INTRODUÇÃO
Em nosso país, a Colaboração Premiada é o mais conhecido dentre os meios de solução de conflitos com base na justiça penal negociada. Essa popularidade na mídia e na sociedade se deve à sua utilização nas investigações da Operação Lava-Jato, grande esquema contra a corrupção parlamentar.
Contudo, esse meio de obtenção de prova já se faz presente há muito tempo no Estado brasileiro. Em 1603, com a entrada em vigor das Ordenações Filipinas, ficou disposto legalmente que seria perdoado aquele que delatava demais participantes do crime cometido, podendo, além disso, receber um valor monetário pela cooperação (Livro V que refere-se à parte criminal, com Título CXVI). Um exemplo da aplicação desse dispositivo foi na revolta da Inconfidência Mineira, em que Joaquim Silvério dos Reis realizou o acordo de colaboração premiada obtendo o perdão de seus crimes e de suas dívidas civis.
Após um significativo avanço e consolidação da Colaboração Premiada, a Lei 12.850/2013, em seu art. 4º garante a possibilidade desse acordo dispondo uma série de benefícios que o réu pode obter se assim proceder. O dispositivo deixa claro que o acordo em questão se configura como um meio de obtenção de prova. A lei foi redigida no contexto de organizações criminosas e, nesse sentido, deixa claro que o presente instituto visa coibir a prática criminosa e facilitar as investigações já em curso ao garantir um meio de obtenção de prova mais específico e direto.
Além disso, ressalta-se que, muito embora seja um meio de obtenção de prova, a colaboração premiada não pode, por si só, ensejar a condenação de demais membros da organização criminosa, sendo necessária a obtenção de outras provas para garantir a existência dos requisitos necessários para a condenação. Isso porque não se trata de um meio de prova, mas sim uma forma de obtê-las, como bem entende o Superior Tribunal de Federal (Pet 5700/DF, STF) .
Ainda, importa salientar que se trata de um instrumento jurídico da justiça penal negociada, sendo, portanto, um acordo entre as partes. Dessa forma, qualquer uma das partes - réu, delegado, Ministério Público - possui a liberdade para se negar a pactuar o acordo e deixar o processo tramitar sem esse instituto.
Muito embora se trate de um meio de obtenção de provas já consolidado e amplamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro, pode se observar um contexto de críticas à colaboração premiada. A principal delas é de que se trata de um instituto imoral ao recompensar criminosos que cooperam contra outros criminosos, violando o princípio da moralidade pública ao estimular a traição.
No entanto, apesar das críticas, é inegável que a colaboração premiada já está efetivada e é aplicada no contexto jurídico atual. Diante disso, surgem várias controvérsias e divergências processuais em relação à sua aplicação.
Dessa forma, após breve síntese daquilo que está disposto como a colaboração premiada, tratar-se-á de como o entendimento das cortes superiores vem sendo aplicado ante certas questões relacionadas a esse meio de obtenção de prova.
1. Colaboração Premiada nos casos de lavagem de capital
No sentido de compreender a ferramenta processual da colaboração e analisar criticamente a jurisprudência vigente sobre tal mecanismo, é interessante analisar sua utilização específica, considerando as vantagens provenientes e as dificuldades resultantes de seu uso. Para tal, analisa-se a colaboração no contexto de casos de lavagem de capital, uma conduta típica, com certa peculiaridades que tornam o instituto supracitado uma ferramenta extremamente útil. A lavagem de capital, prevista na Lei nº 9.613 de 1998, é um crime geralmente tido como de natureza acessória, consequente de ação criminosa pretérita, com finalidade posta na eventual integração do dinheiro, obtido de maneira ilícita, no sistema econômico legítimo. Ainda assim, a legislação tende para a autonomia do processo, como coloca o art. 2º, II da lei já mencionada, incorrendo no julgamento e processamento dos casos de lavagem de dinheiro independentemente do processamento das infrações anteriores. (TEIXEIRA, 2016). Dessa maneira, entendendo sua apreciação unitária, vale compreender os motivos e requisitos para aplicação da colaboração no caso apresentado, aprofundando nos meandros processuais da jurisprudência e questões materiais da complexidade do tipo.
