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Teoria da zona livre de ofensas segundo o TJDFT

18/11/2024 às 18:50
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Em determinados ambientes comunicacionais, as pessoas aceitam os padrões de interação estabelecidos, os quais podem incluir discursos mais intensos, ríspidos e até ofensivos.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) vem aplicando, de forma acertada, a Teoria da Zona Livre de Ofensas tanto em casos cíveis quanto criminais, consolidando-se como referência na interpretação jurídica contemporânea dessa teoria.

Inicialmente delineada no Brasil pela Doutora Karina Nunes Fritz,[1] a Teoria da Zona Livre de Ofensas busca delimitar um espaço de convivência no qual os indivíduos, ao consentirem em participar de determinados contextos sociais ou comunicativos, assumem implicitamente os riscos de vivenciar interações potencialmente conflituosas, desde que respeitados os limites do razoável e do tolerável.

No âmbito cível, o TJDFT tem utilizado essa abordagem para afastar pedidos de indenização por danos morais em situações como interações em redes sociais, grupos de mensagens ou relações interpessoais onde o contexto já sugeria a possibilidade de exposição a críticas ou opiniões incisivas. Essa aplicação respeita a liberdade de expressão e busca equilibrar direitos fundamentais, evitando que o Judiciário seja indevidamente instrumentalizado para censura ou supressão de debates legítimos. 

Já no âmbito criminal, a teoria também tem encontrado espaço, especialmente em casos de injúria ou difamação. O TJDFT tem avaliado se as palavras ou ações em questão ultrapassaram os limites da crítica ou da ironia aceitável no contexto social específico, garantindo que apenas condutas realmente ofensivas e desproporcionais sejam objeto de responsabilização penal.

A Teoria da Zona Livre de Ofensas proclama que, em determinados ambientes comunicacionais, as pessoas que neles ingressam, seja de forma direta, indireta (por meio de um informante), ou que expressamente rejeitam a possibilidade de participar ativamente, aceitam implicitamente os padrões de interação estabelecidos, os quais podem incluir discursos mais intensos, ríspidos e até ofensivos.

Fritz apontou uma decisão do Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, sobre o caso de um genro que tentou impedir que sua sogra falasse mal dele no grupo de mensagens familiar, abrindo um importante precedente acerca da proteção da honra e a liberdade de expressão no âmbito familiar. Trata-se do processo Az. 16 W 54/18, em que o Tribunal abordou a necessidade de um espaço livre de consequências jurídicas nas relações familiares, reconhecendo a importância de uma área onde os membros da família possam se expressar sem receio de danos jurídicos.

Ao julgar o recurso, o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main negou o pedido do genro e introduziu a ideia de uma “zona livre” de proteção para manifestações no círculo familiar, protegendo as relações de confiança e a liberdade de expressão de familiares próximos. Para o Tribunal, essa área de confiança é uma esfera de proteção constitucional onde a honra do indivíduo é relativizada, prevalecendo o direito à liberdade de expressão. Essa interpretação é fundamentada nos artigos 1.º e 2.º da Lei Fundamental da Alemanha que garantem uma esfera de comunicação confidencial dentro das relações pessoais.

A "zona livre" permite que, mesmo em discussões e expressões mais duras entre familiares próximos, não se imponham consequências jurídicas. A decisão destacou ainda que os comentários da sogra, embora direcionados contra o genro, ocorreram dentro de um grupo familiar restrito, não sendo configurados como ofensivos ao ponto de ultrapassarem os limites do aceitável na esfera íntima familiar.

Fazendo coro ao estudo de Fritz, Carlos Eduardo Elias de Oliveira aprofunda o exame da teoria, adaptando-a para as conversas realizadas em grupos de WhatsApp, conforme artigo publicado no Migalhas.3

Para Oliveira, ao ingressar em um grupo de WhatsApp, os participantes aceitam implicitamente um ambiente de interação que pode incluir discordâncias, debates acalorados e até trocas de comentários que, fora desse contexto, poderiam ser considerados ofensivos. Essa aceitação prévia criaria uma espécie de “consentimento tácito”, que impede a formulação de alegações de danos morais causados por tais interações. Segundo o autor,

