Assunto muito polêmico e ainda não solucionado, enfrentado atualmente pelos doutrinadores, pela jurisprudência e, principalmente, pelos aplicadores do direito no dia a dia forense, diz respeito das conseqüências do descumprimento injustificado da proposta de transação penal, de que trata o artigo 77 e seguintes da Lei n.º 9.099/95.
E, diante da aparente lacuna da Lei 9.099/95, surgiram vários posicionamentos conflitantes a respeito da possibilidade ou não da conversão da pena acordada, em privativa de liberdade, o que despertou-nos o tirocínio jurídico sobre a questão.
TRANSAÇÃO PENAL
Em análise ao artigo 76 da Lei 9.099/95, a Escola Paulista do Ministério Público formulou, sobre o instituto da transação penal, o seguinte conceito: "A transação penal é instituto jurídico novo, que atribui ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública, a faculdade dela dispor, desde que atendidas as condições previstas na Lei, propondo ao autor da infração de menor potencial ofensivo a aplicação, sem denúncia e instauração de processo, de pena não privativa de liberdade".
Não obstante esse posicionamento, algumas considerações devem ser observadas a respeito da faculdade do Ministério público de dela dispor. O instituto da transação penal trata-se de direito subjetivo do infrator, pois estando presentes os requisitos exigidos pela lei, só este pode dele dispor, aceitando ou não a proposta transacional.
Seguindo esse entendimento, escreve Nereu José Giacomolli que "não é faculdade do Ministério Público, mas direito público subjetivo do acusado". (Juizados Especiais Criminais Ed. Livraria do Advogado, pag. 100).
Assim, a faculdade da qual o Ministério Público dispõe, encontra-se regrada na lei, estabelecendo requisitos para o seu oferecimento, não ficando ao livre arbítrio do representante do Ministério Público propor ou não a transação.
Reforçando este entendimento, temos a posição de Ada Pellegrini Grinover, juntamente com outros ilustres juristas, que escreve:
"A primeira leitura do artigo,em sua interpretação meramente literal, sugere tratar-se de pura faculdade do acusador, que poderá preferir não transacionar, ainda que presentes as condições do § 2º do dispositivo.
E essa leitura se coadunaria com a linha de pensamento que vê a discricionariedade regulada como forma de prestigiar a autonomia das vontades e o consenso nas infrações penais de menor potencial ofensivo.
No entanto, permitir ao Ministério Público (ou ao acusador privado) que deixe de formular a proposta de transação penal, na hipótese de presença dos requisitos do § 2º do art. 76, poderia redundar em odiosa discriminação, a ferir o princípio da isonomia e a reaproximar a atuação do acusador que assim se pautasse ao princípio de oportunidade pura, que não foi acolhido pela lei.
Pensamos, portanto, que o poderá em questão não indica mera faculdade, mas um poder-dever, a ser exercido pelo acusador em todas as hipóteses em que não se configurem as condições do § 2º do dispositivo". (Juizados Especiais Criminais, Ed. Revista dos Tribunais, 3ª Edição, pag. 140).
Não obstante a este entendimento, não entendemos como um poder-dever do Ministério Público, mas sim como uma faculdade regrada, pois o instituto da transação penal encontra-se estabelecido em lei, pois estando presentes os requisitos que autorizam a propositura da transação, fica o parquet obrigado a oferecer a proposta, não podendo se omitir.
O saudoso escritor Julio Fabbrini Mirabete acrescenta que:
"Essa iniciativa, decorrente do princípio da oportunidade da propositura da ação penal, é hipótese de discricionariedade limitada, ou regrada, ou regulada, cabendo ao Ministério Público a atuação discricionária de fazer a proposta, nos casos em que a lei o permite, de exercitar o direito subjetivo de punir do Estado com a aplicação de pena não privativa de liberdade nas infrações penais de menor potencial ofensivo sem denúncia e instauração de processo. Essa discricionariedade é a atribuição pelo ordenamento jurídico de uma margem de escolha ao Ministério Público, que poderá deixar de exigir a prestação jurisdicional para a concretização do ius puniendi do Estado. Trata-se de opção válida por estar adequada à legalidade, no denominado espaço de conflito, referente à criminalidade grave". (Juizados Especiais Criminais, Ed. Atlas, 2º ed., pág. 81).
