5. Um modelo para a administração global da IA
Problemas globais exigem soluções globais. Mais do que um problema global, a IA é uma singularidade do Direito, que se encontra ao nível do uso pacífico da energia nuclear e da não proliferação de armas nucleares; do combate ao terrorismo e das ameaças climáticas.
A necessidade uma autoridade reguladora foi recentemente aborda em duas cartas abertas de grande importância para a temática da IA. A primeira, já mencionada, de autoria da Future of Life Institute 11, e a segunda proveniente da OpenAI 12, a desenvolvedora do ChatGPT. Ambas convergem para a necessidade de regulamentação da IA, no alerta para os riscos profundos para a humanidade trazidos pela IA e na possibilidade de grande mudança e de ganhos. As Cartas nos trazem indícios de como deveria ser o funcionamento dessa agência regulamentadora.
A Future of Life Institute defende que as políticas de governança devem contemplar a criação de autoridades novas e capazes dedicadas à IA; a supervisão e o rastreamento de sistemas de IA altamente capazes e grandes pools de capacidade computacional; a criação de sistemas de proveniência e de marca de água para ajudar a distinguir os reais dos sintéticos e para rastrear fugas de modelos; a criação de um ecossistema robusto de auditoria e certificação; a responsabilidade por danos causados pela IA; o financiamento público robusto para a investigação técnica em matéria de segurança da IA; e a criação de instituições com bons recursos para lidar com as dramáticas perturbações econômicas e políticas que a IA pode vir a causar.
A OpenAI, por sua vez, parte do pressuposto de que os governos ao redor do mundo poderiam estabelecer um projeto englobando os muitos dos esforços já existentes; limitando a taxa de crescimento da capacidade de IA; e fiscalizando as empresas individuais de IA – essa proposta se parece com o modelo de redes transnacionais. Em outra vertente, propõe a criação de uma agência nos moldes da AIEA, no entanto, voltada somente para a Superinteliência Artificial.
A OpenIA admite, todavia, que, ultrapassado determinado limite de capacidade da IA ou de recurso computacional, seria necessária uma autoridade internacional apta a inspecionar sistemas, exigir auditorias, testar a conformidade com os padrões de segurança, impor restrições aos graus de implantação e níveis de segurança.
Diante da complexidade e da demora para a criação dessa agência, a carta propõe que desde já as empresas acordem voluntariamente em começar a implementar elementos que poderiam ser estabelecidos pela futura agência, não descartando a possibilidade de que, singularmente, Estados poderiam adotar essa medida. Por fim, propõe uma forma de autorregulação, a partir capacidade das empresas de tornara Superinteligência Artificial segura.
A OpenAI propõe o uso simultâneo de vários dos tipos de regulamentação entabulados pelo GAL Project e também defende a desnecessidade de aplicação dessas formas de regulamentação ou mecanismos de licenças e auditorias para projetos abertos abaixo de um determinado nível de IA.
Vistos esses posicionamentos, cabe retomar os nichos de regulamentação estabelecidos pelo GAL Project, a fim de encontrar aquele que melhor se amolda ao enfrentamento da questão da IA.
É perceptível que nem todos os problemas globais ali catalogados pelo GAL Project representam uma singularidade para o Direito.
Talvez o mundo fosse um pouco mais caótico ou menos avançado sem uma administração por arranjos híbridos como o trazido pela ICANN; ou talvez fosse um pouco mais caótico pela ausência de padrões internacionais, como a ISO. De igual modo, a ausência de associações regulatórias informais ou de redes regulatórias transnacionais poderia tornar o combate a certas condutas indesejáveis mais difícil.
Contudo, a falta dessas instituições e de seu nicho regulatório não indica em ameaça à organização social a nível internacional e, menos ainda, local. A humanidade estaria alguns passos atrás, mas não estaria exatamente ameaçada. Logo esses nichos não são instrumentos adequados para o enfrentamento de uma singularidade do Direito.
Essas modalidades de regulamentação funcionam e ocupam nicho próprio no espaço globalizado e não se descura que estas formas de regulamentação possam ser empregadas em algum espaço específico da própria IA, notadamente no que diz respeito à Inteligência Artificial Limitada e em complementação à regulamentação a ser conferida por um ente global mais robusto destinado a regular a Inteligência Artificial Geral e a Superinteligência Artificial.
Este ente global mais robusto deve derivar da administração por organizações internacionais formais. O modelo adequado talvez seja o atualmente utilizado pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA, em português – em inglês o acrônimo é IAEA, International Atomic Energy Agency), uma agência dentro da família das Nações Unidas, possuidora de estrutura legal e órgãos de governança, como uma Conferência Geral, composta por representantes de Estados Membros e um Conselho de Governança para a formulação das políticas da agência.