“Soa estranho dizer que as pessoas podem ofender as demais a depender do ambiente, mas isso é uma realidade que o Direito não pode ignorar. O juiz deverá ser extremamente cauteloso nessa análise, pois evidentemente não se pode tolerar casos abusivos, como os de violência contra pessoas vulneráveis. Para delimitar o espaço dessa zona livre, entendemos que deve ser feito um juízo de ‘bom senso’ (o que inevitavelmente gerará um certo grau de indeterminação) que leve em conta os seguintes parâmetros: (1) o grau de intimidade entre os membros do grupo; (2) o nível de formalidade adotado entre eles; e (3) a existência ou não de recusa externa de um dos membros a participar dessa "zona livre de ofensa". Quanto maior o grau de intimidade entre os membros desse grupo e quanto maior a informalidade nesse ambiente, essa zona livre será maior. Cabe ao juiz a difícil tarefa de mapear o ambiente interpessoal para, no caso concreto, averiguar a extensão da ‘zona livre para ofensas’. Um mesmo ‘palavrão’ ou um ‘xingamento’ pode ser um ilícito civil em um ambiente muito formal e não ser ilícito algum em um ambiente extremamente informal”.

Conforme já adiantado acima, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) tem adotado a Teoria da Zona Livre de Ofensas no âmbito civil e criminal. Cita-se, por exemplo, o Acórdão 1.698.683, autos: 0712332-57.2022.8.07.0020, Segunda Turma Recursal, DJe- 17/05/2023. Neste precedente, proferido no âmbito civil, abordou-se uma situação em que uma das partes, participante de um grupo de WhatsApp de contação de histórias, busca indenização por dano moral em razão de comentários ofensivos feitos por outra participante.

No caso analisado, a controvérsia se resume a avaliar se as atitudes e comentários da ré – embora considerados de "pouca cortesia" e denotando falta de educação – são suficientemente graves para configurar dano moral. O entendimento é de que, em um grupo restrito e informal, como o de contação de histórias com 34 participantes, há uma zona de tolerância maior para comunicações potencialmente ríspidas ou ofensivas, já que não se trata de um ambiente público.

Segundo o julgado, a ré não extrapolou os limites aceitáveis no contexto desse grupo, pois, embora os comentários fossem rudes, não houve repercussão negativa na imagem da autora nem violação dos atributos de sua personalidade. Além disso, a decisão pondera que participar de um grupo de WhatsApp é uma escolha, e o indivíduo pode decidir não continuar ali. Assim, palavras rudes, como chamar alguém de "ladrão de projeto", não foram consideradas um excesso capaz de fundamentar uma indenização por dano moral, dado o contexto privado e flexível do grupo.

Concluindo, o julgado reafirma que o conceito de dano moral está ligado a uma ofensa direta aos direitos da personalidade (como honra e imagem) e que, em ambientes mais informais e privados, o julgamento sobre o que constitui dano moral deve ser mais restrito e contextualizado, conforme a zona de tolerância ou "Zona Livre de Ofensas".

Já no Acórdão 1.797.032, autos: 0719138-45.2021.8.07.0020, Segunda Turma Recursal, DJe- 15/12/2023, proferido no âmbito criminal, analisou-se uma queixa-crime, em razão da alegada prática de injúria (art. 140 do Código penal).

No caso, a apelante acusou o síndico, com quem tinha divergências administrativas, de utilizar palavras ofensivas ("trupe", "medíocre", "arrogante" e "prepotente") em um grupo de WhatsApp dos moradores do condomínio, com o suposto intuito de ofendê-la.

O magistrado considerou que o ambiente do grupo de mensagens do condomínio é um espaço privado e informal, onde as interações podem conter excessos e expressões ríspidas. Aplicou a Teoria da Zona Livre de Ofensas, que reconhece uma maior tolerância para comentários potencialmente ofensivos em espaços fechados, como um grupo de WhatsApp restrito a moradores.

A decisão enfatiza que, para o crime de injúria, é necessário comprovar a intenção específica de ofender (animus injuriandi). Entretanto, o contexto apontado, o conteúdo das mensagens e o ambiente do grupo de WhatsApp indicaram que o síndico estava manifestando sua opinião, ainda que de maneira dura, sobre a postura da apelante, sem o dolo específico de injuriá-la. Assim, a conduta foi interpretada como desprovida da intenção penalmente relevante de ofensa à honra, sendo uma crítica decorrente de conflitos típicos da vida condominial.

