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A regulamentação da fidelidade partidária à luz do ativismo judiciário

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Os tribunais pátrios, em especial as Cortes Superiores, passaram a adotar uma postura ativa, interpretando e aplicando o direito de forma a fornecer uma resposta prática à sociedade nas questões mais relevantes.

Sumário: 1. Introdução; 2. Ativismo Judiciário: considerações; 3. A Regulamentação da Fidelidade Partidária através da Resolução TSE 22.610/07: contextualização; 4. A Regulamentação da Fidelidade Partidária à luz do ativismo judiciário; 5. Conclusão; Referências


1. Introdução

Não se pode negar que na recente história democrática do Brasil o Poder Judiciário se firmou como uma das instituições mais sólidas da República, sendo provocado para impedir os abusos do Poder Executivo e corrigir as mazelas que assolam o Poder Legislativo.

Neste contexto, os tribunais pátrios, em especial as Cortes Superiores, passaram a adotar uma postura ativa, interpretando e aplicando o direito de forma a dar concretude aos princípios que regem o ordenamento e fornecer uma resposta prática à sociedade nas questões mais relevantes.

No âmbito do Direito Eleitoral o ativismo judiciário se torna ainda mais evidente, tanto pela constante demanda social pela moralização da política brasileira, quanto pela possibilidade, concedida pelo Legislador, ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE, para responder consultas e editar resoluções para disciplinar o processo eleitoral.

Em um período conturbado de escândalos políticos, em 2007 foi revigorada a discussão acerca da fidelidade partidária e levantada a dúvida sobre a titularidade do mandato eletivo, matérias estas analisadas pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Supremo Tribunal Federal - STF.

Como resultado, foi editada a Resolução TSE nº 22.610/07, regulamentando as hipóteses de perda de mandato eletivo por infidelidade partidária.

Sendo assim, abordaremos nesta oportunidade esta norma emanada dos nossos Tribunais Superiores à luz do ativismo judiciário, a fim de estabelecer sua conformidade ou não com os limites de atuação do Poder Judiciário.


2. Ativismo Judiciário: considerações

O ativismo judiciário, entendido como o fenômeno de intensificação da ação do Poder Judiciário voltada para a concretização de direitos e demandas sociais através da interpretação principiológica, se mostra uma evolução natural das democracias modernas.

Segundo Cappelletti (1993) a intensificação da criatividade jurisprudencial tem causas diversas, sendo relevante mencionar a expansão dos Poderes Políticos sedimentados no Welfare State e a conquista dos direitos sociais no mesmo período. Isto porque o Welfare State implicou na intensificação da atividade legislativa e a posterior burocratização do Poder Executivo, levando à necessidade da busca do Poder Judiciário para equilibrar os demais poderes. No dizer de Cappelletti (1993, p.52):

De um lado, existe o gigantismo do Poder Legislativo, chamado a intervir ou a ‘interferir’ em esferas sempre maiores de assuntos e de atividade; de outro lado, há o conseqüente gigantismo do ramo administrativo, profunda e potencialmente repressivo.

As sociedades mais sãs esforçaram-se e se esforçam por encontrar a cura desses desenvolvimentos, potencialmente patológicos. (...) Basta notar que, também para o judiciário, tais desenvolvimentos comportam conseqüências importantes, sobretudo o aumento da sua função e responsabilidades. Pelo fato de que o ‘terceiro poder’ não pode simplesmente ignorar as profundas transformações do mundo real, impôs-se novo e grande desafio aos juízes. A justiça constitucional, especialmente na forma do controle judiciário da legitimidade constitucional das leis, constitui um aspecto dessa nova responsabilidade.

Por outro lado, a legislação garantidora dos direitos sociais muitas vezes define somente a finalidade e princípios que os regulam, deixando margem para maior atividade interpretativa e criativa do Poder Judiciário.

A estas causas do ativismo judiciário pode ainda ser acrescida a descrença dos cidadãos nos poderes Legislativo e Executivo, que pleiteiam do Judiciário o controle dos atos emanados daquelas esferas de poder.