Nessa senda, conveniente destacar que a edição do Diário de Notícias de 13 de junho de 202313 reportou a declaração dada à imprensa mundial pelo secretário-geral das Nações Unidas (ONU), Antônio Guterres em favor da agência internacional, com funções regulatórias, para supervisionar o desenvolvimento da IA nos moldes da AIEA. Para além, adiantou que está sendo preparada uma conferência da ONU sobre o tema, ainda este ano, a ser realizada no Reino Unido, bem como a criação de um órgão consultivo para IA.
De todo modo, é fato que inexiste essa agência internacional. Logo, é salutar que iniciativas locais e regionais têm sido adotadas para regulamentar a IA. Nesse contexto, vale citar que o Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE], apresentou, por proposta da UE, “Recomendações sobre a Inteligência Artificial”, adotadas por seus membros14 e as iniciativas da União Europeia [UE], tanto pela edição, em 19 de fevereiro de 2020, do Livro Branco sobre IA15, quanto pela proposta, em fase final de tramitação, de um Regulamento para a IA16, em 21 de abril de 2021, bem como pela edição de Resolução sobre IA17, de 3 de maio de 2022.
Essas iniciativas regulatórias regionais possuem aplicabilidade maior quanto à Inteligência Artificial Limitada, tangenciando, a Inteligência Artificial Geral e a Superinteligência Artificial. De qualquer modo, a existência de normatizações em âmbito local, blocos regionais ou no seio de organizações internacionais não contrariam a ideia da necessidade de criação de uma regulamentação global sobre o tema por parte de organização internacional formal específica para tratar de IA. Pelo contrário. Essas iniciativas pavimentam a construção da futura regulamentação global do tema e os eventuais insucessos das normas locais em impor conduta aos grandes desenvolvedores de IA reforçarão a busca pela integração a um esforço coletivo para a solução do enigma dessa Esfinge pós-moderna.
Conclusão
A IA desafia a sociedade humana do século XXI e seu futuro. Conquanto pareça longíquo um eventual domínio das máquinas, os efeitos maléficos da IA já são tão notáveis quanto seus benefícios, especialmente no que tange à afrontas a direitos humanos e fundamentais, alguns deles os mencionados no Blueprint for na AI Bill of Rights 18, lançado pelo Governo dos Estados Unidos, como a algoritmos impedindo acesso de pessoas mais velhas a benefícios de saúde e pessoas negras sendo impedidas de fazer transplante de rim porque um sistema de IA presumiu que corriam menos risco de doença renal.
A IA, inevitavelmente, caminhará com a humanidade, de forma cada vez mais próxima. Constitui-se em fato jurídico que afeta a vida no planeta bem como a forma como se dá a convivência e a cultura entre os povos.
Há um espaço global e o desejo de que uma Administração Global transparente, nos moldes da Agência Internacional de Energia Atômica, surja e ordene o caminhar deste admirável mundo, atribuindo responsabilidades, salvaguardas, direitos, deveres, sistemas de fiscalização e de verificação de um regulamento global para a Inteligência Artificial Geral e para a Superinteligência Artificial. Nessa senda, é importante o envolvimento dos diversos governos e a participação mesmo de desenvolvedores para que a construção se faça da maneira mais adequada e segura. Afinal, como ensina o poeta, “um galo sozinho não tece a manhã: ele precisará sempre de outros galos” 19.
Referências
BALDISSERA, Olívia. Tipos de Inteligência Artificial que fazem (e que não fazem) parte do nosso dia a dia. Disponível em https://posdigital.pucpr.br/blog/tipos-de-inteligencia-artificial. Acesso em 29 de junho de 2023.
BARNEY, Nick. Definition artificial superintelligence (ASI). Disponível em https://www.techtarget.com/searchenterpriseai/definition/artificial-superintelligence-ASI. Acesso em 29 de junho de 2023.
CASSESE, Sabino. Nel labirinto delle globalizzazioni. Disponível em https://images.irpa.eu/wp-content/uploads/2007/05/Cassese1.pdf. Acesso em 25 de junho de 2023
_______________. C’è un ordine nello spazio giuridico globale? Disponível em https://images.irpa.eu/wp-content/uploads/2019/04/la-macchina-globale-Lumsa-25-maggio.pdf. Acesso em 26 jun. 2023.
_______________. Lo spazio giuridico globale. Rivista trimestrale di diritto pubblico, vol 2. 2002.
CONNELL, Jane. O silêncio da esfinge: o erro de édipo e a redescoberta resposta ao enigma. Fragmentum, N. 38, Vol. 2. Laboratório Corpus: UFSM, Jul./ Set. 2013.