Diante dessas considerações, definimos o instituto da transação penal como sendo instituto jurídico que concede ao Ministério Público a faculdade regrada de propor, nos delitos de menor potencial ofensivo, a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, desde que satisfeitos os requisitos exigidos pela lei, ao infrator, o qual tem a faculdade de aceitar, cumprindo o acordo e extinguindo a punibilidade sem gerar antecedentes criminais, exceto para o caso de nova transação, e caso não cumprindo a proposta transacional, esta será executada na forma da lei (art. 86 da Lei n.º 9.099/95).
TRANSAÇÃO PENAL E SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA - NATUREZA JURÍDICA
Na doutrina, existem várias divergências sobre a natureza jurídica da transação penal. Para alguns, o instituto da transação penal inserido na Lei 9.099/95, antecede o processo, tratando-se de medida despenalizadora, oferecendo ao infrator a oportunidade de transacionar acerca da pena recebida, possibilitando um deslinde rápido ao procedimento, sem reconhecimento de culpa, vale dizer, sem que a decisão homologatória da transação penal possa ser utilizada como título executivo no juízo cível, a fim de se obter um ressarcimento dos danos eventualmente sofridos.
O que merece um comentário mais precisado, é exatamente tratar-se ou não o instituto de "vantagem" concedida ao infrator de "livrar-se do processo", independentemente da sua inocência. Seguindo a opinião do ilustre jurista Maurício Alves Duarte, incrível acreditar que alguém, convencido da sua inocência, aceite, sem o due process of law, onde existe o contraditório, ampla defesa e a produção de provas, a aplicação imediata de pena não privativa de liberdade ou multa, apenas para "livrar-se do processo", assim, pagando o que não cometeu, ou sequer teve participação.
Seguindo esse entendimento, estaríamos diante da verdadeira ditadura do processo, ou seja "ou se submete à pena ou serás processado".
Portando, o referido instituto veio, sem dúvida, com o escopo de desobstruir o Poder Judiciário, mas não deixando de ser uma medida de aplicação de pena, como erroneamente sustentam alguns escritores, pois a transação penal consiste na prestação de serviço à comunidade ou no pagamento de multa, que segundo o art. 44 do Código Penal, tratam-se de penas restritivas de direito. Sendo assim, a transação penal não deixa de ser uma modalidade de pena, ou como queiram alguns, medida despenalizadora, pois a aceitação da proposta, apenas não minora os efeitos de uma possível condenação, mas também, retira a condição de pena.
Noutro vértice a sentença homologatória possui natureza jurídica definitiva, pois, aceitando a proposta, o infrator implicitamente assume a culpa, fazendo com que essa sentença tenha força de sentença imprópria, pondo-se, desde já, fim ao processo com julgamento do mérito, restando apenas, ser executada.
Álvaro Luiz Torrens, ilustre Promotor de Justiça da comarca de Toledo - PR, como bem ressaltou, em suas razões de Recurso Extraordinário, nos autos n.º 033/99 que "por mais que se venha a negar que a sentença homologatória da transação penal tenha caráter condenatório impróprio, deve se ter em mente que o artigo 76, caput, da Lei n.º 9.099/95 trata de aplicação imediata de pena".
CONVERSÃO
O ponto crucial que ensejou a presente pesquisa, está exatamente no caso do descumprimento injustificado das condições estabelecidas na sentença penal. Alguns juristas entendem que a próxima medida a ser tomada seria exatamente o oferecimento de denúncia por parte do representante do parquet.
Em posicionamento diverso, no qual situamos, o próximo passo a ser tomado, diante do não cumprimento injustificado das condições propostas, é exatamente executar a medida já aceita e homologado, convertendo-a em pena privativa de liberdade.
A resistência por parte daqueles que acham inviável a conversão se ampara em algumas considerações, analisadas a seguir.