Diante desse quadro, a atuação do Poder Judiciário para a proteção dos direitos fundamentais e solução de demandas sociais relevantes se mostra uma forma de compatibilização da democracia representativa com o Estado de Direito, fazendo prevalecer a Constituição em sua essência. Lenio Luiz Streck (2007) pontua, sobre o assunto:

Por tais razões, entendo que o órgão encarregado de realizar a jurisdição constitucional deve ter uma nova inserção no âmbito das relações dos poderes de Estado, levando-o a transcender as funções de cheks and balances, mediante uma atuação que leve em conta a perspectiva de que os direitos fundamentais-sociais, estabelecidos em regras e princípios exsurgentes do processo democrático que foi a Assembléia Constituinte de 1986-88, têm precedência mesmo contra textos legislativos produzidos por maiorias parlamentares (que, a toda evidência, também devem obediência à Constituição). (STRECK, 2007, p.31)

Não obstante, há autores que criticam a postura criativa do Poder Judiciário, seja por vê-la como uma usurpação de poderes do Legislativo, seja por entenderem que as decisões judiciais não possuem legitimação democrática para torná-las aptas a "substituírem as leis".

No entanto, a maioria dos doutrinadores reconhece a impossibilidade de ausência criativa no exercício jurisdicional, pois a mesma decorre de qualquer esforço hermenêutico indispensável pra a análise da subsunção ou não do caso posto em análise às normas estabelecidas no ordenamento jurídico.

Destarte, se mostra imperativo reconhecer que o Poder Judiciário pode e deve participar, dentro das suas funções constitucionalmente asseguradas, no processo político e institucional de um Estado Democrático, pois desta maneira pode propiciar à sociedade a efetivação do ideal de Justiça, nas suas dimensões individual, coletiva e social.

Sendo assim, a discussão acerca do ativismo judiciário não residiria propriamente na possibilidade da realização de uma atividade de criação do direito pelos magistrados e sim nos limites formais e materiais deste exercício, como bem aponta Lenio Luiz Streck (2007, p.141):

Não se pode confundir, entretanto, a adequada/necessária intervenção da jurisdição constitucional com a possibilidade de decisionismos por parte de juízes e tribunais. Seria antidemocrático. Com efeito, defender um certo grau de dirigismo constitucional e um nível determinado de exigência de intervenção da justiça constitucional não pode significar que os tribunais assenhorem da Constituição.

E Gisele Cittadino (2004, p.108):

Não se pode negar que as Constituições das democracias contemporâneas exigem uma interpretação construtiva das normas e dos princípios que as integram, e, neste sentido, as decisões dos tribunais – especialmente em face de conflitos entre direitos fundamentais – Têm necessariamente o caráter de "decisões de princípio". No entanto, a despeito do fato da dimensão inevitavelmente "criativa" da interpretação constitucional – dimensão presente em qualquer processo hermenêutico, o que, por isso mesmo, não coloca em risco, a lógica da separação dos poderes -, os tribunais constitucionais, ainda que recorram a argumentos que ultrapassem o direito escrito, devem proferir "decisões corretas" e não se envolver na tarefa de "criação do direito", a partir de valores preferencialmente aceitos.

Rogério Medeiros Garcia Lima (2002) também ressalta a importância da obediência aos limites da atividade interpretativa e criativa dos juízes:

O juiz não pode ser arvorar em legislador. Já escrevia Carlos Maximiliano (1988:71) que a "ditadura judiciária não é menos nociva que a do Executivo, nem do que a onipotência parlamentar."

