1. A BUSCA DA VERDADE E SUA RELAÇÃO COM O DIREITO
Antes de se adentrar à análise dos princípios que orientam a busca da verdade no processo, é imperioso enfatizar que a verdade é una e indivisível, não comportando graduações. Um brocardo romano esclarece que veritas est indivisa et quod non est plene verum non este semiplene verum sed plene falsum, ou seja, a verdade é indivisa e o que não é plenamente verdadeiro não é semi-plenamente verdadeiro, mas plenamente falso.
No âmbito processual, sua busca se dá por meio de um processo de reconstrução histórica dos fatos, sendo que o objetivo do presente tópico é justamente analisar as diferentes formas de tratamento jurídico previstas nas legislações cíveis e criminais que conferem à verdade atestado de maior ou menor relevância na solução de um caso concreto.
Diomar ACKEL FILHO ensina que a verdade buscada pelo processo aponta em duas direções:
No processo civil, com a admissão das presunções que determinam a chamada verdade ficta. No processo penal, com a rejeição das ficções e das verdades retratadas de modo artificial, por obra das indigitadas presunções. No processo civil prepondera, portanto, a verdade forma e no processo penal, a verdade real. [10]
Não se pretende dividir o indivisível, ou conferir à verdade conceitos diversos, mas simplesmente analisar suas diferentes formas de manifestação nos processos de diversas naturezas.
2.1 Princípio da Verdade Formal
Entende-se a verdade formal como sendo aquela extraída da análise das provas e manifestações trazidas aos autos pelas partes, sendo que o juiz pouco ou nada interfere nessa produção. De acordo com o princípio em comento o magistrado pode ser mais condescendente na apuração dos fatos, sem a exigência de diligenciar ex officio para a apuração da verdade.
Diz-se que a verdade formal é predominante no processo civil, instrumento hábil para a resolução de conflitos referentes a direitos disponíveis, ao menos em sua maioria. Nesse sentido, o aludido princípio seria acolhido como forma de por fim ao litígio, abreviando, assim, o reestabelecimento da paz social.
Justificando a finalidade do princípio da verdade formal, o doutrinador Marco Antonio de BARROS ensina que, diante da impossibilidade de alcance da verdade plena em todo processo, em determinados casos, por uma opção política, o Estado-juiz se contenta com a verdade produzida pelas partes, abreviando-se a solução dos conflitos de interesses, sem que tenha que fazer uso de toda sua energia no sentido de apurar ex officio a veracidade dos fatos. [11]
Com a adoção desse princípio, o fato objeto da demanda pode ser analisado sob a ótica real e a processual. Aquela representa a realidade plena, sem artifícios, sem retoques. Essa, a verdade extraída das provas produzidas no processo, que, por sua vez, pode ser diversa da efetiva realidade. A verdade formal, assim, pode também ser chamada de verdade judicial.
Ainda que a verdade judicial não corresponda à completa realidade dos fatos, não é meio hábil a corromper a decisão proferida no processo. Isso porque ela foi produzida em consonância com o conjunto probatório que emerge dos autos, ou seja, a atuação jurisdicional está devidamente amparada e fundamentada por tudo que consta do processo, não representando, assim, uma imposição estatal.
O Código de Processo Civil consagra a adoção do princípio da verdade formal em diversos dispositivos. Ressalte-se a determinação contida no art. 319 daquele diploma legal que estabelece que, em regra, se o réu não contestar a ação, serão presumidos verdadeiros os fatos alegados pelo autor.
No mesmo sentido, a regra da confissão ficta decorrente da recusa da parte a comparecer em juízo para prestar depoimento pessoal, quando intimada para tanto, ou, mesmo comparecendo, se recusa a depor, instituída pelo art. 343, §2º, do CPC. E ainda, a ausência na audiência no processo das ações de alimentos, prevista no art. 7º da Lei n. 5.478/1968, que também produz o efeito retro mencionado.
2.2 Princípio da Verdade Real
Um dos mais relevantes princípios do Processo Penal, o princípio da verdade real, também conhecido como princípio da verdade material ou da verdade substancial, determina que o fato investigado no processo deve corresponder ao que está fora dele, em toda sua plenitude, sem quaisquer artifícios, sem presunções, sem ficções.
Para a esfera processual penal, na qual, em regra, predomina a indisponibilidade de interesses, não é suficiente o que tem a simples aparência de verdadeiro, razão pela qual deve-se procurar introduzir no processo o retrato que mais se aproxime da realidade.