1-) Pena restritiva de direito fruto da transação penal - mesmo se tratando de pena restritiva de direito, originária de aceitação da proposta transacional, não deixa de ser uma garantia fundamental para quem age com culpabilidade, pois com a transação aceita e homologada pelo infrator, terá ele todas as garantias fundamentais, previstas em lei;
2-) Do devido processo legal - a forma ou o procedimento é emanado da própria lei à apuração das condutas de menor potencial ofensivo, por respeito ao princípio do devido processo legal. Afirmar que não se está observando o devido processo legal no caso de conversão de pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade é negar vigência ao artigo 98, I da Constituição Federal, pois é estabelecida para o infrator a possibilidade de acatamento, ou não, da proposta de transação penal;
3-) Do contraditório e ampla defesa - aceitar ou não a proposta é exercer o contraditório e a ampla defesa, posto que se está a assumir culpa e a renunciar ou desistir de outras garantias constitucionais ou técnica de defesa, aceitar a proposta configura uma boa tática de defesa, porque evita a clausura moral da sentença e os drásticos efeitos que ela acarreta;
4-) Da impunidade - a conversão servirá para afastar a impunidade, pois esta tem sido a sensação do apenado. Caso não for aplicada, seria preciso buscar o jus puniendi através do processo comum, o qual fatalmente ficará suspenso indefinidamente (CPP., art. 366). Punição incerta ou tardia, mais parece ser castigo ou impunidade;
5-) Das normas inerentes ao Estado Democrático de Direito - nos casos que ensejam a conversão, respeita-se totalmente as normas pertinentes ao Estado Democrático de Direito, não só normas adequadas, como também arraizadas no regime jurídico vigente;
6-) Da simples conversão - na verdade a conversão que se pretende quando do descumprimento das condições, não trata-se de simples conversão, mas sim, de medida amparada em nosso ordenamento jurídico, pois com a aceitação da proposta, por mais que se tente resistir, a homologação da transação é uma condenação, pois há uma aplicação imediata de pena restritiva de direito, conforme artigo 76 da Lei n.º 9.099/95.
O pouco descaso por parte daqueles que movimentam a máquina jurisdicional, aceitando, e posteriormente não cumprindo o que foi estabelecido pela sentença homologatória, sem dúvida, é mostra de verdadeiro descaso, não só para com a ação da Justiça, mas também, para com os instrumentos de sua aplicação legal.
Toda a movimentação do Poder Judiciário, para que estabeleça condições, homologue, e com a inércia injustificada do infrator no cumprimento do que foi estabelecido, para posteriormente, fazer com que o Ministério Público ofereça denúncia, é posição totalmente contrária ao que está positivado em nosso ordenamento jurídico, pois toda a providência jurisdicional penal aplicada até então (oferecimento aceitação e homologação), tornou-se ineficaz, e afronta, sem sombra de dúvida, o critério da celeridade, estampado nos arts. 2º e 62 da Lei 9.099/95.
O desafio dos infratores apenados, por conseguinte, não gera a sensação de impunidade apenas neles e nos demais infratores, e sim, gera em toda a sociedade, um péssimo costume e com certeza, mau exemplo à imagem da Justiça, difamando ou depondo contra os bons resultados até então conquistados com o advento da Lei 9.099/95. Dessarte, acaba criando um descrédito até mesmo para com a própria austeridade do Poder Judiciário.
A conversão defendida nesse trabalho atuaria como autêntica profilaxia, fazendo com que os infratores cessem seus comportamentos dispersivos e insubordinados. Perderiam eles sua arrogância e senso de desafio e, além disso - o mais importante, daria bom exemplo a eventuais inadimplentes e serviria de verdadeira medida de prevenção geral.
Os infratores punidos, pelo menos, fazeriam com que se curvassem diante do mais e, quem sabe, até fugiria de outras atividades delinqüenciais, inclinando-se novamente para o bem. Não sendo punidos pelo delito menor, para o qual a pena foi transacionada, irão se sentir destemidos impunes, e, certamente, não hesitarão em praticar delito maior e mais grave.
Acerca da conversão, a matéria está pacificando-se entre os autores que escrevem sobre o assunto. Dentre eles, Júlio Fabrini Mirabete ensina que: "Mesmo no silêncio da Lei n.º 9.099/95, a pena restritiva de direitos aplicada no Juizado Especial, quer por condenação, quer por transação, pode ser convertida em pena privativa de liberdade. Aplicam-se os arts. 45 do Código Penal e 181 da Lei de Execução Penal..." (In Juizados Especiais Criminais, Atlas, 2ª ed., 1997, pg. 133).
O posicionamento é corretíssimo, salvo quanto à observação de que a Lei 9.099/95 é silente acerca do assunto. A bem da verdade a referida lei não silenciou, muito pelo contrário, contemplou de modo expresso e cogente que:
Artigo 86. "A execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direitos, ou de multa cumulada com estas, será processada perante o órgão competente, nos termos da lei". Grifamos.