Quando se fala, destarte, no papel político da magistratura, fala-se na defesa da vigência do ordenamento jurídico, pela justa aplicação dos princípios e normas que o integram. É sobretudo no ordenamento constitucional, e sempre fundamentadamente, que os juízes vão buscar os elementos para construir uma decisão justa (...) (LIMA, 2002, p.107)

Para Cappelleti (1993) a limitação da atuação do Poder Judiciário decorre não do grau de sua atuação criativa, mas da sua passividade no plano processual, circunstância esta que deixaria a atividade dos magistrados facilmente controlável em seus excessos. In verbis:

O que realmente faz o juiz ser juiz e um tribunal um tribunal não é a sua falta de criatividade (e assim a sua passividade no plano substancial), mas sim (a sua passividade no plano processual, vale dizer) a) a conexão da sua atividade decisória com os "cases and controversies" e, por isso, com as partes de tais casos concretos, e b) a atitude de imparcialidade do juiz, que não deve ser chamado para decidir in re sua, deve assegurar o direito das partes a serem ouvidas (fair hearing), (...) e deve ter, de sua vez, grau suficiente de independência em relação às pressões externas e especialmente àquelas provenientes dos "poderes políticos". (CAPPELLETI, 1993, p.74)

Dessa forma, exsurge do posicionamento doutrinário pátrio e estrangeiro a nítida lição de que o ativismo judiciário não significa de maneira alguma uma lesão à separação de poderes constitucionalmente assegurada, já que a atuação do Poder Judiciário seria sempre no sentido de conjugar a sua qualidade de destinatário dos comandos constitucionais e, ao mesmo tempo, de aplicador das mesmas, conformando assim as demais normas do ordenamento e as condutas concretas submetidas à análise.

A real dimensão e função do ativismo judicial é sintetizada com propriedade por Menelick de Carvalho Neto (2004, p.38):

Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.

Portanto, conclui-se que o ativismo judiciário é uma forma coerente e possível de dar efetividade aos direitos fundamentais, mas possui limites formais e materiais que o separam do arbítrio e somente pode ter lugar quando seu exercício puder se fundamentar em considerações jurídicas, sejam elas principiológicas ou positivadas.

Caso contrário, ele padecerá de uma das "efermidades da criação judiciária do direito" mencionada por Cappelletti (1993) como sendo a incompetência institucional do Poder Judiciário para agir como fonte criadora do direito, que leva à ilegitimidade e inconstitucionalidade da decisão.

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3. A Regulamentação da Fidelidade Partidária através da Resolução TSE 22.610/07: contextualização

A recente discussão acerca da existência ou não do instituto da fidelidade partidária no ordenamento jurídico brasileiro, a qual culminou na edição da Resolução TSE 22.610/07, teve início com uma consulta formulada pelo então Partido da Frente Liberal, atual Democratas, junto ao Tribunal Superior Eleitoral.

Naquela oportunidade, indagou-se se os partidos políticos e coligações teriam direito de preservar as vagas obtidas através do sistema eleitoral proporcional quando o candidato eleito tenha se desligado da agremiação ou se juntado a outra legenda (BRASÍLIA, 2007a).

Como relator da consulta no TSE, o Min. César Asfor Rocha (BRASÍLIA, 2007a) pontuou já não ser a primeira vez que a matéria seria trazida ao Poder Judiciário e salientou a importância de se definir a titularidade do mandato eletivo como meio de fortalecer a democracia brasileira.

Sendo assim, por maioria, a Corte respondeu afirmativamente à consulta, assentando seu entendimento sobre as seguintes fundamentações básicas: a) a filiação partidária é condição de elegibilidade constitucionalmente prevista; b) a filiação do candidato ao partido político é o único elemento da sua identidade política; c) o sistema proporcional está visceralmente ligado ao partido político, pois é com base nos votos obtidos pela agremiação que se calcula o número de cadeiras ocupadas na casa legislativa, ou seja, o candidato se elege com o "patrimônio partidário de votos"; d) a obtenção e exercício do mandato como patrimônio particular do eleito vai de encontro ao princípio da moralidade; e) a detenção do mandato pelo partido não é uma sanção ao candidato migrante e sim a manutenção da representação partidária daquela agremiação; f) o entendimento até então vigente, de que o mandato pertencia ao candidato, se firmou no âmbito do STF no tempo em que não se reconhecia a força normativa dos princípios e que hoje resta superado; g) a interpretação de que a vaga é do partido não é inovação interpretativa, pois se extrai das normas constitucionais (art. 14, §3º, V e art.17, §1º) e legais (art. 2º, art.108, art.175, §4º, art.176 do CE, art.26 da Lei 9.096/95, art.11, II da Lei 9.504/97); e, finalmente, admitiu que existem casos em que se justifica a manutenção do mandato pelo parlamentar.

