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Ideologia, Constituição e cinema.

Dominação e encobrimento no final da modernidade

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3- CONCLUSÃO

Diante de todo o processo de exclusão e dominação, alguns destes excluídos começam a enxergar o que estava encoberto. Não só excluídos, entretanto, são capazes de enxergar. Alguns incluídos também têm consciência do processo de dominação. Alguns manipulam este processo outros simplesmente tem consciência e se conformam ao aproveitar das recompensas do sistema. Como mudar tudo isto? Como revelar o que está encoberto aos acomodados? Será que estes acomodados querem deixar sua posição atual?

Alguns sinais importantes têm ocorrido no mundo contemporâneo que apontam uma possível transformação. O principal sinal é a proliferação de espaços reflexivos ou em outras palavras um maior número de organizações da sociedade civil em torno de idéias e interesses diversos. A dinamicidade destes espaços alternativos tem permitido uma maior discussão e reflexão assim como divulgação de novas perspectivas de mundo, de novas compreensões e de novas esperanças de transformação. Hoje existe toda uma estrutura de organização global alternativa que se expressa em fóruns sociais, aparatos de informação e redes de comunicação de movimentos sociais que tem influenciado pessoas e impulsionando movimentos sociais, coletivos e individuais os mais diversos.

O filme trata de um destes movimentos. O movimento de três jovens que acredita poder ser o estopim, a centelha que pode levar a movimentos maiores, a tomada de consciência e a coragem para a ação de outros grupos e pessoas.

A ação dos três desafiadores educadores apela para o estranhamento e a ameaça verbal. Ao invadir casas de pessoas ricas, os educadores mudam os objetos, os moveis de lugar, constroem monumentos à inutilidade do consumo do luxo, do desnecessário, do excessivo e deixam uma mensagem: seus dias de fartura estão acabando. Não roubam nada, apenas mostram o excesso ao fazer esculturas ou monumentos que reportam à acumulação do excesso, do desperdício que agride a falta da maioria.

O filme permite uma reflexão importante. É possível transformar criando um diálogo franco a partir da ameaça? Para criar condições de diálogo, para poderem ser ouvidos, para que possamos se ouvidos sobre o que não pode ser questionado temos que ameaçar? Historicamente nunca houve transformação sem vidros quebrados. Para transformar terminando com formas variadas de exploração, exclusão e dominação os grupos explorados, excluídos e dominados tiveram que se organizar e ameaçar. Tiveram que se fazer incômodos para serem ouvidos. Tiveram que quebrar vidros, afundar barcos, boicotar, gritar, paralisar, para serem respeitados e sua fala ser ouvida, para criar condições de igualdade de negociação. Para haver diálogo é necessário que as partes se considerem iguais em força: esta força pode significar conhecimentos, respeito, força bruta, ameaça real. Ao criar condições de ser ouvido batendo na mesa a continuidade da recusa em negociar por quem oprime, domina e explora pode significar rupturas. Foi assim com a revolução americana; a revolução francesa; a revolução russa, e muitas outras rupturas no decorrer da história.

A busca da construção de um Estado democrático e social de direito no século XX foi para alguns uma tentativa de estabelecimento de espaços dialógicos de igualdade entre as mais variadas formas de pensar; os diversos grupos sociais e de interesses; as diversas pessoas, que compareceriam nos espaços públicos em condição jurídica de igualdade. Entretanto a desigualdade econômica e a apropriação dos mecanismos de poder político e econômico têm comprometido seriamente esta pretensão. O filme também mostra esta colonização do Direito e do poder judiciário pelo sistema econômico.

Por fim o filme nos mostra uma descrença no dialogo social entre pessoas que tem interesses opostos. Há uma descrença na sinceridade deste dialogo uma vez que este não ocorre em nome apenas da razão de um sujeito diante de outro sujeito. Este diálogo vem acompanhado de diversos outros sentidos, emoções e interesses que envolvem as pessoas que se encontram dentro do sistema. O sistema seqüestra a pessoa e a envolve em uma rede de preocupações, prazeres, medos e desejos, rede esta que não pode ser desconsiderada no dialogo entre dois sujeitos que não se revelam em sua inteireza. O sujeito é mais do que o sistema que o aprisiona, mas por diversas razões este não consegue dialogar ignorando as razões do sistema. Medo, desejo, razão, tudo isto vais além da possibilidade concreta de diálogo entre duas pessoas.