A Lei 9.099/95, não contemplou expressamente a maneira ou critério de conversão da pena restritiva de direito em pena privativa de liberdade, todavia, delegou taxativamente essa atribuição ao órgão competente, nos termos da lei. Disso emerge-se saber qual seria este órgão competente? Não é preciso muito esforço de pesquisa para responder a dita indagação. O Juízo da Execução, nos termos da Lei 7.210/84, como órgão integrante do Poder Judiciário, sem sombra de dúvida, é o órgão competente.
Ao recomendar que a execução das penas se dê nos termos da lei, resta concluir-se que os artigos 44, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n.º 9.714/98, e art. 181, da Lei 7.210/84 são os únicos que tratam da matéria de pena de prestação de serviços à comunidade, pena esta, como já visto, é modalidade de pena restritiva de direito, portanto, sendo os únicos aplicáveis à espécie, ora abordada.
Novamente utilizando-se da bem elaborada obra de Ada Pellegrini Grinover, em parceria com outros renomados juristas, o seu posicionamento não diverge, escrevendo que:
"Dúvida poderia surgir quanto à possibilidade de a pena restritiva resultante de transação na fase preliminar poder ser convertida em pena privativa, em virtude de o art. 5º, LIV, da Constituição Federal, afirmar ´ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal´.
Mas essa conversão é admissível porque foi a própria Constituição Federal que, no art. 98, I, em norma especial e por isso preponderante sobre a de caráter geral, admitiu expressamente a transação..." E, acrescenta que: "Nem se diga que essa conversão infringiria o princípio da legalidade, por não estar prevista na Lei 9.099 a conversão da pena restritiva de direitos em pena privativa de liberdade. A previsão legal existe na Lei de Execuções Penais, à qual o legislador se refere no art. 86" (In Juizados Especiais Criminais, Comentários à Lei 9.099 de 26.09.1995, Ed. RT, 1996, 1º ed., pg. 173).
Dissertando sobre o tema, escreve Luiz Flávio Gomes, in Suspensão condicional do processo, Ed. Revista dos Tribunais, 1º ed., 1995, págs. 139/142, que:
"O Ministério Público, diante de uma infração de menor potencial ofensivo, nos termos do art. 76, poderá propor a aplicação imediata de pena alternativa. Em lugar de lutar pela aplicação de pena (de prisão ou de multa integral), conta com via alternativa. No instante em que propõe essa via alternativa, está renunciando à via normal. A base de tudo é o princípio da oportunidade regrada. Regrada porque o órgão acusatório só pode atuar dentro das margens legais, fixadas e, ademais, tudo conta com controle judicial (v. art. 76, § 3º)
Conformidade penal e processual. Nos dois institutos sub examine a lei requer a conformidade (anuência, aquiescência, aceitação) do autor do fato. A diferença reside no seguinte: no juizado criminal dá-se a denominada conformidade penal e processual, isto é, o interessado não só está abrindo mão de alguns direitos e garantias fundamentais, senão também está conforme a aplicação imediata de uma sanção alternativa anglo-saxônico, isto é, o autor do fato, no instante em que aceita a aplicação imediata de pena alternativa, está assumindo culpa (mesmo porque nulla poena sine culpa). Não se trata do plea bargaining que tem por base o princípio da oportunidade pura e faculta transação muito mais ampla. A transação no juizado (assim como na suspensão do processo) tem limite, está regrada.
Mas está presente a não estigmatização derivada do processo e da sentença penal condenatória. É que essa condenação é imprópria (não gera reincidência, maus antecedentes, rol dos culpados etc.).
Natureza do ato jurisdicional. O ato jurisdicional que defere a transação no juizado criminal é uma verdadeira sentença (v. art. 76, § 5º). Dela cabe apelação. E é condenatória, porém, imprópria, porque não gera seus efeitos naturais (reincidência, rol dos culpados, antecedentes, execução civil etc.), embora seja suficiente para criar o estatus de culpado, nos termos do artigo 5º, LVII da CF.