De toda sorte, para além dos argumentos jurídicos extraídos dos votos proferidos, restou patente na decisão do TSE a motivação política da mesma, i.e., a verdadeira intenção de "higienização" do nosso atual sistema eleitoral proporcional e do sistema partidário. Neste sentido, é o voto do Min. Cezar Peluso (BRASÍLIA, 2007a):

O reconhecimento, a garantia e a vivência de que o mandato pertence ao partido, não à pessoa do mandatário, têm, entre outros, o mérito de, impedindo a promiscuidade partidária, fortalecer a identificação e a vinculação ideológica entre candidatos, partidos e eleitorado, como substrato conceitual e realização histórica da democracia representativa.

Após a consulta respondida pelo Tribunal Superior Eleitoral, o Supremo Tribunal Federal foi provocado através dos Mandados de Segurança nº 26.602, 26.603 e 26.604, nos quais partidos políticos reivindicavam as vagas perdidas com a desfiliação de parlamentares durante o mandato.

Apesar do indeferimento do writ nos Mandados de Segurança nº 26.602 e 26.603 e do deferimento parcial do nº 26.604, o STF (BRASÍLIA, 2007b), por maioria, entendeu que o direito dos partidos e das coligações à vaga no Poder Legislativo é extraído da própria Constituição Federal, corroborando in totum o entendimento do TSE acerca da titularidade do mandato eletivo e da possibilidade de reivindicação dos cargos após edição de norma regulamentadora.

Os votos vencidos em relação à possibilidade de perda de mandato, proferidos pelos Min. Joaquim Barbosa e Eros Grau (BRASÍLIA, 2007b), sustentaram, em síntese: a) a inexistência de previsão Constitucional de perda de mandato eletivo em caso de cancelamento de filiação ou troca de legenda; b) a retirada expressa pela Constituição de 1988 da norma prevista na Constituição pretérita que consagrava da fidelidade partidária significa que o rol taxativo do art. 55 não comporta a inserção de tal hipótese; c) a criação de nova hipótese de perda de mandato transformaria o Poder Judiciário em Poder Constituinte derivado e afrontaria os valores fundamentais do Estado de Direito; d) o titular do poder é o povo e, portanto, a fonte de legitimidade do exercício do mandato não poderia residir somente nos partidos políticos.

Por conseqüência do posicionamento majoritário, o STF (BRASÍLIA, 2007b) fixou o marco temporal para a perda dos mandatos parlamentares a data de 27/03/2007, quando foi respondida a consulta pelo TSE, e delegou a competência para o tribunal máximo em matéria eleitoral regulamentar o procedimento de perda de mandato.

Portanto, é inegável o ativismo judiciário do TSE e do STF ao positivar os contornos concretos do instituto da fidelidade partidária, já que disciplinou uma matéria de grande apelo entre a população brasileira, diante da inércia do Poder Legislativo.

Todavia, a questão posta em debate não tem como escopo adentrar nos fundamentos de direito constitucional e eleitoral que validariam ou não a interpretação do TSE e do STF, ou seja, se os Tribunais Superiores criaram nova hipótese de perda de mandato eletivo não prevista no ordenamento nacional ou se apenas lançaram mão de princípios e dispositivos já consagrados, em uma interpretação conforme à Constituição.

Na verdade, o que será objeto de análise neste momento é se, uma vez definida a titularidade do mandato eletivo por meio da "filtragem constitucional" [01], poderia o STF conceder e o TSE, por sua vez, exercer a competência para regulamentar a perda do mandato eletivo da forma como foi feita ou se, ao contrário, o ativismo judiciário concretizado na Resolução TSE nº 22.610/07 extrapolou os limites juridicamente aceitáveis.