Nos dizeres de Rogério Lauria TUCCI, a verdade real pode ser definida como "a reconstrução atingível de fato relevante e metaprocessual, inquisitivamente perquirida para deslinde da causa penal". [12]
Segundo o aludido princípio, o julgamento proferido no processo penal dever refletir, tanto quanto possível, a realidade dos fatos analisados e, para tanto, a pesquisa do que efetivamente aconteceu deve ser plena e ampla, a fim de que a realidade possa se transmitir com absoluta fidelidade aos autos. Para Julio Fabbrini MIRABETI, o princípio da verdade real exclui "os limites artificiais da verdade formal, eventualmente criados por atos ou omissões das partes, presunções ficções, transações etc., tão comuns no processo civil". [13]
A reprodução da verdade no processo penal deve ser feita através da busca das melhores provas em matéria criminal, sendo que o Juiz não pode se contentar apenas com aquelas fornecidas pelas partes, salvo se forem efetivamente as melhores. Para exemplificar, pode-se dizer que o depoimento de uma testemunha que presenciou o evento criminoso deve ser mais valorado que o daquela que tão somente tomou conhecimento do delito.
A supremacia da verdade real no processo penal é determinada pelo interesse público, presente tanto nas ações penais públicas quanto nas privadas. Isso porque, para o exercício do jus puniendi, reservado ao Estado, mister se faz que a verdade dos fatos seja efetivamente alcançada, sob pena de que muitas injustiças sejam praticadas.
Pode-se dizer que as regras processuais que permitem ao magistrado uma participação efetiva na instrução processual penal são exemplos da adoção do princípio da verdade real pelo ordenamento processual penal brasileiro.
Nesse sentido, vale citar a regra contida no art. 156 do CPP, que possibilita ao juiz a determinação de diligências complementares, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, quando necessárias para sanar dúvidas sobre pontos relevantes. De igual forma a regra contida no art. 502 daquele mesmo diploma legal, que permite ao juiz, mesmo após o término da fase instrutória, ordenar diligências para sanar nulidades ou suprir falta que prejudique o esclarecimento da verdade.
Sobre o tema em comento, TOURINHO FILHO ensina:
Na verdade, enquanto o Juiz não penal deve satisfazer-se com a verdade formal ou convencional que surja das manifestações formuladas pelas partes, e a sua indagação deve circunscrever-se aos fatos por elas debatidos, no Processo Penal o Juiz tem o dever de investigar a verdade real, procurar saber como os fatos se passaram na realidade, que realmente praticou a infração e em que condições a perpetrou, para dar base certa à justiça. [14]
3. A VERDADE PROCESSUAL
De todo o exposto, extrai-se que a busca da verdade, por intermédio de um processo judicial, especificamente no que tange ao Processo Penal, não é ilimitada, ou seja, o Estado-Juiz não pode se sobrepor à lei com o objetivo de alcançar a justiça.
A despeito dos inúmeros instrumentos processuais dos quais o magistrado pode se valer para a descoberta da verdade, certo é que a ele não é permitido ultrapassar o limite da legalidade no deslinde desta, já que a apuração de fatos penalmente puníveis sem sujeição a limite algum pode por em perigo valores pessoais e sociais de imensurável grandeza.
O presente tópico, assim, destina-se ao estudo de algumas dessas limitações, o que corrobora a idéia anteriormente mencionada de que a verdade real no processo penal não pode ser compreendida como a verdade absoluta.
A vedação à utilização das provas ilegais no processo, prevista no art. 5º, inc. LVI, da CF/88, é uma dessas limitações. O tema já foi analisado quando se tratou dos princípios constitucionais que norteiam o processo penal.
Por hora, impende ressaltar que a mencionada norma constitucional produz relevantes reflexos na busca da verdade, já que estabelece parâmetros rígidos de licitude aos procedimentos investigatórios que visam desvendá-la.
A proibição da utilização das provas ilegais pode ser corroborada pelo princípio da legalidade que rege a administração pública, segundo o qual ao administrador só é permitido fazer o que a lei expressamente permite, e não existe preceito legal que autorize a obtenção da verdade a qualquer preço.