A situação é mais complicada no juizado criminal (hipótese de aplicação imediata de pena alternativa em que a aceitação implica culpa). Mas mesmo assim, tampouco há violação ao princípio constitucional da presunção de inocência. Temos que nos valer, aqui, da doutrina da Corte Constitucional espanhola, que em 04.10.89, decidiu: "A conformidade (anuência, aceitação, transação) alcança, por si só, a entidade suficiente para destruir o direito à presunção de inocência", desde que manifestada de forma livre, consciente, inequívoca, em presença de defensor (v. Puente Segura, 1994. p. 114, nota 04). A transação, ademais, é estratégia de defesa (integra a ampla defesa de que fala a Constituição) e deita suas raízes na autonomia da vontade. Tudo se celebra, urge enfatizar, dentro do devido processo legal. Embora a transação implique o recuo ou a renúncia de algumas garantias, é inegável que ela mesma está cercada de garantias. Por isso que é constitucionalmente válida, independentemente da invocação do disposto no art. 98, I (que é taxativo).
Em artigo publicado na Revista dos Tribunais, em seu volume 740, pág. 469 - Dos Juizados Especiais Criminais: Reflexões Atuais, o Procurador de Justiça Jaques de Camargo Penteado, traz as seguintes lições:
"...não se pode, pois, negar ao Juiz o direito-dever de liminarmente, confrontar os fatos constantes da investigação prévia com a narrativa da peça vestibular. Sem controle que tal, teria o Ministério Público o inadmissível arbítrio de, carente qualquer interesse socialmente defensável, sujeitar inocentes aos transtornos, sacrifícios e azares da ação penal" (Franceschini, J.L. V. Azevedo. Jurisprudência Criminal do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 1º ed. São Paulo: Universidade de Direito. 1975, v. 2º, p. 419).
E conclui:
"Imagine-se a insegurança generalizada se um simples requerimento ou proposta desprovidos de peças de informação que os amparassem pudessem submeter o cidadão ao foro penal. Nem mesmo a celeridade almejada justificaria a recepção de inicial ou discussão de proposta de transação sem base em provas razoáveis do fato e de seu autor". E, copia: "Sem que o fumus boni iuris ampare a imputação, dando-lhe os contornos de imputação razoável, pela existência de justa causa, ou pretensão viável, a denúncia ou queixa não pode ser recebida. Claro que o Juiz não realiza esse controle inicial de modo pleno, como no caso da pronúncia, uma vez que vai decidir segundo o estado do processo, dispondo quase que só de elementos informativos. O que lhe cumpre, portanto, é verificar se, com os dados colhidos na informatio delicti ou procedimento preliminar, possibilidade existirá, a final, de sentença condenatória". (Marques, José Frederico. Tratado de Direito Processual Penal. 1ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, v. 2°., p. 74.). No mesmo sentido doutrinadores acatados. (Espíndola Filho, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Edição histórica, 1ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976, v. 1°. , p. 202. Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo Penal. 5ª ed. Bauru: Jalovi, 1979, v. 1°. , p. 202. FRAGOSO, Heleno Cláudio, Jurisprudência Criminal. 3ª ed. São Paulo: José Bushatsky, 1979, v. 1º., p. 430).
Socorremos uma vez mais aos ensinamentos de Ada Pellegrini que, sobre a natureza jurídica da homologação da transação penal, sustenta que: "Trata-se de sentença nem condenatória nem absolutória, mas simplesmente de sentença homologatória de transação penal, com eficácia de título executivo. É exatamente o que ocorre no campo civil: a homologação da transação não indica acolhimento nem desacolhimento do pedido do autor, mas sentença que, homologando a vontade das partes, constitui título executivo judicial (art. 584, III, CPC)" (Juizados Especiais Criminais, Ed. RT, p. 134).
Afrânio da Silva Jardim, por sua vez, acertadamente, afirma que: "...o Ministério Público, ao oferecer proposta de aplicação de pena não privativa de liberdade, está exercendo a ação penal, ainda que de maneira informal" (Os Princípios da Obrigatoriedade e da Indisponibilidade nos Juizados Especiais Criminais, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 04(48):04, nov. de 1996).
Também Marino Pazzaglini Filho ensina que:
"...Sendo assim, a natureza jurídica da sentença homologatória da transação penal é condenatória. Primeiramente, declara a situação do autor do fato, torna certo o que era incerto. Mas além de declarar, cria uma situação nova para as partes envolvidas, ou seja, cria uma situação jurídica que até então não existia. E ainda impõe uma sanção penal ao autor, que deve ser executada.
A sentença homologatória tem efeitos dentro e fora do procedimento, isto é, tem efeitos processuais e materiais, produz efeitos ex nunc, para o futuro. Encerra o procedimento e faz coisa julgada formal e material, impedindo novo questionamento sobre os fatos" (Juizado Especial Criminal - 2ª ed., Ed. Atlas, 1997, p. 57).
