O STF julgando o RE nº 922.144 sob a égide de repercussão geral – Tema 865 – decidiu, por maioria de votos, que no caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios.
Houve modulação de efeitos para que a decisão acima seja aplicada somente em relação às ações de desapropriação ajuizadas após a publicação da ata deste julgamento.
Transcrevemos a ementa do julgado para melhor exame:
“Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 865 da repercussão geral, em voto médio, a) fixou, sob o regime da repercussão geral, a seguinte tese: “No caso de necessidade de complementação da indenização, ao final do processo expropriatório, deverá o pagamento ser feito mediante depósito judicial direto se o Poder Público não estiver em dia com os precatórios”. Por maioria, b) limitou, todavia, a eficácia temporal desta decisão, para que as teses nela estabelecidas sejam aplicadas somente às desapropriações propostas a partir da publicação da ata da sessão deste julgamento, ressalvadas as ações judiciais em curso em que se discuta expressamente a constitucionalidade do pagamento da complementação da indenização por meio de precatório judicial; e c) em virtude da modulação temporal acima fixada, deu provimento ao recurso extraordinário para que a diferença da indenização seja paga mediante depósito direto pelo Município de Juiz de Fora. Tudo nos termos do voto do Ministro Luís Roberto Barroso (Presidente e Relator), vencidos os Ministros Gilmar Mendes, ausente, justificadamente, neste julgamento, mas com voto proferido em assentada anterior, e os Ministros Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça, que negavam provimento ao recurso nos termos de seus votos. O Ministro Cristiano Zanin votou na fixação da tese, mas não votou no mérito, por suceder o Ministro Ricardo Lewandowski, que votara em assentada anterior acompanhando o Relator. Ausente, justificadamente, neste julgamento o Ministro Alexandre de Moraes. Plenário, 19.10.2023.”
Tudo indica ter havido confusão entre a indenização fixada por sentença com o valor da oferta depositada que deve ser complementado até o limite apurado pela avaliação prévia feita pelo perito judicial, para que aquele valor ofertado e depositado seja tanto quanto possível próximo da realidade imobiliária, tendo em vista o princípio constitucional da prévia e justa indenização.
Os tribunais do País não mais estão aceitando o depósito do valor cadastral como permite o § 1º, do art. 15 do Decreto-lei nº 3.365/41, diploma básico da desapropriação.
Contudo, esse preceito legal não teve a sua inconstitucionalidade decretada por qualquer tribunal do País, inclusive, pelo STF para quem o valor da oferta depositado “não tem em vista a cobertura do desfalque patrimonial imposto ao particular, mas uma contraprestação capaz de retirar da medida excepcional o caráter gratuidade” (RE nº 91.611 - RTJ 101/719).
De fato, não há como depositar o valor do justo preço senão após apurado esse valor pelo crivo do contraditório, o que ocorre com a prolação de sentença fixadora do justo preço.
Quando no exercício do cargo de Diretor do Departamento de Desapropriações da Prefeitura de São Paulo introduzimos a sistemática da avaliação administrativa dos imóveis a serem desapropriados, para servir de base ao valor da oferta a ser depositado.
Com isso, a diferença acaso devida, entre o valor ofertado e depositado e o valor da indenização fixada era irrisória na maioria dos casos, livrando o poder expropriante do pesado ônus da sucumbência e dos juros moratórios que incidem sobre a diferença entre o valor da oferta e da indenização fixada. E aqui é oportuno assinalar a necessidade de correção da jurisprudência de nossos tribunais que exclui os 20% de oferta depositada na apuração da base de cálculo da verba honorária e dos juros moratórios. Primeiramente, porque esses 20% podem ser levantados pelo expropriado em havendo laudo pericial preconizando o justo preço com a concordância do assistente técnico do poder público expropriante. Em segundo lugar, porque o valor dos 20% depositado estará rendendo juros e atualização monetária pela taxa selic.
A tese aprovada na apreciação do Tema 865 mostra-se inviável ante a realidade judiciária vigente.
Desde que foi promulgada a Constituição de 1988 a sistemática de inclusão do precatório apresentado até 1º de julho, agora, 2 de abril de cada exercício, para inclusão orçamentária na LOA do ano seguinte, a fim de fazer-se o pagamento dentro da ordem cronológica de apresentação de precatórios, a partir do dia 1º de janeiro até o dia 31 de dezembro, como preconiza o art. 100 e seu § 5º da CF, nunca foi observada por conta de sucessivas moratórias de precatórias que teve início com a edição do art. 33 do ADCT da Constituição de 1988, que previu o regime especial de pagamento de precatórios em oito parcelas anuais, iguais e sucessivas.
Esse regime especial foi sendo prorrogado sucessivamente pelas Emendas Constitucionais nºs 30/2000; 37/2002; 62/2009; 94/2016; 99/2017; e 109/2021 que prorrogou o pagamento de precatórios até o dia 31 de dezembro de 2029.
Certamente, antes do vencimento do prazo constitucional outra Emenda Constitucional será promulgada para mandar para as calendas gregas o prazo fatal para a quitação desses precatórios ditos “impagáveis”.