Nesse sentido, toda prova que contenha qualquer mácula de ilegalidade, seja ela representada pela ilicitude ou pela ilegitimidade, deve ser de pronto rejeitada pelo julgador, pois contraria a honestidade e a moralidade que deve revestir todo e qualquer ato jurisidicional.
Outra limitação ao alcance da verdade, e não menos importante que a limitação anteriormente aduzida, é a proteção constitucional conferida aos bens e direitos invioláveis. Preliminarmente, a inviolabilidade pode ser conceituada como "... o atributo que protege de qualquer violência direitos personalíssimos ou preserva o estado das coisas relacionadas com esses direitos." [21].
Do rol dos direitos declarados invioláveis pela CF/88 pode-se citar a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, bem como o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.
A intimidade integra a categoria de direitos da personalidade, e consubstancia-se na esfera secreta da vida do indivíduo, a qual não pode ser devassada contra sua vontade. Por outro lado, a vida privada pode ser considerada como o modo de viver particular de cada pessoa. A honra, por sua vez, confunde-se com a dignidade da pessoa, formada por todos os valores morais e éticos reconhecidos por sua honestidade e comportamento. Por fim, a imagem é a representação exata do ser, seja ela gráfica, fotográfica, computadorizada, ou sob qualquer outra forma.
Entende-se que, a despeito da garantia de inviolabilidade dos mencionados direitos, não pode ela servir de escudo protetor ao infrator da lei penal, ou seja, a inviolabilidade não é absoluta, podendo ceder diante do interesse público, do interesse da justiça.
É evidente que a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem não podem ser violadas desnecessariamente. A garantia de sua inviolabilidade, contudo, não pode ser confundida com impunidade, de forma que, em estrito cumprimento ao dever legal e com observância de todos os limites impostos pela necessidade e adequação tais valores podem ser mitigados a fim de possibilitar a eficácia da persecução penal.
No mesmo sentido, a CF/88 declara, em seu art. 5º, inc. XII:
É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.
A interpretação gramatical desse dispositivo leva a crer que o legislador apenas autorizou a quebra do sigilo das comunicações telefônicas, mantendo a inviolabilidade absoluta quanto ao sigilo das comunicações telegráficas, das correspondências e dos dados.
Não se pode crer, contudo, que essa foi a verdadeira intenção do legislador constituinte, pois, se assim fosse, o descobrimento da verdade encontraria intransponível óbice. Acredita-se, sim, que a exceção autorizada por via judicial abrange todas as hipóteses de sigilo enunciadas naquele dispositivo.
Sendo imprescindível para o alcance da verdade na apuração da ocorrência de um crime, e mediante autorização judicial, poderá haver, também, a quebra do sigilo das comunicações telegráficas, das correspondências e dos dados.
Defende-se, assim, a idéia de que a Lei n. 9.296/1996, que regulamenta a interceptação das comunicações telefônicas, pode ser aplicada para a quebra dos demais sigilos previstos no dispositivo constitucional supra mencionado, de forma que toda e qualquer violação dessa natureza deve ser feita sob segredo de justiça, consoante a parte final do art. 1º dessa Lei.
Ademais, ainda que autorizadas judicialmente, tais provas devem sofrer as mesmas limitações previstas para a interceptação telefônica, dispostas no art. 2º daquela lei, quais sejam: não são autorizadas se não houver indícios razoáveis de autoria e participação em infração penal, se a prova puder ser produzida por outros meios, ou se o fato investigado não constituir infração penal punida com pena de reclusão.
Tratando das limitações à busca da verdade no processo penal, importante anotar os institutos da transação penal e da suspensão condicional do processo, introduzidos no ordenamento jurídico pátrio pela Lei n.º 9.099/1995, posteriormente ampliada e modificada pela Lei n.º 10.259/2001, os quais em muito prejudicam o alcance da verdade real.
A transação penal consiste na possibilidade de acordo entre as partes, em audiência preliminar, sobre a composição dos danos civis causados pela infração penal, em se tratando de ação penal privada ou pública condicionada à representação (sentido lato), ou proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, em se tratando de ação penal pública incondicionada, ou condicionada, quando oferecida a representação (sentido estrito).
No primeiro caso, havendo a composição dos danos civis, o ato será objeto de homologação pelo juiz, mediante sentença irrecorrível, sendo que o referido acordo acarretará renúncia ao direito de queixa ou de representação.
