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A esdrúxula Medida Provisória nº 415/2008

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6.Violação de princípios constitucionais.

Além desses aspectos fáticos, há inconstitucionalidades flagrantes na citada norma, pelo que se encontra eivada de nulidade ex tunc.

Sem adentrar na análise dos requisitos de relevância e urgência para edição de Medida Provisória (artigo 62 da CF), matéria sobre a qual o Excelso Pretório ainda mantém posicionamento oscilante, é de se notar que a MPV em análise afronta a vários princípios constitucionais.

Inicialmente, constata-se a lesão do princípio da razoabilidade - adequação aos meios e fins admitidos pelo texto constitucional, sob o aspecto de necessidade e exigibilidade (artigo 5º, inciso LIV, da Carta Política) - em razão do caráter substantivo que deve ser conferido a cláusula do "due process of law". Como assinalado pelo ilustre Ministro CELSO DE MELLO, "a essência do ´substantive due processo of law´ reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade". [3]

Com efeito, a proibição da venda de bebidas alcoólicas não constitui o meio menos gravoso para obter a redução de acidentes em rodovias.

Ademais, inobservado restou o requisito da proporcionalidade - relação de custo-benefício da medida - vez que o ônus imposto aos proprietários de estabelecimentos é desproporcional ao benefício pretendido. A medida revela-se desproporcional ao dano que causará, posto que, dependendo da natureza da atividade desenvolvida, a vedação de comercializar bebidas alcoólicas poderá acarretar a desativação do estabelecimento comercial.

Ainda deve ser lembrada a extrapolação de competência da Polícia Rodoviária Federal fixada no artigo 144, § 2º, da Carta da República, já anteriormente assinalado.

A MPV, ao incluir as áreas urbanas atravessadas por rodovias na proibição de comercializar bebidas em áreas urbanas, infringe igualmente o artigo 30, I, da Carta Política, que fixa a competência exclusiva do município de legislar em matérias que tenham vinculação com o interesse local. CELSO RIBEIRO BASTOS assinala que "os interesses locais dos Municípios são os que atendem diretamente as suas necessidades imediatas e, indiretamente, em maior ou menor repercussão, com as necessidades gerais." [4]

Cada Município tem definido em lei própria o limite de sua circunscrição territorial e o perímetro urbano de sua sede. No perímetro urbano das cidades, a faixa de domínio das rodovias federais ou estaduais são apenas confrontantes, tanto que, por medidas óbvias de segurança, devem estar separadas por canteiros ou obstáculos das vias públicas locais, cujos acessos diretos somente são permitidos através de trevos ou vias próprias.

Referida proibição da MPV menospreza a autonomia dos Municípios em contrariedade ao princípio de reserva legal do federalismo brasileiro, o que torna mais que atual a lição de ALÉXIS DE TOCQUEVILLE quando esclarece que "é na comuna que reside a força dos povos livres. As instituições municipais estão para a liberdade como as escolas primárias estão para a ciência: põem-na ao alcance do povo. Sem instituições comunais, uma nação pode dar-se um governo livre, mas não tem o espírito de liberdade". [5]

Outro aspecto a ser considerado é o malferimento do princípio da isonomia (artigo 1º da Constituição Federal), vez que a MPV, ao impedir a venda de bebidas alcoólicas às margens das rodovias federais, trata de forma desigual os comerciantes ali situados e os que possuem estabelecimento que comercializam tais produtos na mesma cidade, mas fora da faixa de domínio de rodovia federal ou em local contíguo com acesso direto à rodovia.

Apesar da dicção dos artigos 1º e 170 da Lei Maior, garantir o livre exercício da atividade econômica, o Estado, como regulador desta atividade, pode restringir e impor limitações ao seu exercício, desde que respeitados outros direitos constitucionais.

Neste contexto, a MPV violou as liberdades individuais e infringiu os princípios constitucionais da livre iniciativa, da livre concorrência, da segurança jurídica e do direito de propriedade (artigo 5º, caput e inciso XXXVI), bem como deixou de observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.


8.Manifestações do Judiciário

O Poder Judiciário, ante todas estas violações a princípios constitucionais, mais uma vez cumpriu sua missão institucional, concedendo invariavelmente liminares com fundamento nas infringências constitucionais em que incorreu a Medida Provisória nº 415/2008, das quais, a título meramente ilustrativo, alinhamos as seguintes.