FUTURE OF LIFE INSTITUTE - Pause Giant AI Experiments: An Open Letter. Disponível em: https://futureoflife.org/open-letter/pause-giant-ai-experiments/. Acesso em 15 de junho.
HARARI, Yuval Noah. Yuval Noah Harari argues that AI has hacked the operating system of human civilisation. Disponível em: https://www.economist.com/by-invitation/2023/04/28/yuval-noah-harari-argues-that-ai-has-hacked-the-operating-system-of-human-civilisation. Acesso em 7 jun. 2023.
ICIZUKA, Atilio de Castro; ABDALLAH, Rhamice Ibrahim Ali Ahmad. A trajetória da descriminalização do adultério no direito brasileiro: uma análise à luz das transformações sociais e da política jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.2, n.3, 3º quadrimestre de 2007. Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/rdp/article/view/7635/4367. Acesso em 25 jul. 2022.
Internet Corporation For Assigned Names And Numbers. Bem-vindo à ICANN. Disponível em https://web.archive.org/web/20090522153338/https://www.icann.org.br/new.html. Acesso 26 jun. de 2023.
International Organization For Standardization. About us. Disponível em https://www.iso.org/about-us.html. Acesso em 27 de junho de 2023
MELO NETO, João Cabral de. Tecendo a manhã. Poesias Completas. 2ª Ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1975.
KINGSBURY, Benedict; KRISCH, Nico; STEWART, Richard. A Emergência de um Direito Administrativo Global. In Ensaios sobre o direito administrativo global e sua aplicação no Brasil. Organizadora Michelle Ratton Sanchez Badin. – São Paulo : FGV Direito SP, 2016.
KINGSBURY, Benedict. The Concept of ‘Law’ in Global Administrative Law, IILJ 2009/1.
LIMA, Ramalho. Deepfake: o que é e como funciona? Disponível em https://www.tecmundo.com.br/internet/206706-deepfake-funciona.htm. Acesso em 2 ago. 2023
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
MCCARTHY, John, et alii. A proposal for the dartmouth summer research project on artificial intelligence. 1955. Disponível em https://jmc.stanford.edu/articles/dartmouth/dartmouth.pdf. Acesso em 7 jun. de 2023.
Organização Para A Cooperação E Desenvolvimento Econômico - Recomendações sobre a Inteligência Artificial. Disponível em https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0449. Acesso em 15 abr. 2023
Organização Mundial do Comércio - India etc versus US: ‘shrimp-turtle’. Disponível em ttps://www.wto.org/english/tratop_e/envir_e/edis08_e.htm. Acesso em 10 jun 2023.
PRADO, Charles. A era da inteligência artificial. Revista Ciência Hoje. Novembro de 2019. Disponível em https://cienciahoje.org.br/artigo/a-era-da-inteligencia-artificial/. Acesso em 7 jun. de 2023
RIBEIRO, Jonas. O que é uma singularidade. Disponível em https://socientifica.com.br/o-que-e-uma-singularidade/. Acesso em 17 jun. 2023.
TEIXEIRA, Josué. Inteligência Geral Artificial (AGI) e o Cat GPT-4. Disponível em https://pt.linkedin.com/pulse/intelig%C3%Aancia-geral-artificial-e-o-chat-gpt-4-josu%C3%A9-correia. Acesso em 20 de jun. 2023.
TONIATO. J.D. De Newton a Einstein: a geometrização da gravidade. Cadernos de Astronomia, vol 1. n º 1. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória: 2020. Disponível em https://periodicos.ufes.br/astronomia/issue/view/1212/747. Acesso em 20 jul. 2022.
UNIÃO EUROPEIA - Livro Branco sobre a inteligência artificial.
D isponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:52020DC0065. Acesso em 27 abr. 2023.
_________________ - Resolução sobre a inteligência artificial na era digital. Disponível em https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2022-0140_PT.html. Acesso em 27 abr. 2023.
_________________ - Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho estabelecendo regras harmonizadas sobre inteligência artificial (Lei de Inteligência Artificial) e alterando certos legislativos da União. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX:52021PC0206. Acesso em 25 abr. 2023.
ESTADOS UNIDOS – The White House. Blueprint for an AI Bill of Rights: A Vision for Protecting Our Civil Rights in the Algorithmic Age. Disponível em https://www.whitehouse.gov/ostp/news-updates/2022/10/04/blueprint-for-an-ai-bill-of-rightsa-vision-for-protecting-our-civil-rights-in-the-algorithmic-age/ Acesso em 20 jun. 2023.
VERDIER, Pierre-Hugues. Transnational regulatory networks and their limits, The Yale Journal of International Law, v. 34, nº 1, 2009, pp. 113-172.