Ao aplicar a Teoria da Zona Livre de Ofensas, o julgado concluiu que, em ambientes privados e informais, é necessário distinguir entre ofensas intencionais e opiniões, ainda que ríspidas e severamente negativas, especialmente quando não há evidências claras de animus injuriandi. Dessa forma, afastou a caracterização do crime de injúria, prestigiando a liberdade de expressão.

Defendemos, nada obstante, que mesmo quando uma pessoa decide não integrar diretamente um grupo de WhatsApp, mas procura informações por meio de terceiros acerca do que sobre ela é falado nesse ambiente, tal conduta equivale, em essência, à participação no grupo, mas de forma passiva, isto é, por via oblíqua.

Essa atuação voluntária evidencia a intenção de acessar o conteúdo do grupo, ainda que por meio de interposta pessoa, o que torna inaplicável a pretensão de um pedido de indenização por danos morais ou, com maior razão, o ajuizamento de uma ação penal. O direito não pode privilegiar a vingança privada, a perseguição e a represália.

Trata-se, em verdade, de um participante por via transversa, que indiscutivelmente realiza uma busca ativa de conteúdo. Corresponde àquelas pessoas que participam presencialmente do grupo mas nunca se manifestam sobre o que nele é colocado. Ao fim e ao cabo, não deixam de ser participantes dele.

A lógica subjacente a esse contexto é clara: a Teoria da Zona Livre de Ofensas permanece plenamente aplicável. Ao optar por acessar o conteúdo do grupo, ainda que por intermédio de um terceiro, o indivíduo assume os riscos inerentes à exposição voluntária a informações potencialmente ofensivas ou indesejáveis.

Nessa circunstância, a escolha consciente de recorrer a um "porta-voz" para transmitir tais conteúdos demonstra que a pessoa não apenas teve a oportunidade de se abster de interações com aquele contexto, mas deliberadamente escolheu manter-se informada, mesmo que por meios indiretos.

É certo que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei, conforme determina a Constituição Federal. Contudo, essa garantia não pode ser usada como justificativa por quem, mesmo escolhendo não integrar um grupo de diálogo onde seu nome certamente será mencionado, opta por obter informações por meio de terceiros.

Ao se valer de um intermediário que, por sua natureza, não exercerá a defesa do suposto ofendido ou filtrará adequadamente as mensagens, mas tão somente retransmitirá o teor das alegadas ofensas, a pessoa abre mão de qualquer barreira protetiva.

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Essa escolha, feita de forma conscientemente deliberada, reforça a aplicação da Zona Livre de Ofensas, uma vez que a exposição voluntária ao conteúdo adverso caracteriza autolimitação à alegação de dano moral. Assim, não há como justificar a reparação civil ou a responsabilização criminal em tais hipóteses, sob pena de incentivar a judicialização abusiva e desvirtuar o sentido do ordenamento jurídico no que tange à convivência em ambientes de comunicação social.

Assim, os odiosos prints de conversas e os corriqueiros encaminhamentos de mensagens esbarrariam na teoria da zona livre de ofensas, pois a exposição decorre de uma escolha pessoal de se informar sobre o conteúdo do grupo. Não há justificativa plausível para deixar de participar de um grupo, quando se sabe que seu nome será inevitavelmente objeto de pauta.

Defendemos, inclusive, que a responsabilidade penal e civil recaia sobre quem transmitiu as mensagens, pois ao agir dessa forma, essa pessoa incentivou aquele que escolheu se manter alheio ao conteúdo do grupo a propor ações judiciais temerárias.

Em algumas situações, para evitar prestar contas em um ambiente de diálogo como o WhatsApp, receber críticas sobre sua gestão ou responder a cobranças legítimas, certas pessoas — mesmo ocupando cargos que exigem transparência, como o de síndico — escolhem não participar do grupo.

Em cargos desse tipo, a pessoa naturalmente se torna uma vitrine e estará sujeita a críticas e exigências. Se escolhe deliberadamente não participar do ambiente de diálogo, não poderá, posteriormente, reclamar de dano moral ou alegar ter sido vítima de calúnia, injúria ou difamação, segundo nosso entendimento. Pensar de forma contrária, data venia, equivaleria a prestigiar condutas contrárias ao ordenamento jurídico.

