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Sociedade, desenvolvimento e liberdade.

Conectando o pensamento econômico de Amartya Sen com o princípio jurídico-penal da co-culpabilidade

17/04/2008 às 00:00
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Como pode a voz que vem das casas/ Ser a da justiça/ Se nos pátios estão os desabrigados?

Como pode não ser um embusteiro aquele que/ Ensina aos famintos outras coisas/ Que não a maneira de abolir a fome?

Quem não dá pão ao faminto/ Quer a violência

Quem na canoa não tem/ Lugar para os que se afogam/ Não tem compaixão.

Quem não sabe de ajuda/ Que cale.

Bertolt Brecht – "Quem não sabe de ajuda", In: Poemas, p. 85.

O chamado "Princípio da Co-Culpabilidade" aponta para a necessidade de avaliar nos casos concretos o grau de liberdade com que o agente contava ao enveredar na senda criminosa. Quando o espaço decisório do agente encontrar-se muito limitado pelas suas condições sócio – econômicas, impõe-se um reconhecimento pela sociedade e pelo Estado de certo grau variável de co – responsabilidade pela conduta delituosa a que em parte foi o autor impelido por tais condições adversas. A grande conseqüência é que a reação penal nesses casos deve ser abrandada, senão até mesmo afastada, dependendo, como antes destacado, do grau maior ou menor de condicionamento provocado pelo "status" sócio-econômico do agente.

Conforme aduz Grégore Moura, "a co-culpabilidade é uma mea culpa da sociedade, consubstanciada em um princípio constitucional implícito da nossa Carta Magna, o qual visa promover menor reprovabilidade do sujeito ativo do crime em virtude da sua posição de hipossuficiente e abandonado pelo Estado, que é inadimplente no cumprimento de suas obrigações constitucionais para com o cidadão, principalmente no aspecto econômico-social". [01]

O "menor âmbito de autodeterminação" a que são impelidas certas pessoas justificaria um correlato abrandamento da reação penal estatal com base em um critério de justiça. Os Princípios Constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade (especialmente sob seu aspecto material) conduziriam à formulação do Princípio da Co-Culpabilidade na seara penal. [02] Afinal, conforme leciona Karl Schmid, apontando princípios supralegais a legitimarem a ordem jurídica, "temos de aprender de novo que a justiça está antes do direito positivo e que são unicamente as suas categorias intocáveis pela vontade do homem que podem fazer das leis direito – seja o legislador quem for, um tirano ou um povo. Velar por isso é a nossa função, a função própria dos juristas. Se o esquecermos, degradamo-nos em auxiliares e servos do poder". [03]

No Brasil a co-culpabilidade é um princípio "implícito" na Constituição. No entanto, vários países reconhecem o Princípio da Co-Culpabilidade expressamente em textos legais e constitucionais. São exemplos disso a Argentina, México, Peru, Bolívia, Colômbia, Equador, Paraguai e Portugal. Também há outros ordenamentos jurídicos que, a exemplo do Brasil, aplicam a co-culpabilidade indiretamente, com assento em seu reconhecimento implícito, tais como Costa Rica e El Salvador. [04]

Trabalhando no campo da Teoria Econômica, Amartya Sen apresenta uma interpretação revolucionária do conceito de "desenvolvimento", promovendo uma reaproximação entre a ética e a economia e, com isso, possibilitando a reumanização da segunda. [05]

Para o autor sob comento, "o desenvolvimento consiste na eliminação de privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercer ponderadamente sua condição de agente". [06] Então o desenvolvimento deixa de ser visto somente com base no chamado "crescimento econômico", referido ao aumento de produção de bens e valores, do Produto Nacional Bruto, industrialização, avanço tecnológico, aumento de renda "per capita" ou modernização social. Ele passa a "ser visto como um processo de expansão das liberdades reais de que as pessoas desfrutam". [07]

Sen atribui destaque à otimização da "condição de agente" das pessoas, explicando o uso da expressão como "alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de as avaliarmos ou não também segundo algum critério externo". O papel de agente é analisado por Sen considerando o "indivíduo como membro do público e como participante de ações econômicas, sociais e políticas". [08] Neste passo a concepção de Sen parece aproximar-se do conceito de "ação" como integrante da "condição humana" ("Vita activa"), preconizada por Arendt, ou seja, a atividade exercida pelo homem junto e entre os outros homens que convivem na Terra e habitam o mundo. A ação neste aspecto é a expressão da "vida política" em que o homem se expressa em sua individualidade no seio da pluralidade, já que somos todos humanos que convivem, mas ninguém é exatamente igual a qualquer outro. [09]