A proposta do Promotor de Justiça para aplicação imediata de pena não privativa de liberdade, aceita pelo autor da infração e por seu defensor, e homologada judicialmente, tem natureza de sanção penal em sentido estrito. Portanto, há de se buscar, como razoável critério de interpretação, alguma forma de equiparação da proposta à denúncia, como meio de se assegurar uma forma especialíssima de procedimento legal e o conseqüente resguardo do due process of law.
A conversão, portanto, é juridicamente possível de aplicação, a luz do que dispõe o art. 44, § 4º do Código Penal (já o previa o antigo art. 45), combinado com o artigo 181, da Lei 7.210/84, ambos combinados com o artigo 86, da Lei n.º 9.099/95, amparado pelo artigo 98 da Magna Carta.
Os Tribunais Estaduais, de toda parte, vêm decidindo, corretamente, pelo cabimento da conversão postulada. Veja-se:
"JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS - Proposta e aceitação de aplicação de pena restritiva de direito - Descumprimento pelo infrator - Conversão em pena privativa de liberdade - Admissibilidade - Inteligência do art. 181 da Lei 7.210/84 - Inaplicabilidade da Lei 9.268/96 - Voto vencido.
Ementa da Redação: A pena restritiva de direito, decorrente de proposta e aceitação pelo infrator, perante o Juizado Especial Criminal, pode ser convertida em privativa de liberdade quando ocorrer o seu descumprimento injustificado, consoante o art. 181 da Lei 7.210/84, não se aplicando, ao caso, a Lei 9.268/95, que proíbe a conversão da pena de multa em pena privativa de liberdade" (HC 97.00186 - j. 1º.10.97 - Rel. Des. Dimas Fonseca - TJRO, in RT 749/738-41).
"A decisão que homologa a transação penal, proposta pelo Ministério Público e aceita pela paciente, tem natureza de sentença e, assim, só poderá ser alterada por decisão de recurso competente.
Tendo as partes desistido do recurso legal, a r. sentença fez coisa julgada.
"Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante de execução da r. sentença, mas nunca hipótese de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo" (TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador D´Andrea, j. 20.11.97, v.u. - Apud RT 756/585).
"TRANSAÇÃO PENAL - Homologação por sentença - Acordo não cumprido pelo autor do fato - Promoção de execução pelo Ministério Público - Admissibilidade.
A sentença homologatória de transação penal, realizada nos termos do art. 76 da Lei 9.099/95, tem eficácia de título executivo. Por isso, não cumprindo o acordo pelo autor do fato, só resta ao Ministério Público executá-lo através de ação própria, sendo incabível o oferecimento de denúncia para a instauração de ação penal" (TACrimSP - HC 322.106/4 - 11ª Câm. - Rel. Juiz Xavier de Aquino, j. 25.05.98 - in RT 756/583-5).
"Se o paciente não pagou a multa imposta, estamos diante de execução da r. sentença, mas nunca hipótese de outra denúncia, ainda mais no mesmo processo" (TACrimSP - HC 314.726/9 - São Paulo - Rel. Juiz Salvador D´Andrea, j. 20.11.97, v.u.).
A Turma Recursal do Juizado Especial Criminal do Distrito Federal, no processo n.º 73/98, decidiu:
"PROCESSO PENAL - TRANSAÇÃO - PENA RESTRITIVA DE DIREITOS - NÃO CUMPRIMENTO. Realizada transação penal entre o Autor do fato e o Ministério Público, sendo aplicada pena restritiva de direitos consistente na prestação de serviços gerais à comunidade, desde que não cumprida, pode ser convertida em pena de detenção. Abolida foi apenas a conversão da multa não paga em pena privativa de liberdade, quando se remete o apenado ao processo executivo civil" (Acórdão 105951, j. 14.04.98 - Rel. Juiz HAYDEVALDA SAMPAIO, DJDF 15.06.98, p. 103 - in RT 755/674).
Extrai-se do contexto desta veneranda decisão Colegiada, a posição da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal, do seguinte teor:
"...uma vez descumprida injustificadamente a pena restritiva de direitos aplicada, a conversão deverá ser feita para pena privativa de liberdade. Cabe ressaltar que segundo assentada jurisprudência é vedado ao magistrado inovar a transação já homologada e receber denúncia formulada contra o autor do fato" (Apud Processo n.º 1041183/5 - DJE 12.3.97, part. II, p. 331).