As pessoas não estão definitivamente aprisionadas pelo seu entorno, pela sua história, pelos seus desejos, pela ideologia, mas estão fortemente comprometidas por tudo isto.

No final, uma aposta maior. Uma ameaça maior, até para que alguns, antes de perderem tudo, aceitem negociar alguma coisa.


Notas

01 Sobre o Estado dois excelentes livros: CUEVA, Mario de la. La idea de Estado, Fondo de Cultura Econômica – Universidad Nacional Autônoma de México, México, D.F. CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.

02 ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora Perseu Abramo, São Paulo, 2005.

03 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito Constitucional, Tomo I, Editora Mandamentos, Belo Horizonte, 2ª edição, 2004.

04 Carlo Ginsburg menciona o estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isto nos leva a pensar porque exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são os seus como são contra os seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001.

05 Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e a partir do momento que é lido são atribuídos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir sentido, o que por sua vez significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas.

06 Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: "Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica a religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e particularmente por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais especificas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um ele necessário entre formas "invertida" de consciência e a existência material dos homens. É esta relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em conseqüência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. ." (Dicionário de pensamento marxista editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

07 ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes.

08 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, 1994.

09 No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: "Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos." Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: "Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre." MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5

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10 Nas páginas 8 e 9 do livro "El arbol do conoscimiente"os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo que dizemos aqui: "el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo". MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8

11 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

12 ZIZEK, Slavoj. Às portas da revolução – escritos de Lênin de 1917, Editora Boitempo, São Paulo, 2005, pag. 178.

13 Nas palavras de Zizek: "Este frágil equilíbrio foi perturbado; por quê? Pelo desejo, exatamente. O desjo era uma força que levava as pessoas a avançar – e chagar a um sistema em que a vasta maioria era definitivamente menos feliz. ... resumindo, felicidade pertence ao princípio do prazer, e o que a solpa é a insistência em um além do principio do prazer." Os EUA são o exemplo da promessa de felicidade no consumo. Cada vez que se conquista um bem outro já se mostra disponível, A felicidade está sempre no próximo bem a ser consumido. E o apelo ao constante ir além do principio do prazer. ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real, Estado de Sitio, Boitempo editorial, São Paulo, 2003, Pág 78.

14 Um outro mecanismo de dominação e manipulação do real é a estratégia amplamente utilizada pela imprensa de explicar o geral pelo fato particular. Slavoj Zizek no livro citado anteriormente (Plaidoyer em faveur de l’intolerance) menciona dois exemplos norte-americanos. Cita o caso, por exemplo da jovem mulher de negócios bem sucedida que transa com o namorado e engravida e resolve abortar para não atrapalhar a sua carreira. Este é um caso que ocorre entre milhares, talvez milhões de outras situações. Entretanto o poder toma este caso como exemplo permanente para demonstrar o egoísmo que representa o aborto diante da opinião pública. Ao explicar o geral pelo particular ou construir predicados para grupos sociais, a tarefa de manipulação para a dominação se torna mais fácil.

15 É fundamental ler Giorgio Agambem, especialmente o livro Homo Sacer, publicado pela editora UFMG, Belo Horizonte. Ler também o texto Profanation, do mesmo autor, publicado em Paris, 2005 pela editora Payot e Rivages. Neste ultimo texto o autor explica o processo de sacralização como mecanismo que retira do livre uso das pessoas determinadas coisas, objetos, palavras, jogos, etc. Através da profanação, do rompimento do rito com o mito, é possível devolver estas coisas, palavras, ao livre uso.

16 BADIOU, Alain. Circonstances, 3 – portées du mot "juif".,Editions Lignes e manifeste, Paris, 2005,15.

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Sobre o autor
José Luiz Quadros de Magalhães

Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais<br>Professor da UFMG, PUC-MG e Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros.<br>Professor Visitante no mestrado na Universidad Libre de Colombia; no doutorado daUniversidad de Buenos Aires e mestrado na Universidad de la Habana. Pesquisador do Projeto PAPIIT da Universidade Nacional Autonoma do México

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Ideologia, Constituição e cinema.: Dominação e encobrimento no final da modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1733, 30 mar. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11103. Acesso em: 22 dez. 2024.

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