Por uma análise contextual, percebe-se que a lavagem de dinheiro é um processo multietapas, divididos pela doutrina em três principais partes: a colocação, a ocultação e a integração. De maneira resumida, a colocação é a introdução do capital ilícito no sistema econômico, através de artifícios como compra de objetos caros, investimentos financeiros, depósitos bancários e outras operações. A ocultação, a segunda fase do processo, envolve a dissociação do dinheiro com a origem, com a realização de muitas transferências financeiras em sequência, utilizando, para isso, contas bancárias internacionais, aplicações em bolsas ou transferências eletrônicas, visando distanciar ao máximo o capital do depósito original. Por último, há a introdução legal desses valores na economia nacional, com aparência de legitimidade e legalidade, mediante justificativas como integração em capital social e/ou compra de ativos (MENDRONI, 2020). É nítido, então, que a lavagem de dinheiro, em especial, é um procedimento complexo, que envolve diversos agentes e mecanismos, nacionais e internacionais, sendo parte fundamental da estrutura de organizações criminosas.
Expõe-se, então, importante correlação entre o instrumento da colação e o crime de lavagem, considerando sua complexidade material. Através da colaboração, é possível a identificação da estrutura organizacional da organização e de seus sistemas de lavagem, corroborando também com a possibilidade de identificação, com maior precisão, da destinação do capital desviado no sistema financeiro. Logo, olhando para os aspectos de exigibilidade do acordo da Lei de Combate às Organizações Criminosas, em destaque, os resultados desejados estabelecidos por lei, encontra-se finalidade na colaboração no âmbito da lavagem, em especial no caso de dois resultados: “a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa” e a “recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa” (BRASIL, 2013). Mediante colaboração, é nítida a maior facilidade de investigação da estrutura e dos agentes partícipes, além da maior possibilidade de recuperação do dinheiro ocultado. Compreende, nesse sentido, a própria Lei nº 9.613/1998, que já define em seu escopo a possibilidade de colaboração, estabelecendo, em seu art. 1°, § 5°, a prestação voluntária de esclarecimento, em contrapartida de redução de pena ou perdão, possibilitando “apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime” (BRASIL, 1998).
Figura, no mesmo olhar, a jurisprudência do STF, no julgamento do RHC 219.193/RJ, que discorreu sobre o instituto da colaboração no crime de lavagem e abordou aspectos essenciais de sua homologação, explicando da importância dessa ferramenta no combate ao crime organizado e sua aplicação para quaisquer modalidades criminosas cometidas em concurso de agentes:
Esse conjunto normativo, que se consolidou com a Lei 9.807/1999, contemplando a Colaboração Premiada para todo e qualquer crime, inspirou-se no cenário internacional de medidas voltadas à prevenção, detecção e repressão a ilícitos como a lavagem de dinheiro, a corrupção, o terrorismo e outros. (g) A evolução histórica do instituto no nosso ordenamento jurídico revela a ampla aplicabilidade da Colaboração Premiada como meio de obtenção de prova de qualquer tipo de crime praticado em concurso de agentes, inexistindo uma lista fechada de delitos que podem ser objeto de delação (STF, 2022)
Um fator importante na conjuntura apresentada do acordo é a validação de sua admissibilidade pelo juiz. Como observação, vale explanar que atualmente, no âmbito puramente legal, a julgamento de homologação do acordo, em tese, é do juiz de garantias, como estabelece o inciso XVII do art. 3-B do Código de Processo Penal. Dito isso, a análise pertencente à importância do instituto, como apresentado, no referente a sua possibilidade de alcançar os resultados preteridos, como o resgate dos bens desviados e identificação dos agentes, é uma avaliação feita pelas partes capazes de propor o acordo (Ministério Público e delegado) e que estão presentes na negociação. Como muito bem colocado pelo Ministro Reynaldo Soares, no julgamento do HC 354.800, o juiz possui a prerrogativa de apenas analisar a legalidade, voluntariedade e regularidade do acordo, inclusive sobre sua essência de negócio jurídico personalíssimo (STJ, 2022). Logo, em proteção ao próprio sistema acusatório, o juiz não pode reprovar o acordo com base em análise de mérito ou de correlação da efetividade e fim da proposta. Nesse sentido, a homologação de contratos de colaboração, no âmbito da ocultação e lavagem de capital, não analisaria a quantia desviada ou a real possibilidade de recuperação, dado que essa análise deve ser feita pelo propositor, durante o processo de negociação do acordo processual.