Com essa inovadora abordagem na economia, Sen demonstra que o distanciamento entre economia e ética tem gerado graves deficiências para a Teoria Econômica contemporânea. [10]

Certamente uma das principais distorções trazidas à tona pelo autor está na confusão entre meios e fins. A Teoria Econômica tem propiciado, com seu afastamento da ética, a visão pervertida dos meios como fins. A economia entendida como uma espécie de "engenharia" da riqueza acaba interpretando aquilo que é meramente instrumental como constitutivo. É como se o humano estivesse a serviço da riqueza e não a riqueza a serviço do humano.

Ora, a evolução da sociedade humana perante as sociedades animais é marcada exatamente pelo fato do progresso para a valorização do indivíduo. No seio das sociedades dos irracionais (v.g. abelhas, formigas, cupins etc.) o único interesse é o da preservação da espécie. Há total indiferença perante o destino individual de cada um de seus membros. Os indivíduos são vistos como meras partes de um todo e inteiramente submetidos aos interesses globais. Já nas sociedades humanas, "a inteligência submeteu a sociedade às pessoas, isto é, fez da sociedade um meio a serviço de cada ser humano". Nos grupamentos humanos o destino de cada um de seus componentes adquire suma relevância. Não é que a sorte da sociedade como um todo seja desprezada, mas ela somente tem verdadeiro valor enquanto instrumento para a realização de cada ser humano que a compõe. [11] Nesse passo aquilo que aparenta ser a vanguarda de um saber (uma "engenharia econômica" isolada da ética) na verdade constitui-se num retrocesso atávico, na medida em que renega um dos mais importantes saltos evolutivos da espécie humana.

Sen recupera no campo econômico o conceito aristotélico da felicidade como fim. Aristóteles ensinou que "absolutamente perfeito é aquele fim querido sempre por si mesmo e nunca por outro. Tal parece ser mais do que qualquer outra coisa a felicidade: a esta, de fato, queremo-la sempre por si mesma e nunca por outra coisa". [12] A riqueza, por exemplo, "não é o bem que se busca: não passa de coisa útil, e procura-se para fins outros". [13]

Somente o absoluto descaso para com preceitos éticos fundamentais, erigindo toda uma Teoria Econômica apartada da ética, poderia conduzir à atual situação de terrível distorção entre meios e fins que domina o cenário da economia mundial.

A solução estaria numa reaproximação entre ética e economia, com efeitos benéficos para ambos os campos. [14]

Para um economista formado e informado em um paradigma que praticamente abstrai a ética, a proposta de Sen aparenta ser um contra-senso. Não obstante, como leciona Telles Júnior, "quase todas as grandes descobertas da ciência constituíram atentados ao bom senso", de forma que "o óbvio pode ser causa de muita cegueira". [15]

A prioridade dada ao humano na economia não somente a tornará uma ciência mais bela e solidária, mas também lhe acrescentará muita eficácia. A religação entre ética e economia pode nos brindar com inúmeras recompensas. [16] Não se deve pensar em primeiro ser rico para depois poder "se dar ao luxo" de ser humano. Na realidade é preciso atentar desde logo para os valores humanos que são constitutivos dos fins a serem buscados, mas que também são instrumentais, de forma que, muito ao contrário do acima aventado, primeiro é preciso ser humano para então com maior eficácia e consistência ser rico. [17]

Em sua "Carta aos Brasileiros" Telles Júnior já apontava na seara jurídica para preeminência que deve ser dada à liberdade e aos demais bens espirituais do ser humano, sem os quais o conceito de "desenvolvimento" somente pode ser um erro ou um engodo. Vejamos suas palavras:

"Nenhum país deve esperar por seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertimos que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficarão permanentemente à espera de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito. Proclamamos que o estado de Direito é sempre primeiro, porque primeiro estão os direitos e a segurança da pessoa humana. Nenhuma idéia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Econômico prepondera sobre a idéia de que o Estado existe para servir o homem. Estamos convictos de que a segurança dos direitos da pessoa humana é a primeira providência para garantir o verdadeiro desenvolvimento de uma Nação". [18] Em congruência com esse pensamento, no campo Econômico, Sen também leva a efeito uma identificação entre desenvolvimento e liberdade.