"No choque entre o poder de polícia do estado, traduzido na capacidade de limitar o exercício de uma atividade, no caso comercial, materializado na venda de bebidas alcoólicas e o direito adquirido de o comerciante transacionar com seu estoque de bebidas, aliado ao direito, erigido a norma constitucional, do livre exercício de qualquer atividade econômica fico, no momento, com o princípio do direito adquirido e do livre exercício de qualquer atividade econômica, freando o poder de polícia, a fim de evitar que, sob o seu manto o Estado, mesmo carregando sua atividade de bons propósitos, no sentido de evitar acidentes nas rodovias (federais), vá além desse poder, para ferir princípios que ordem constitucional adotou". (Desembargador Federal VLADIMIR SOUZA CARVALHO, Tribunal Regional Federal da 5ª Região, Liminar em Agravo de Instrumento em Manda de Segurança Coletivo, Processo 2008.05.006658-9);

"Todavia, entendo que a solução encontrada pelo Governo Federal através da Medida Provisória nº 415, de 21/01/2008 é inconstitucional por violar, a uma, o princípio da livre iniciativa e, a duas, por inviabilizar a atividade das empresas, além de reconhecer e comprometer a competência e a capacidade do Poder Público para coibir a condução de veículos automotivos por indivíduos alcoolizados. É, em última análise, uma declaração de incapacidade da administração, a não se dizer uma síndrome da incompetência do poder público, com a falência progressiva dos seus órgãos públicos, de combater e fiscalizar a prática de condutas ilícitas, ainda que de natureza administrativa". (Juiz Federal ALFREDO FRANÇA NETO, 30ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.04.000469-4);

"Verifica-se que a União, em verdadeira confissão de insuficiência de meios fiscalizadores, tentou através de MP 415/08 encontrar uma fórmula mágica de proibir os excessos cometidos por motoristas no uso de bebidas alcoólicas e, numa forma desmedida impôs, não aos condutores de veículos, mas sim aos comerciantes, o ônus de fiscalizar as rodovias federais" (Juíza Federal LILEA PIRES MEDEIROS, 22ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança, Processo 2008.51.01.011917-3);

"A legislação ora impugnada mostra, ao revés, todos os sinais falaciosos típicos da denominada "legislação de emergência" em que a última preocupação efetiva é a de tentar resolver o problema que se está a enfrentar via legislativa, sendo o propósito mais imediato, o de simplesmente dar-se uma satisfação qualquer e imediata à sociedade, e assim, fugir o Administrador ou o Legislador às suas responsabilidades, inclusive pelas omissões em que até então incorreu". (Juiz Federal ALBERTO NOGUEIRA JÚNIOR, 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.01.012099-0);

"E, no caso concreto, tenho que a MP 415, de 21 de janeiro de 2008 afronta os requisitos da necessidade ou exigibilidade e o da proporcionalidade em sentido estrito........... Ou seja, por um motivo ou por outro "necessidade ou exigibilidade ou proporcional - a MP 415/2008 afronta o princípio da razoabilidade, que se inscreveu expressamente no inciso LIV, artigo 5º, da CRFB/88, que vem a ser a cláusula do due procecess of law, pois a razoabilidade das leis se torna exigível por força do caráter substantivo que se deve dar à cláusula". (Juíza Federal VELLÊDA BIVAR SOARES DIAS NETA, 24ª Vara Federal do Rio de Janeiro, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo, Processo 2008.51.01.012082-5);

"Ao invés de intensificar a fiscalização aos motoristas que trafegam em rodovias federais, penalizando aqueles que fossem pegos conduzindo veículo automotor sob efeito de álcool, possibilitando que o Judiciário os julgassem por suas atitudes criminosas, preferiu o Executivo Federal, através de MP 415/2008, combater o mal, não pela raiz, mas pelo caminho supostamente "mais fácil", embora de contestável eficácia, penalizando aos que se dedicam à venda varejista e o oferecimento para o consumo de bebidas alcoólicas, repito, de forma lícita, pois a venda de bebidas não configura ilícito, tão-somente sua utilização quando na condução de veículo automotor". (Juiz Federal NAIBER PONTES DE ALMEIDA, 1ª Vara Federal do Distrito Federal, Liminar em Mandado de Segurança Coletivo);

"A constatação de que os direitos à vida, saúde e integridade física dos cidadãos preponderam sobre os direitos da livre atividade econômica previsto no artigo 170 da Constituição da República não basta para inibir o controle de abusos legislativos contidos na espécie, e não afasta a necessidade de a matéria ser tratada e regulada pelas casas legislativas, com critérios da razoabilidade, como o prazo para a adaptação dos estabelecimentos normas restritivas" (Juiz Federal FREDERICO VALDEZ PEREIRA, 1º Vara Federal de Cascavel, Liminar em Mandado de Segurança, Processo 2008.80.00.000506-3).

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9. Conclusão.