Outro elemento curioso do presente contexto específico da colaboração, já debatido pela jurisprudência, é a possibilidade de preservação do valor aferido através do ilícito pelo delator, ou seja, a manutenção patrimonial, total ou parcial, como condição para efetivação do acordo de colaboração. Tal questão é polêmica, no sentido de que a própria Lei nº 9.613/98, em seu art. 7º, I, define o retorno de todos os bens patrimoniais e monetários para a União em casos de lavagem de dinheiro. No âmbito da mesma lei, essa prevê como benefício da colaboração apenas a redução parcial de pena ou o perdão judicial, não incluindo nesse rol a preservação de patrimônio. Assim foi concluído pelo STF no julgamento do HC nº 127.483/SP, defendendo o princípio da legalidade e a consequente aplicação dos dispositivos supramencionados. (STF apud CAPEZ, 2016)
O voto do relator Ministro Dias Toffoli, todavia, levantou aspectos relevantes de debate, que contrapuseram a noção majoritária da corte. O ministro argumentou que, com base na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, seria possível adotar as medidas necessárias para incentivar a colaboração de acusados na exposição de outros agentes e da estrutura criminosa. Nesse sentido, a Convenção estabelece a previsão de “redução de pena” de maneira genérica, o que possibilitaria a redução até de efeitos extrapenais, como o confisco, por uma interpretação teleológica de pena como consequência do crime. (STF apud CAPEZ, 2016). Logo, seria lícito, como medida para abrandar a pena, a preservação do patrimônio obtido por ilícito como cláusula do acordo de colaboração, de acordo com o relator, como segue:
se a colaboração exitosa pode afastar ou mitigar a aplicação da própria pena cominada ao crime (respectivamente, pelo perdão judicial ou pela redução de pena corporal ou sua substituição por restritiva de direitos), a fortiori, não há nenhum óbice a que também possa mitigar os efeitos extrapenais de natureza patrimonial da condenação, como o confisco “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso” (art. 91, II, b, do Código Penal), e de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores (art. 7º, I, da Lei nº 9.613/98). (STF apud CAPEZ, 2016)
Portanto, analisando a conjuntura dos pontos apresentados acima, o acordo de colaboração, como mecanismo da Justiça Penal Negociada, é importantíssimo no âmbito do crime de lavagem de capital, possibilitando o direcionamento investigativo e a superação, pelas autoridades, de dificuldades contextuais do próprio tipo, dado sua complexidade em execução. A utilização de artimanhas de transferências entre contas bancárias internacionais, a aplicação de capital em bolsa, integração do capital social com verbas roubadas, a aquisição de capital e entre outros meio complicam demais a investigação federal sobre o tipo de conduta aqui citada, valorizando ainda mais a oportunidade de colaboração dos acusados. Logo, nos acordos, devem ser utilizadas todas as possibilidades de proposição processuais para adquirir o resultado pretendido, com a análise a respeito da eficácia dessas disposições devendo ser realizado pelos próprios propositores. Isso inclui, então, a possibilidade de preservação patrimonial, caso as informações dispostas possam, de fato, trazer benefício significante, como dispõe o próprio Ministro Dias Toffoli. Entende-se que o objetivo do instituto é, no contexto da lavagem, possibilitar a compreensão da estrutura criminosa e dos meios de lavagem, além de alcançar a recuperação parcial ou total do capital desviado, consequentemente, para tal, a colaboração, com seus efeitos extensivos, é uma ferramenta ideal.
2. Colaboração premiada no âmbito da Improbidade Administrativa
O crime de Improbidade Administrativa se dá na busca de colocar fim ou ao menos mitigar os inúmeros casos de corrupção que causam sérios danos patrimoniais às finanças públicas do país.
Com esse objetivo tem-se uma constante e necessária atenção ao regramento que trata desse tipo penal. Um dos exemplos disso foi a alteração da Lei 8.429/92 de tal modo que, dentre vários outros pontos, determinou a possibilidade da justiça penal negociada em casos de improbidade administrativa.
Não restam dúvidas que a aplicação desses meios conferidos pelo ordenamento jurídico brasileiro como a justiça penal negociada seriam favoráveis para uma maior efetividade processual no que concerne à improbidade administrativa, pois confere maior celeridade processual, obediência ao princípio eficiência, e observância às finalidades dos instrumentos de justiça consensual ou negociada.
No entanto, tal alteração foi responsável por uma extensa discussão no âmbito jurisprudencial acerca da sua validade, uma vez que se alegou que esses meios de obtenção de prova e/ou solução de conflitos eram proibidos pela lei em sua redação original.