No segundo caso, não havendo possibilidade de arquivamento, o membro do Ministério Público oferece proposta de aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multa que, uma vez aceita pelo infrator, será homologada pelo juiz. Em suma, nos dois casos a pena é aplicada independentemente da instauração de uma ação penal.
Infere-se que o Estado-juiz relega a segundo plano a tarefa de instruir o processo com a finalidade de apurar a veracidade do fato criminoso, modelo de persecução que não combina com a orientação doutrinária ora adotada, a qual defende a tese de que o processo penal tem como finalidade precípua a realização da justiça. Sobre o assunto, Osvaldo Henrique Duek Marques ensina:
A transação penal implicaria admissão de culpa e aceitação de pena, sem apuração da verdade material, em desobediência aos princípios constitucionais do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e da presunção de inocência. [22]
A suspensão condicional do processo, por sua vez, admissível para os crimes em que a pena mínima prevista for igual ou inferior a um ano, consubstancia-se na aceitação, pelo acusado, de proposta feita pelo representante do Ministério Público, quando do oferecimento da denúncia, da qual constem as condições que deverão ser rigorosamente cumpridas, por um período de dois a quatro anos, ficando suspensos o processo e o curso do lapso prescricional.
Se o prazo estipulado esgotar-se sem que tenha havido qualquer violação às condições impostas, o juiz declarará extinta a punibilidade do acusado. Contudo, se durante o período de prova o acusado vier a ser processado por outro crime ou contravenção, se descumprir qualquer das condições impostas, ou se, injustificadamente, não reparar o dano, a suspensão do processo será revogada e este prosseguirá em seus ulteriores termos.
Nesse caso, o descobrimento da verdade está substancialmente prejudicado. Isso porque, quanto maior o período da suspensão condicional do processo, maior a possibilidade de destruição das provas do delito, impossibilitando, sobremaneira, a reconstituição do fato criminoso.
Notas
01Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa, 1998, p. 669.
02 Cf. Santo Agostinho, Confessionum. Trad. S. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 5. Ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1955, apud, Marco Antonio de BARROS, A busca da verdade no Processo Penal, 2002, p. 14.
03 Cf. Nicola Fremarino dei Malatesta, A lógica das provas em matéria criminal, trad. Paolo Capitanio, vol. 1, p. 21, apud, Marco Antonio de BARROS, A busca da verdade no Processo Penal, 2002, p.23.
04 Marilena Chauí, Convite à Filosofia. 9. Ed. São Paulo: Ática, 1997, p. 90, apud Eduardo CAMBI, Verdade Processual Objetivável e Limites da Razão Jurídica Iluminista, Revista de Processo, 1999, p. 234.
05 Marco Antonio de BARROS, A busca da verdade no Processo Penal, 2002, p. 23.
06 Ibidem, p. 21-2.
07 A iniciativa instrutória do Juiz no Processo Penal acusatório, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1999, p. 73-4
08Diomar ACKEL FILHO, Verdade formal e verdade real, Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1988, p. 8.
09 Gustavo HENRIQUE e Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no Processo Penal, 2003, p. 26-27.
10 Verdade formal e verdade real. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 1988, p. 8.
11 Cf. A busca da verdade no processo penal, 2002, p. 31.
12Princípios e regras orientadoras do Novo Processo Penal Brasileiro, 1986, p. 145.
13Processo Penal, 2002, p. 44.
14Processo Penal, 2000, p.41, v. 1.
15 Paula Bajer Fernandes Martins da COSTA, Verdade Material e Processo Penal, Revista da Procuradoria-Geral da República, 1997, p. 225.
16 Ibidem, p. 224 e 225.
17 Cf. A iniciativa instrutória do Juiz no Processo Penal Acusatório, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 1999, p. 76.
18Prevalência da jurisdição sobre a Ação no Processo Penal – Princípio da Verdade Material, 1978, p. 6 e 7, apud Paula Bajer Fernandes Martins da COSTA, Verdade Material e Processo Penal, Revista da Procuradoria-Geral da República, 1997, p. 225.
19Iniciativa Instrutória do Juiz no Processo Penal, 2003, p. 114.
20 Gustavo HENRIQUE e Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no Processo Penal, 2003, p. 34
21 Marco Antonio de BARROS, A busca da Verdade no Processo Penal, 2002, p.220.
22A transação penal nos Juizados Especiais, Boletim IBCCrim, 1993, p. 1, apud Marco Antonio de BARROS, A busca da Verdade no Processo Penal , 2002, p. 261 e 262.