4. A Regulamentação da Fidelidade Partidária à Luz do Ativismo Judiciário

A Resolução TSE nº 22.610/07 disciplinou os processos de perda de mandato eletivo e de justificação de desfiliação partidária.

Entretanto, a primeira crítica apresentada ao referido diploma reside na própria competência do Tribunal Superior Eleitoral para a edição da mesma, pois sua postura ativista teria violado o princípio constitucional da separação de poderes, basilar do Estado Brasileiro e esculpido no art.2º da Carta Magna:

Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. (BRASIL, 1988)

É cediço que a Teoria da Tripartição de Poderes em verdade se refere à uma classificação da função preponderante dos órgãos de governo – já que o poder do Estado é indivisível-, o que significa que apesar da função primordial de interpretação do direito para resolução de conflitos, ao Poder Judiciário é dado exercer função legislativa ou administrativa, quando o é autorizado por lei.

Nesta senda o Código Eleitoral fixou expressamente o Poder Normativo do Tribunal Superior Eleitoral no seu art.23, in verbis:

Art. 23 - Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior:

(...)

IX - expedir as instruções que julgar convenientes à execução deste Código.

(...)

XII - responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição, federal ou órgão nacional de partido político.

(...)

XVIII - tomar quaisquer outras providências que julgar convenientes à execução da legislação eleitoral. (BRASIL, 1965)

Verifica-se, pois, a possibilidade de o TSE responder em tese, i.e., sem força vinculante, questões afetas ao direito eleitoral e expedir instruções para execução do Código Eleitoral, tratando de matérias administrativas e processuais.

Por conseqüência, tal poder normativo encontra limites óbvios de circunscrição à matéria eleitoral e não transbordamento ou contrariedade aos preceitos legais hierarquicamente superiores.

Nos questionamentos judiciais acerca da constitucionalidade da resolução TSE nº 22.610/07, foi inteiramente rechaçada pelo TSE (BRASÍLIA, 2007c) a suscitada lesão ao princípio da separação de poderes, sob a argumentação de que o tribunal apenas executou seu poder normativo legalmente garantido.

Todavia, não há como se sustentar em bases jurídicas a disciplina de dois processos de perda de mandato eletivo até então inexistentes no ordenamento pelo TSE, pois isto implicou na disposição sobre direito eleitoral e processual, invadindo a competência privativa da União para legislar sobre referidas matérias, em flagrante contrariedade ao art. 22, I da CF/88.

De fato, a leitura da Resolução TSE nº 22.610/07 não deixa dúvidas de que esta traz normas gerais, abstratas, inovadoras e imperativas em matéria de direito eleitoral (fixa hipóteses de justa causa para manutenção do mandato) e processual (cria hipótese de revelia, estipula os legitimados ativos, prazos de manifestação das partes e julgamento, estabelece irrecorribilidade das decisões, etc.) sem, contudo, serem validamente editadas pelo poder competente.

Segundo a crítica de Cerqueira e Cerqueira (2008, p.284):

O TSE não pode ser legislador positivo, pois fere a CF/88, só podendo assim "legislar" se se tratar de matéria infraconstitucional reservada a lei ordinária – art.105 da Lei nº 9.504/97 e Boletim Eleitoral nº 15 de 1990 do TSE, jamais podendo legislar sobre LC (processo civil ou processo eleitoral) ou matéria constitucional, em face do art.22,I da CF/88.

(...)

As resoluções do TSE, quando atuam como legislador positivo, CRIAM um direito, mas com esta "CRIAÇÃO" o TSE só pode legislar se for relacionada à matéria infraconstitucional de lei ordinária, e não matéria constitucional e/ou de Lei Complementar.

Assim sendo, pode-se afirmar que o TSE não possui competência para instituir novos ritos processuais e estabelecer hipóteses de justa causa, como foi feito. Por conseqüência, como tal competência privativa pertence à União, não poderia o STF delegar ao TSE prerrogativa que não detém, pelo que resta nítida a usurpação de poderes ocorrida.