Desse modo, muito embora se trate de uma discussão quanto a um artigo já revogado em reforma da Lei de Improbidade Administrativa, importa ressaltar que se trata de divergência que ainda persiste e que teve um entendimento muito bem fundamentado pelo STF a fim de constatar a pertinência da Colaboração Premiada no âmbito do julgamento de casos de improbidade administrativa. Sendo assim, o tema ainda segue sendo pertinente para se entender as razões do cabimento do instituto da colaboração premiada em investigações de crimes de improbidade administrativa.
O Min. Alexandre de Moraes proferiu, no ARE 1175650, voto extremamente detalhado, que mostra, de maneira categórica, o cabimento da colaboração premiada no contexto de crimes de improbidade administrativa, ressaltando suas claras vantagens. O voto do ministro firmou a seguinte tese: “É constitucional a utilização da colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/2013, no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público”, desde que seguidas as diretrizes apontadas pelo Ministro.
O argumento da parte recorrente é de que a colaboração premiada em ações relacionadas ao crime de improbidade administrativa fere o princípio da legalidade, uma vez que tal ato é expressamente vedado pela Lei de Improbidade Administrativa vigente na época.
O primeiro ponto ressaltado no voto é de que a colaboração premiada, diferentemente dos outros institutos da justiça penal negociada, é um meio de obtenção de prova, podendo, desse modo, auxiliar não só na condenação dos partícipes da conduta criminosa, mas também ajudar no combate à corrupção e outros crimes contra o interesse público em geral.
Prosseguiu seu voto constatando o avanço cronológico das leis que tratam o assunto de tal forma a demonstrar que, com a Lei 13.140/15, em seu art. 3º, foi determinada a possibilidade de se valer da colaboração premiada em casos de crime de improbidade administrativa.
Dessa forma, o que se entende é que o regramento legal brasileiro evoluiu de modo que privilegiou proteção ao patrimônio público e de combate à corrupção e com absoluta observância ao princípio constitucional da eficiência, tendo em vista que todos esses pontos são auxiliados com a colaboração premiada.
Portanto, o ministro constata que foi reconhecido o valor desse meio de obtenção de prova, entendendo-se que se trata de um instituto de grande efetividade e utilidade, sendo totalmente descabida a sua vedação em investigações de um tipo penal tão frequente como a improbidade administrativa.
Além disso, ressaltou que a colaboração premiada ainda pode auxiliar nas ações de âmbito civil relacionadas à improbidade administrativa. Percebe-se, assim, mais uma vantagem da utilização desse meio de obtenção de provas, uma vez que pode servir de auxílio para as ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público.
No entanto, o Ministro Alexandre de Moraes, apesar de se mostrar muito favorável ao instituto da colaboração premiada, ressaltando de maneira categórica as suas vantagens, não deixou de salientar que as leis que regem este instituto jurídico determinam uma série de critérios e diretrizes que devem ser seguidos para que se utilize da colaboração premiada em casos de improbidade administrativa.
Na própria tese firmada pelo ministro os critérios são elencados de maneira categórica. Veja-se quais são eles:
Realizado o acordo de colaboração premiada, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: regularidade, legalidade e voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, nos termos dos §§ 6º e 7º do artigo 4º da referida Lei 12.850/2013.
As declarações do agente colaborador, desacompanhadas de outros elementos de prova, são insuficientes para o início da ação civil por ato de improbidade;
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A obrigação de ressarcimento do dano causado ao erário pelo agente colaborador deve ser integral, não podendo ser objeto de transação ou acordo, sendo válida a negociação em torno do modo e das condições para a indenização;
O acordo de colaboração deve ser celebrado pelo Ministério Público, com a interveniência da pessoa jurídica interessada e devidamente homologado pela autoridade judicial;
Os acordos já firmados somente pelo Ministério Público ficam preservados até a data deste julgamento, desde que haja previsão de total ressarcimento do dano, tenham sido devidamente homologados em Juízo e regularmente cumpridos pelo beneficiado".
Dessa forma, nota-se que o instituto, apesar de apresentar algumas peculiaridades no tipo penal em questão, critérios e diretrizes específicas, se mostra manifestamente cabível, tendo em vista a efetividade quanto ao combate à corrupção e busca por atendimento do interesse público ao auxiliar na maior eficácia na investigação do crime de improbidade administrativa.