Mais ainda: a pretexto de assegurar o exercício das garantias constitucionais da legalidade estrita, do direito à imagem, à privacidade e à honra, viabiliza-se, em verdade, que pessoas se ocultem para não responder às ações e omissões de que se encontram obrigados, e, ainda assim, tenham o direito de ação resguardado, o que fere o princípio da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações jurídico-processuais e traduz violação ao princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza (nemo auditur propriam turpitudinem allegans).

Assim, por exemplo, um síndico que decide, por livre escolha, não participar de um grupo do condomínio que administra, não pode alegar dano moral por ter sido chamado de incompetente, palhaço, ridículo, ditador, entre outros termos. Isso porque ninguém inicia um diálogo com tais ofensas de imediato; há um contexto, uma conversa prévia. Caso estivesse presente, ele poderia, desde o início, justificar suas ações ou omissões, evitando que a discussão evoluísse para ataques pessoais.

A participação em grupos desse tipo representa, na verdade, uma oportunidade de responder a críticas ao seu trabalho. Nesse contexto, as pessoas assumem um consentimento tácito em tolerar um nível maior de liberdade de expressão do que seria aceitável em outras situações. Trata-se de uma zona livre de ofensas, um ambiente democrático onde todos os participantes podem expor sua versão dos fatos e discutir propostas para o bem do coletivo.

Ao optar por não participar de diálogos abertos, como grupos condominiais de WhatsApp, a pessoa abdica da oportunidade de se defender prontamente e de demonstrar que as alegações feitas ali são infundadas. De acordo com os brocardos jurídicos, “o direito não socorre aos que dormem” e “a ninguém é dado comportar-se de forma contraditória”, quem escolhe permanecer fora de um ambiente comunicacional, mesmo que polarizado, mas aberto à sua participação, não pode depois bater às portas do Judiciário buscando indenização por dano moral, alegando ofensa da qual poderia ter se defendido prontamente. O Judiciário é, e deve permanecer, a última ratio.

As interações em redes sociais demandam cautela judicial ao delimitar o que deve ser tutelado pelo Direito e o que deve ficar a cargo da Moral e do bom senso. Afinal, ao permitir que ofensas permaneçam em uma zona regulada pela Moral, o Direito preserva sua função e evita a proliferação de processos judiciais em conflitos interpessoais e sociais que não afetam direitos fundamentais.

Ao aplicar a Teoria da Zona Livre de Ofensas em casos como os discutidos acima, o TJDFT reafirma seu compromisso com uma interpretação jurídica que privilegia a razoabilidade, o bom senso e a proporcionalidade, adaptando a aplicação do Direito à complexidade das interações sociais modernas. Essa postura evita a judicialização excessiva e contribui para um Judiciário mais eficiente e sintonizado com a realidade contemporânea.

Destarte, a Teoria da Zona Livre de Ofensas oferece um interessante paradigma para o tratamento das interações em grupos e redes sociais como o WhatsApp, ajustando os limites da liberdade de expressão aos contextos virtuais em que os indivíduos escolhem ou não participar. Se, por um lado, não se pode forçar ninguém a integrar um ambiente do qual não deseje fazer parte, por outro, essa escolha não pode ser utilizada como escudo para vingança privada, represálias ou o ajuizamento de ações temerárias.


  1. FRITZ, Karina Nunes. Dentro do círculo familiar há uma "zona livre" para ofensas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/german-report/305037/dentro-do-circulo-familiar-ha-uma--zona-livre--para-ofensas>. Acesso em 11/11/2024.

  2. "Art. 1: A dignidade do homem é inviolável. Respeitá-la e protege-la é dever de todos os poderes estatais". "Art. 2: “Todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não viole os direitos de outrem, a ordem constitucional ou os bons costumes".

  3. OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. "Zona Livre para Ofensas" e as Redes Sociais. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/depeso/334928/zona-livre-para-ofensas--e-as-redes-sociais>. Acesso em 11/11/2024.

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Sobre o autor
Leonis de Oliveira Queiroz

Mestre em Regulação e Políticas Públicas (Universidade de Brasília - UNB). Pós-graduado em Direito Público. Graduado em Direito e em Segurança da Informação. Ex- Conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal COPEN/DF. Servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência). Advogado licenciado. Autor de livro e diversos artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Leonis Oliveira. Teoria da zona livre de ofensas segundo o TJDFT. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7810, 18 nov. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/111729. Acesso em: 19 nov. 2024.

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