Até a União, que vinha cumprindo rigorosamente seus precatórios, em 2021 aderiu aos calotes dos Estados e Municípios por meio da EC nº 114/2021.
O calote federal é sui generis. Prevê a limitação de valores a serem incluídos na LOA até o final do exercício de 2026. Com isso dá cumprimento ao art. 100 e § 5º da CF efetuando o pagamento de precatórios na ordem cronológica de sua apresentação até o limite da inclusão orçamentária. Não deixa de ser um calote, porque impede a inclusão orçamentária de todos os valores resultantes da condenação judicial. O astuto legislador antecipou o calote para a fase de inclusão orçamentária!
Dentro dessa realidade em que se acumulam montanhas de precatórios em aberto, falar em depósito direto da complementação da indenização fixada por sentença, desde que o poder público não esteja em dia com os precatórios, não faz, data vênia, menor sentido.
Os Estados e Municípios que acumulam precatórios não pagos desde 5 de outubro de 1988 até os dias atuais teriam que promover o pagamento mediante o depósito direto em juízo.
Como ficam os credores caloteados que estão na fila há mais de quinze anos? Como ficam os princípios da moralidade e da impessoalidade expressos no art. 37 da CF?
Considerando que centenas de decisões fixadoras do justo preço estão sendo prolatadas diariamente, como observar a ordem cronológica de pagamentos sem o precatório judicial?
Sem o precatório judicial o Poder Público perderia, por completo, o controle de suas dívidas oriundas de condenação judicial.
A medida aventada na decisão do Tema 865 do STF seria viável na década de quarenta, quando veio à luz o Decreto-lei nº 3.365/41. Naquela época as desapropriações aconteciam de forma espaçada chegando a 10 ou 15 ações por ano nas metrópoles. Hoje, essas ações são ajuizadas em massa ensejando centenas de decisões fixadoras do justo preço diariamente em todo o território nacional.
Na conjuntura atual, sem o precatório, o Poder Público não terá como observar os princípios da moralidade e da impessoalidade, nem de manter o controle de sua dívida passiva.
Outrossim, a decisão sob análise afronta diretamente o art. 100 e §§ 2º e 5º da CF:
“Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.
[...]
§ 2º Os débitos de natureza alimentícia cujos titulares, originários ou por sucessão hereditária, tenham 60 (sessenta) anos de idade, ou sejam portadores de doença grave, ou pessoas com deficiência, assim definidos na forma da lei, serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, até o valor equivalente ao triplo fixado em lei para os fins do disposto no § 3º deste artigo, admitido o fracionamento para essa finalidade, sendo que o restante será pago na ordem cronológica de apresentação do precatório. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 94, de 2016).
[...]
§ 5º É obrigatória a inclusão no orçamento das entidades de direito público de verba necessária ao pagamento de seus débitos oriundos de sentenças transitadas em julgado constantes de precatórios judiciários apresentados até 2 de abril, fazendo-se o pagamento até o final do exercício seguinte, quando terão seus valores atualizados monetariamente.” (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021).
E mais, por força do art. 97 do ADCT introduzido pela EC nº 62/2009: a) os Estados devem depositar na conta judicial do Tribunal que administra os precatórios, mensalmente, o equivalente a 1,5% da sua receita corrente líquida se situados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ou 2% se situados nas regiões Sul e Sudeste (art. 97, § 2º, I, a e b); b) os Municípios devem depositar, mensalmente, o equivalente a 1% da sua receita corrente líquida se situados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste ou 1,5% se situados nas regiões Sul e Sudeste (art. 97, § 2º, II, a e b).
Por derradeiro, o Município de São Paulo ainda não quitou todos os precatórios de 2009. Muitos precatoristas já morreram na fila dos precatórios ditos "impagáveis”. Há casos em que o credor atual é neto do precatorista original. É um verdadeiro atentado aos direitos humanos. Só não aparecem na mídia, porque eles vão morrendo aos poucos, e não em massa.
As condenações judiciais que resultarem das ações expropriatórias ajuizadas posteriormente à data do julgamento do Tema 865 serão, seguramente, caloteadas. Pagamento direto pela entidade política devedora, sem expedição de precatório, está, data vênia, completamente fora do contexto factível. Nada há a fazer contra a impossibilidade material.
Ainda que os recursos financeiros disponíveis possibilitassem o pagamento pela forma decidida pelo STF, só para argumentar, haveria afronta em bloco dos dispositivos constitucionais concernentes ao pagamento das condenações judiciais pelo poder público, inclusive, a violação do direito de preferência dos credores por verbas alimentícias.
Sem a prévia inclusão orçamentária na LOA do valor da condenação judicial não será possível cumprir nenhum dos requisitos previstos na Lei nº 4.320/64 para o pagamento de despesa pública, quais sejam, o prévio empenho da verba (art. 58); a emissão da nota de empenho (art. 61); a liquidação da despesa a ser paga (art. 63); a ordem de pagamento emanada da autoridade administrativa competente (art. 64); e finalmente o pagamento que extingue a obrigação do ente devedor (art. 62).
SP, 16-9-2024.
* Texto publicado no Migalhas, edição nº 5.938, de 17-9-2024.