O entendimento mais recente do STJ é no mesmo sentido:
"Transação Penal/Lei 9099/95, art. 76-Distinção quanto à SUSPENSÃO DO PROCESSO - Descumprimento de PENA ALTERNATIVA - Conversão em PENA RESTRITIVA DE LIBERDADE - Admissibilidade. Criminal. Juizado Especial Criminal. Transação. Pena Alternativa. Descumprimento. Conversão em penal restritiva de liberdade. Legitimidade. 1. A transação penal prevista no artigo 76, da Lei n.º 9099/95, distingiu-se da suspensão do processo (artigo 89), porquanto, na primeira hipótese faz-se mister a efetiva concordância quanto a pena alternativa a ser fixada e, na segunda, há apenas uma proposta do parquet no sentido de o acusado submeter-se não a uma pena, mas ao cumprimento de algumas condições. Deste modo, a sentença homologatória da transação tem, também, caráter condenatório impróprio (não gera reincidência, nem pesa como maus antecedentes, no caso de outra superveniente de infração), abrindo ensejo a um processo autônomo de execução, que pode - legitimamente - desaguar na conversão em pena restritiva de liberdade, sem mau trato ao princípio do devido processo legal. É que o acusado, ao transacionar renúncia a alguns direitos perfeitamente disponíveis, pois, de forma livre e consciente, aceitou a proposta, ipso facto, a culpa. 2. Recurso de habeas corpus improvido (STJ - HC 8198 - Goiânia - 6ª T. - Rel: Min. Fernando Gonçalves - j. em 08.06.99 - DJU I, 01.07.99. pág. 211). No mesmo sentido o STJ, Resp 172.891 - SP - 6ª T. DJU 02.08.1999 (Apud Revista Jurídica - 263 - SET/99).
A Constituição Federal, como visto, oferece parâmetro para a medida postulada (CF, art. 98, I), porque foi através dela que se criou um novo procedimento para as infrações de menor potencial ofensivo, ou seja, foi a própria Carta Política quem estabeleceu o norte para o novo tipo do devido processo legal.
Dizer que a conversão refoge do devido processo legal é olhar apenas para um lado da moeda, pois quando o apenado cumpre a pena proposta e aceita, também estaria "pagando" uma pena sem o clássico e tradicional devido processo legal (denúncia, defesa, instrução, sentença, etc.).
Não parece lógico e sensato aceitar o novo procedimento quando há adimplemento pelo apenado, como sendo alicerce do devido processo legal, e, a contra-senso, não aceitá-lo no caso de inadimplência injustificada do infrator.
Negar que o procedimento da execução autônoma da transação penal reveste-se do devido processo legal, é argumento que nega vigência às disposições cogentes do art. 98 da Magna Carta, do art. 181, da LEP e do art. 44, § 4º (antigo art. 45, II). Além do mais, fácil contrapor-se a esse argumento ressaltando-se que quando o apenado aceita a transação penal e a cumpre, ele também está a receber uma pena (acordada, aceita e homologada) sem denúncia, sem ampla defesa ou contraditório, sem instrução processual e sem sentença condenatória, só que neste caso ninguém cogita da falta de observância do devido processo legal. É irrito que um argumento tenha valor para uma determinada situação, e para outra similar não. Significa o mesmo que não se atentar para o outro lado da moeda.
O Promotor de Justiça da Comarca de Silvânia - GO, em artigo publicado na Internet, salienta que:
"...a execução da pena transacionada é questão de ordem pública, a qual poderá ficar totalmente prejudicada pela inviabilidade de sua aplicação e posterior execução de tal transação penal, incentivando a impunidade e o incremento da prática da infração de menor potencial ofensivo, pelo que não podemos autorizar, absurdamente, a impunidade daqueles que desprezam as instituições desta Pátria, principalmente a Justiça".
O adimplemento dos acordos (transação penal) firmados perante os Juizados Especiais Criminais é altíssimo. Em várias comarcas do Estado do Panará, o percentual chega a superar 90% (noventa por cento); o sucesso é acima dos 80% (oitenta por cento) em Curitiba e porque não no país todo.