Se não bastasse o questionamento acerca da invasão de competência gerada pelo ativismo judiciário do STF e do TSE, vários dispositivos da Resolução TSE nº 22.610/07 são reputados inconstitucionais em virtude do conteúdo igualmente lesivo à ordem jurídica.

Em seu art.1º, a Resolução TSE nº 22.610/07 (BRASILIA, 2007a) estabelece que o partido político interessado deve provocar a justiça eleitoral para requerer a perda do mandato eletivo do parlamentar trânsfuga. Mais adiante, fixa a competência do TSE para julgar mandatos federais e dos Tribunais Regionais Eleitorais - TREs para os mandatos estaduais e municipais. Vale notar que tal positivação se deu em obediência à manifestação anterior do STF.

Entretanto, tal previsão significa uma evidente lesão ao artigo 121 da Constituição Federal, o qual reserva à lei complementar a organização e competência dos tribunais e juízes eleitorais.

Ademais, a discussão acerca da titularidade e perda do mandato eletivo por infidelidade partidária se localiza temporalmente no período pós-eleitoral e, por conseqüência, escapa da competência para análise pela Justiça Especializada Eleitoral, que tem na diplomação o seu termo ad quem.

Tal matéria, inclusive, já estava até então sedimentada no TSE:.

Ementa: CONSULTA. INFIDELIDADE PARTIDARIA. PERDA DE MANDATO ELETIVO. INCOMPETENCIA DA JUSTICA ELEITORAL. (PRECEDENTE CONSULTA N. 12.232, REL. O MIN. PAULO BROSSARD).

Consulta não conhecida. (BRASILIA, TSE, CTA 304/DF, Resolução 19762, Relator(a) JOSÉ FRANCISCO REZEK, 1997)

Ementa: CONSULTA. PROCESSO ELEITORAL NÃO CONCLUÍDO. CASO CONCRETO. MATÉRIA NÃO-ELEITORAL. SITUAÇÃO OCORRIDA APÓS A DIPLOMAÇÃO. NÃO-CONHECIMENTO.

1. omissis

2. A competência da Justiça Eleitoral cessa com a diplomação dos eleitos (Precedentes: Consultas nos 1.236, Rel. Min. Gerardo Grossi, DJ de 1º.6.2006; 761, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 12.4.2002; 706, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 1º.2.2002). (BRASÍLIA, TSE, CTA 1392/DF, Resolução 22488 BRASÍLIA,, Relator(a) JOSÉ AUGUSTO DELGADO, 2006a)

Ementa Consulta. Matéria não eleitoral. Situações hipotéticas ocorridas após a diplomação. Não-conhecimento.

A competência da Justiça Eleitoral cessa com a diplomação dos eleitos. (BRASÍLIA, TSE, CTA 1236/DF, Resolução 22196, Relator(a) JOSÉ GERARDO GROSSI, 2006b)

Diante disso, pode-se concluir que aqui reside mais uma falha da Resolução TSE nº 22.610/07, pois trata de distribuição de competência judiciária, sendo que somente o Poder Legislativo titulariza tal prerrogativa, distorcendo a postura de ativismo judicial aceitável em um Estado Democrático.

Cerqueira e Cerqueira (2008) criticam a postura do TSE:

O TSE, nas CTAS 1398 e 1407, e ainda na Resolução 22.610/07, portanto, atuou como "legislador positivo" constitucional, adiantando a Reforma Política, criando uma hipertrofia e invadindo espaço do Poder Legislativo, violando a harmonia do sistema do check and balance previsto no art. 2º da CF/88. (CERQUEIRA E CERQUEIRA, 2008, p.139)

Da invasão de competências exteriorizada pela Resolução TSE nº 22.610/07 decorre ainda a lesão ao princípio do contraditório e do devido processo legal, posto que a norma em debate estabeleceu a irrecorribilidade das decisões interlocutórias do Relator e, quanto aos acórdãos, o cabimento tão somente de pedido de reconsideração.