O primeiro aspecto a ser salientado é que o foco da MPV encontra-se totalmente equivocado, pois, em vez de punir os motoristas alcoolizados na forma prevista no Código de Trânsito Brasileiro, penaliza os comerciantes que apenas exercem uma atividade lícita e aos quais não cabe fiscalizar o uso de bebidas alcoólicas pelos clientes.

Mesmo vedados a venda varejista e o oferecimento para consumo de bebidas alcoólicas nas rodovias federais e adjacências, tal medida não impedirá que os mesmos condutores criminosos continuem a dirigir sob a influência do álcool, bastando que levem consigo bebida alcoólica adquirida antes de adentrar nas rodovias federais.

A rigor, a MPV constitui uma solução ingênua e superficial que não ataca o núcleo central do problema de acidentes em rodovias e, por certo, encontra-se fadada ao insucesso. Um exemplo de que o combate à condução de veículos por motoristas alcoolizados não se efetua através de novos atos legislativos nos é concedido pela total inobservância da Lei nº 4.885/1985, do Estado de São Paulo, que fixa que os estabelecimentos comerciais situados nos terrenos contíguos às faixas de domínio do DER somente poderão obter autorização de acesso direto às estradas estaduais se se comprometerem a não vender ou servir bebida alcoólica.

Por certo, a solução da violência nas rodovias passa pela integral aplicação das penas previstas no Código de Trânsito Brasileiro aos motoristas imprudentes, pelo fortalecimento da fiscalização, com o uso de bafômetros e retirada dos motoristas alcoolizados das vias públicas, pela concessão de maiores recursos para a manutenção das estradas e das sinalizações rodoviárias, além de oferecer melhores condições de trabalho para os agentes policiais rodoviários e aprofundar iniciativas que propaguem a conscientização dos condutores de veículos através de campanhas educativas.

Recomendável seria que o Poder Executivo se preocupasse em implementar efetivamente a fiscalização nas rodovias federais dos condutores de veículos que nela trafegarem, e uma vez constatado estarem com taxa de teor alcoólico superior à permitida, aplicar as penalidades previstas em lei. Só assim estar-se-ia coibindo tal prática.

Torna-se imperativo punir aqueles condutores de veículos violam as normas e não criar novas normas que restrinjam os direitos de terceiros, como de todos os passageiros que trafegam pelas rodovias, das comunidades locais e dos próprios comerciantes, posto existirem meios alternativos para se chegar ao mesmo resultado - segurança na rodovias, com menor ônus a direitos individuais.

Talvez consciente de que utilizou a fórmula jurídica equivocada, posto que atentatória à Carta Magna brasileira, busca agora o Governo Federal o caminho correto. Como noticia a imprensa ("O Globo", de 01.02.2008), o Ministério da Justiça está elaborando anteprojeto de lei, pelo qual pretende elevar a multa máxima por infração de trânsito de R$ 572,40 para R$1.575,00. Por outro lado, o motorista que for flagrado, por 2 vezes, em velocidade 50 km/h acima da permitida sofrerá multa de R$ 1.575,00, suspensão da carteira e pena de prestação de serviços à comunidade. Em caso de crimes de trânsito, o juiz poderá, no momento da condenação, calcular a multa a partir do valor do veículo. E, no que tange à embriaguez, pretende-se baixar de 6 decigramas para 3 decigramas a tolerância de álcool no sangue.

Tais alterações legais, se aprovadas, alinham-se em perfeita harmonia com o texto constitucional e, por certo, irão contribuir para a redução de acidentes rodoviários.

Contudo, caso a Medida Provisória nº 415/2008 seja convertida em lei, o que se admite apenas para argumentar, posto que diversos Parlamentares já se manifestaram contrários a tal ato normativo, teremos a esdrúxula constatação de que

"o motorista dirige alcoolizado e o comerciante é punido".


10.Referências Bibliográficas.

[1]MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 13ª ed., Rio, Ed. Forense, 1993, pag. 250).

[2]HOLANDA, Aurélio Buarque de, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio, Ed. Nova Fronteira, 1986).

[3]STF, Pleno, voto no ADIMC nº 1158, DJU de 26.05.95, pag. 15.154.

[4]BASTOS, Celso Ribeiro, Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Ed. Saraiva, pag. 301.

[5]TOCQUEVILLE, Aléxis de. A democracia na América, 3ª ed., São Paulo, Universidade de São Paulo, 1987, pag. 202.

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Sobre o autor
Claudio Roberto Alves de Alves

Advogado no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Claudio Roberto. A esdrúxula Medida Provisória nº 415/2008. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1756, 22 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11182. Acesso em: 24 nov. 2024.

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