Assim, para os poucos casos de inadimplência, peculiar dos infratores reticentes ao respeito da ordem jurídica e democrática, por questão, às vezes, de crasso desprezo e ignomínia para com a ação da própria Justiça, quase que em patente desafio à autoridade do Poder Judiciário, a possibilidade da conversão, ora defendida, serviria para aniquilar qualquer sensação de impunidade e, mais do que isso, a conversão representaria o sucesso total da inovadora da Lei 9.099/95 que tantos benefícios e avanço trouxe, conseqüentemente, esse sucesso atingiria a casa dos 100% (cem por cento) de pleno êxito e eficiência.
De outra parte, na quase totalidade dos casos de inadimplência, a não conversão implicaria gritante impunidade. Basta ecoar nos ouvidos dos infratores que o descumprimento da pena acordada não lhes traz qualquer conseqüência jurídica mais séria, o percentual de inadimplência certamente se elevará e, com o passar dos anos, poderá até chegar a nível que torne inviável o espírito, sentido e alcance da lei inovadora. É o risco de se voltar à moda antiga, estigmatizado pelas agruras do "velho" processo penal, para solucionar fatos que a lei considera de menor significância jurídica ou, na linguagem da lei, de menor potencialidade ofensiva.
Não se pode, pois, negar vigência aos dispositivos reguladores da matéria (CF, art. 98; LEP, art. 181 c/c. CP, art. 44, §4º, e Lei 9.099/95, art. 86). Lutar pela aplicabilidade da conversão significa lutar contra a impunidade que poderia resultar extreme em muitos casos, significa lutar pelo sucesso total da lei que rege o Juizado Especial Criminal.
Na maioria dos casos, a inadimplência se deve pelo fato do apenado haver desaparecido do distrito da culpa. Muitas vezes o "sumiço" se deve porque tem contas a acertar com a Polícia ou com a Justiça. Daí, preferível que se aplique a conversão e se aguarde eventual execução da ordem de prisão em seu desfavor, quando, dependendo da situação concreta de cada caso ou da justificativa que fosse apresentada pelo apenado, até que poderia cogitar-se do restabelecimento do benefício, do que "inovar" a sentença homologada, oferecendo denúncia que, uma vez recebida, ficaria relegada ao esquecimento nas prateleiras empoeiradas das escrivaninhas criminais das comarcas do Brasil, por força do que dispõe o art. 366, do CPP.
Nem se pretenda dizer que caberia ordem de prisão em tais hipóteses, com arrimo na parte final do art. 366, com a conjugação do art. 312, ambos do CPP, porque as infrações de menor potencial ofensivo (Lei n.º 9.099/95, art. 61), às quais admite-se a transação penal (art. 76), nem sempre estariam sujeitas à prisão preventiva, por vedação expressa do art. 313, do CPP que, trata dos pressupostos de admissibilidade da prisão cautelar.
As hipóteses de aplicação da transação penal, geralmente são de contravenções penais, cuja pena cominada é de prisão simples. Logo, não caberia a prisão preventiva de que trata o art. 366 e 312, da lei adjetiva penal, porque não se enquadraria em nenhuma das vertentes insculpidas no art. 313, da mesma lei de rito.
E mostra-se digno indagar sobre qual tem sido o progresso ou benefício social com a aplicação do vigente art. 366 do CPP, nas infrações em que se tem como descartada a possibilidade jurídica de decretação da prisão preventiva (CPP., art. 313)? Não há intuito aqui de se tecer nenhuma crítica a esta nova diretriz adjetiva penal, mas não se pode negar que no exemplo em referência, inviabilizada a busca coativa do infrator (CPP., art. 313), só o seu comparecimento voluntário é que poderia ensejar o prosseguimento do processo suspenso. Porém, ledo absurdo ou crença pueril, pois se não "apareceu" para cumprir a pena acordada, que conseqüência alguma lhe trazia, dificilmente aparecerá para sujeitar-se às agruras do processo tradicional, ficando sob a mira de uma sentença penal condenatória.
Conclui-se, portanto, que a conversão ora defendida é totalmente possível e encontra-se amparada pela lei, de conseqüência, não fere os princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Ademais a própria Lei 9.099/95, em seu artigo 86 contempla a maneira como que a pena deva ser executada e o artigo 92 admite a aplicação do Código Penal e Processo Penal. Caso fôssemos interpretar de modo diverso, estaríamos negando a vigência de diversos dispositivos legais, inclusive o artigo 98, I, da Constituição Federal.