Ainda que se admita, em homenagem ao princípio da economia processual e da celeridade, a irrecorribilidade das decisões interlocutórias, como soi de ocorrer na Justiça do Trabalho, é inquestionável que uma decisão judicial que impede o duplo grau de jurisdição transmuta celeridade em abuso e prejuízo e não alcança o fim maior que é resolução de conflitos com a realização da justiça.

Segundo o posicionamento do TSE expresso pelo voto condutor do Min. Arnaldo Versiani no Agravo Regimental no MS 3668/PR, inexiste qualquer lesão:

No que diz respeito à questão relativa à irrecorribilidade das decisões, tenho que não há falar em violação ao art. 5°, li e LV, da Constituição Federal, valendo lembrar que a Res.-TSE no 22.610 foi justamente editada a fim de dar cumprimento ao que decidiu o Supremo Tribunal Federal nos Mandados de Segurança n0S 26.602, 26.603 e 26.604, em 3.10.2007.

Demais disso, asseverei na decisão agravada (fi. 59):

Por fim, a impetrante também não se conforma com a irrecorribilidade das decisões pro feridas nos processos de perda de cargo eletivo, acrescentando que ‘(...) o impedimento de recorrer à instância superior é fato altamente prejudicial’ (fi. 12).

Na realidade, o artigo 11 da Res.-TSE n° 22610 previu que apenas as decisões interlocutórias do relator são irrecorríveis, podendo, no entanto, serem revistas no julgamento final.

No que concerne à decisão do respectivo processo, acerca da controvérsia da perda do cargo, cabe pedido de reconsideração, sem efeito suspensivo.

Todavia, entendemos que o fundamento do acórdão não tem como subsistir, uma vez que vai de encontro à previsão dos parágrafos 3º e 4º do art. 121 da Constituição Federal:

§ 3º - São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de "habeas-corpus" ou mandado de segurança.

§ 4º - Das decisões dos Tribunais Regionais Eleitorais somente caberá recurso quando:

I - forem proferidas contra disposição expressa desta Constituição ou de lei;

II - ocorrer divergência na interpretação de lei entre dois ou mais tribunais eleitorais;

III - versarem sobre inelegibilidade ou expedição de diplomas nas eleições federais ou estaduais;

IV - anularem diplomas ou decretarem a perda de mandatos eletivos federais ou estaduais;

V - denegarem "habeas-corpus", mandado de segurança, "habeas-data" ou mandado de injunção. (BRASIL, 1988)

Nos casos de perda de mandato por infidelidade partidária a inteligência dos dispositivos constitucionais assegura textualmente o manejo de recurso extraordinário ao STF, em casos de violação à Carta Magna e a interposição de recurso especial eleitoral ao TSE das decisões dos tribunais regionais que decretem a perda de mandatos eletivos federais ou estaduais e caso haja divergência jurisprudencial.

Destarte, o artigo 11 da Resolução TSE nº 22.610/07 padece de inconstitucionalidade evidente e não pode ser aplicado, pois uma norma com força de lei ordinária não pode jamais se sobrepor à Constituição.

Nesta esteira, considerando que a Resolução TSE nº 22.610/07 é lei ordinária em sentido material, esta deve se submeter à limitação temporal trazida pelo princípio da irretroatividade das leis.

Entretanto, o seu art.13 previu efeitos ex tunc da resolução, editada em 30 de outubro de 2007, para alcançar as mudanças partidárias realizadas após 27 de março de 2007 no caso de mandatos proporcionais e após 16 de outubro para os mandatos majoritários.

Tal regra não só traz uma inovação jurídica que atinge situações pretéritas de forma prejudicial, lesando, portanto, o princípio da irretroatividade das leis, como também viola o princípio da segurança jurídica, já que o posicionamento anterior do STF era expresso em garantir a inaplicabilidade do instituto da fidelidade partidária aos eleitos.