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Dessa maneira é razoável entender a pobreza não somente como "baixa renda" ou a condição de desprovido de bens materiais. Pobreza assume também, e de forma muito relevante, o aspecto da "privação de capacidades básicas" que conferem à pessoa humana sua dignidade e verdadeira faculdade de autodeterminação. [19]

Neste ponto já exsurge bem clara a conexão entre o pensamento econômico de Amartya Sen e o Princípio Jurídico-Penal da Co-Culpabilidade.

Tobias Barreto já lembrava que "o direito é o fio vermelho e a moral o fio de ouro, que atravessam todo o tecido das relações sociais". [20] Sen demonstrou como a ética pode mesmo, e deve, ser esse fio de ouro que compõe a trama das teorias e práticas econômicas, tornando-as concomitantemente mais humanas e eficazes. Por seu turno, o Direito Penal, perpassado pelo mesmo fio de ouro da ética, deve reconhecer em seu bojo o Princípio da Co – Culpabilidade, compreendendo a considerável perda de liberdade de autodeterminação imposta a relevante parcela da população. Com isso o fio vermelho do Direito e o fio de ouro da Ética poderão unir-se e coserem o emblema da Justiça, ao mesmo tempo em que se presta o devido respeito pela humanidade. E, quem sabe algum dia, em uma sociedade realmente desenvolvida, em que imperem a liberdade e a igualdade não somente formais, mas materiais, se possa atribuir a cada um a responsabilidade única e integral por suas escolhas e condutas.

Enfim, o reconhecimento da liberdade de autodeterminação como valor constitutivo e instrumental sob o prisma econômico, deve ser recebido no mundo jurídico – penal através de uma permeabilidade sintética transdisciplinar, tendo como uma de suas manifestações a conformação do Princípio da Co-Culpabilidade. Afinal, será sempre indicativo de desenvolvimento e progresso o respeito pelos valores da dignidade humana, igualdade e justiça, os quais não somente conduzem ao, mas são o próprio desenvolvimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

01Do Princípio da Co – Culpabilidade. Niterói: Impetus, 2006, p. 1.

02 Op. Cit., p. 36 – 37. Não só os Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade são apontados como fundamentos para a co – culpabilidade. Citam-se também o Princípio da Individualização da Pena, do Pluralismo Jurídico e ainda a Doutrina do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli. Op. Cit., p. 57 – 67.

03 Apud, BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Trad. José Manuel M. Cardoso da Costa. Coimbra: Atlântida, 1977, p. 45.

04 MOURA, Grégore. Op. Cit., p. 69 – 87.

05 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, "passim". IDEM. Sobre Ética e Economia. Trad. Laura Teixeira Motta. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, "passim".

06 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 10.

07 Op. Cit., p. 17.

08 Op. Cit., p. 33.

09 ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. Roberto Raposo. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 15 – 16.

10 LETICHE, John M. Prefácio. In: SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. Trad. Laura Teixeira Motta. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 9.

11 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Direito Quântico. 7ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 257.

12 ARISTÓTELES. A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 39.

13 Op. Cit., p. 3. Ver também: SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 28.

14 SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. Trad. Laura Teixeira Motta. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 94. Note-se que o autor chama a atenção para o fato de que ética e economia sempre caminharam juntas. Uma das grandes questões ético – filosóficas é a pergunta sobre "como devemos viver?". As respostas a tal questionamento implicam necessariamente aspectos ligados à economia. Tanto é verdade que os grandes baluartes da ética clássica como Sócrates, Platão e Aristóteles não deixaram de abordar constantemente os temas econômicos. Confira-se nas obras clássicas: ARISTÓTELES. A Política. Trad. Nestor Silveira Chaves. 14ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999, "passim". PLATÃO. A República. Trad. Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004, "passim".

15 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Op. Cit., p. 44.

16 SEN, Amartya. Sobre Ética e Economia. Trad. Laura Teixeira Motta. 5ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 106.

17 SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 175.

18 TELLES JÚNIOR, Goffredo. Carta aos brasileiros. Disponível em www.goffredotellesjr.adv.br, acesso em 02.01.2008, p. 6.

19SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. 6ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 35.

20Estudos de Direito. Campinas: Bookseller, 2000, p. 32.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Sociedade, desenvolvimento e liberdade.: Conectando o pensamento econômico de Amartya Sen com o princípio jurídico-penal da co-culpabilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1751, 17 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11167. Acesso em: 27 abr. 2024.

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