Promotor de Justiça responsável pela manifestação. É importante destacar, é dever insíto do tabelião de notas ao compor interesses, praticar atos que satisfaça concomitantmente os requisitos de existência, validade e efícácia.
Ressalta-se que a exigência de manifestação favorável do MP decorre do fato de ser dever deste órgão atuar como custos legis no processos que envolvam interesse de incapaz, tal como prescreve o artigo 178, II do CPC.
Merece crítica a necessidade desta intervenção, em razão de um dos própositos das alterações promovidas pelo CNJ, é possibilitar às pessoas incapazes e menores de idade também o acesso a uma Justiça rápida e eficiente. Encaminhar o procedimento ao MP em nada colabora para o alcance de uma Justiça razoavelmente célere, se levarmos em consideração que o órgão ministerial tem prazo de 30 (trinta) dias para realizar a sua intervenção, prazo que será contado em dias úteis, conforme dispõe o art. 219. do CPC. Ora, como o tabelião de notas é profissional do direito dotado de fé pública, ele mesmo poderia ter a responsabilidade de observar se os interesses do incapaz ou do menor de idade estariam sendo respeitados6, e, uma vez finalizado o inventário ele encaminharia a cópia do instrumento notarial, acompanhado dos documentos que lhe deram subísido, ao representante do MP para o devido conhecimento.
Não há dúvida que os novos dispositivos que foram acrescentados à Resolução 35/2007 do CNJ vieram em boa hora, todavia, eles poderiam ter sido mais claros e também poderiam ter vindo acompanhado de outros avanços. Mas sem sombra de dúvida já foi um grande passo dado.
E viva o extrajudicial!
Referências
ALEXANDRINO, Marcelo; MACHADO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2002.
ARAÚJO, Edmir Netto de. O ilicito administrativo e seu processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994.
CNJ. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS n.º 0001596-43.2023.2.00.0000. Relator Conselheiro Ministro Luis Felipe Salomão. Data do Julgamento: 22.08.2024. Data Publicação Acórdão: 22.08. 2024.
MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. Rio de Janeiro, Reveista dos Tribunais, 1993.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo Brasileiro. 21. ed. Atual. Por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1996.
Notas
1 ALEXANDRINO, Marcelo; MACHADO, Vicente. Direito administrativo descomplicado. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Método, 2002, p. 424.
2 Ibidem.
3 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo Brasileiro. 21. ed. Atual. Por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 139, nota 14.
4 MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. Rio de Janeiro, Reveista dos Tribunais, 1993, p. 29-42.
5 ARAÚJO, Edmir Netto de. O ilicito administrativo e seu processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 127.
6 Veja que o tabelião poderá ser negar a lavrar a escritura de inventário ou partilha se houver fundados indícios de fraude, simulação ou em caso de dúvidas sobre a declaração de vontade de algum dos herdeiros e/ou inventariante, fundamentando a recusa por escrito (§2º, art. 32. da Resolução CNJ n.º 35/2007, com redação dada pela Resolução n.º 571, de 26.8.2024).