A peculiaridade da retroatividade dos efeitos da Resolução TSE nº 22.610/07 foi decidida com votos divergentes, que salientavam exatamente a necessidade de se prestigiar a segurança jurídica e o amparo daquela casa, até então, às trocas de agremiação no curso do mandato, o que corrobora a duvidosa constitucionalidade da mesma.

Por fim, vale apontar que além das inconstitucionalidades já abordadas, os artigos que instituem a inversão do ônus da prova, a obrigatoriedade das partes conduzirem as testemunhas à audiência, a competência do Ministério Público como legitimado ativo também são alvos de diversos questionamentos, demonstrando a fragilidade desta norma.

Diante disso, parece-nos acertada a justificativa apresentada no Projeto de Decreto Legislativo nº 397, de 2007, de autoria do Deputado Régis de Oliveira, quando consigna (BRASIL, 2007):

O quadro acima descrito demonstra, de maneira bastante evidente, que o Poder Judiciário invadiu a esfera de competência do Legislativo.

O Poder Legislativo é o único competente para criar direitos e obrigações nas relações intersubjetivas. Nenhuma outra autoridade, por mais respeitada que seja, tem competência para legislar em seu lugar, sob pena de usurpação de atribuições. Quem quiser legislar que se candidate e disponha sobre princípios e normas jurídicas.

A competência do Tribunal Superior Eleitoral para expedir instruções e responder consultas sobre matéria eleitoral não pode ser compreendida como prerrogativa para complementar a Constituição Federal, muito menos como competência para inovar no campo legislativo.

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre esta questão: "O princípio da reserva de lei atua como expressiva limitação constitucional ao poder do Estado, cuja competência regulamentar, por tal razão, não se reveste de suficiente idoneidade jurídica que lhe permita restringir direitos ou criar obrigações. Nenhum ato regulamentar pode criar obrigações ou restringir direitos, sob pena de incidir em domínio constitucionalmente reservado ao âmbito de atuação material da lei em sentido formal". (Celso de Mello, AC-AgR-QO 1.033/DF, dia 25 de maio de 2006)


5. Conclusão

O ativismo judiciário dentro dos seus limites é a melhor forma de criar um sistema equilibrado de controle dos Poderes Estatais, sobretudo em um contexto social como o brasileiro, em que a coletividade clama por uma atuação ‘higienizadora’ do Poder Judiciário sobre os demais.

Todavia, é preciso um olhar crítico para analisar as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores à luz do ativismo judiciário, pois ainda que o intuito seja o de efetivação de direitos fundamentais e resposta aos clamores da sociedade, a linha tênue que a separa da invasão de competência e da usurpação de poderes deve ser observada, pois num Estado Democrático de Direito os fins nunca serão suficientes para justificar os meios.

Sendo assim, pode-se afirmar que a Resolução TSE nº 22.610/07 extrapolou os limites do ativismo judiciário doutrinariamente reconhecido e estimulado, uma vez que o STF e o TSE não se limitaram ao seu dever funcional de agir e, para solucionar a questão da fidelidade partidária no Brasil, que há tempos espera pela reforma política, fizeram as vezes do Poder Legislativo, editando uma norma inconstitucional.


Referências

BRASIL, Lei 4737, de 15 de julho de 1965. Institui o Código eleitoral. Diário Oficial da União, 19/07/1965.

BRASIL, Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 1988.

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Nota

01 Expressão advinda do direito constitucional e que tem como ponto primordial a criação, aplicação e interpretação dos institutos e normas infraconstitucionais por meio de uma "filtragem constitucional", ou seja, sempre à luz da norma nuclear do sistema jurídico.

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Sobre a autora
Leticia Pimenta Madeira Santos

Advogada, sócia do escritório Marina Pimenta e Advogados Associados. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católlica de Minas Gerais (PUC/MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Leticia Pimenta Madeira. A regulamentação da fidelidade partidária à luz do ativismo judiciário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1748, 14 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11156. Acesso em: 19 abr. 2024.

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