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Reflexões acerca da distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios em ano eleitoral

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25/04/2008 às 00:00
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6. Sanção pelo descumprimento da conduta vedada

Outro ponto aparentemente obscuro relaciona-se à sanção cabível pelo descumprimento da conduta vedada, em decorrência de inexistir expressa menção no § 10 do artigo 73 acerca da penalidade cabível pela não observância do preceito legal.

Certamente o legislador, ao elaborar a Lei nº 11.300/06, pecou, como já de costume, pela falta de técnica legislativa, pois inseriu a conduta vedada (distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios) em parágrafo completamente destoante do corpo do artigo 73. Ou seja, na leitura do artigo 73 da Lei das Eleições, seu § 10 encontra-se em descompasso com os outros parágrafos da norma.

Mesmo diante desta balbúrdia jurídica, resta evidente que pela afronta ao § 10 do artigo 73 aplica-se a multa prevista no § 4º do mesmo artigo da lei, que assim dispõe:

Art. 73 (caput)

§ 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR.

É bem verdade que a simples leitura do artigo 73 da Lei das Eleições levaria a conclusão de que o § 4º somente se aplicaria às condutas arroladas nos incisos I a VIII do caput, não englobando a vedação contida no § 10 da norma. Como já exposto, isto decorre da má técnica dos legisladores brasileiros, sendo incabível outra conclusão que não a aplicação da sanção prevista no § 4º do artigo 73.

Outra é a conclusão de Olivar Coneglian[18]:

Qual a sanção para o descumprimento da norma expressa nesse § 10?

Não há sanção prevista.

Caso o agente do Executivo desobedeça ao comando do § 10 do art. 73, poderá eventualmente ser acionado por abuso de autoridade, no caso eleitoral, ou por improbidade administrativa por ferir norma legal.

Parece-nos não ser esta a melhor interpretação da legislação eleitoral. Não há como subsistir norma proibitiva (non facere) sem a respectiva sanção pelo seu descumprimento, fato que tornaria teratológica a norma do § 10 do artigo 73, da Lei das Eleições. Deveras, falhou o legislador ao não disciplinar de melhor maneira a inserção desta nova conduta vedada, através da inserção de outro inciso junto ao caput do artigo 73. Enfim, o atual § 10 deveria ser o inciso IX do caput do artigo 73 da Lei das Eleições.

Assim, o descumprimento da regra que veda em ano eleitoral a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios sujeitará os infratores à multa de cinco a cem mil UFIR, nos termos do § 4º do artigo 73 da Lei das Eleições, que, consoante Resolução nº 22.718/08 [19] do Tribunal Superior Eleitoral, fica estabelecida em R$ 5.320,50 a 106.410,00 para este pleito eleitoral [20].

Este também foi o entendimento do Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina, ao aplicar multa, em seu mínimo legal, ao então Governador do Estado por descumprimento do artigo 73, § 10, da Lei nº 9.504/97 (TRE/SC, Acórdão nº 21.707, rel. Juiz Márcio Luiz Fogaça Vicari, julgado em 11/06/2007).

Portanto, pela ofensa ao artigo 73, § 10, da Lei das Eleições, aplica-se o § 4º do mesmo artigo de lei, que impõe multa de R$ 5.320,50 a 106.410,00 aos responsáveis pela conduta vedada.


7. Conclusões finais

Pelas considerações tecidas, verifica-se que a vedação da distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios em ano eleitoral (art. 73, § 10, da LE), apesar do seu evidente propósito moralista, ainda não se encontra devidamente analisada pela doutrina e jurisprudência, fato que provoca grave insegurança jurídica à sociedade.

A distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios pode ser compreendida como todo ato ou ação do Poder Público que beneficiar desoneradamente terceiros, a exemplo das doações sem encargo, subvenções sociais e contribuições. A regra inserida pela Lei nº 11.300/06 é severa e impõe graves limites às atividades desenvolvidas rotineiramente pela Administração Pública, devendo ser decotadas da proibição eleitoral aquelas que não tenderem a afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos na disputa eleitoral (art. 73, caput, da LE).

Não se enquadram na restrição eleitoral os atos e as ações necessários a suprir situações de calamidade pública e estado de emergência, bem como para dar prosseguimento aos programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. Esta última exceção deve ser analisada de modo a compreender o maior número de situações possíveis, desde que presentes os seguintes requisitos:

a) caráter assistencial do ato ou ação desenvolvida pela Administração Pública, no intuito de proteger ou alcançar os direitos sociais elencados pela Constituição da República (educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados, dentre outros);

b) inexistência de conotação eleitoral na distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios;

c) lei orçamentária autorizando as despesas decorrentes das atividades de cunho social;

d) realização de despesas com o ato ou ação social em anos anteriores, de modo a representar a continuidade das políticas públicas já desenvolvidas pelo Estado.

Apesar destas considerações por si só já amenizarem o rigor da restrição eleitoral constante do § 10 do artigo 73, ainda assim têm-se situações concretas que merecerão atenção especial dos Tribunais Eleitorais. Citam-se como exemplos as subvenções sociais para escolas de samba, clubes esportivos, grupos folclóricos, rádios comunitárias, clube de mães, dentre tantas outras que geram dúvidas quanto ao interesse público envolvido e ao caráter social das atividades desenvolvidas por estas entidades.

Nestes casos, pensamos que a solução passa pela análise dos critérios acima destacados (letras "a", "b", "c" e "d"), ponderando-se acerca da realidade social e cultural da região. Todavia, no caso da situação em concreto comprometer a igualdade de oportunidades dos candidatos ao pleito eleitoral, a Justiça Eleitoral deve tomar as providências prevista em lei, para o fim de preservar a legalidade e harmonia do processo eleitoral.

Muito bem expôs o Ministro Caputo Bastos a respeito da necessidade de cautela na aplicação das condutas vedadas, em julgado prolatado no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral:

Conforme venho defendendo nesta Corte Superior, afirmo que a intervenção da Justiça Eleitoral há que se fazer com o devido cuidado no que concerne ao tema das condutas vedadas, a fim de não se impor, sem prudencial critério, severas restrições ao administrador público no exercício de suas funções.(TSE, Acórdão nº 24.989, rel. Min. Caputo Bastos, julgado em 31/05/2005)

Justamente é este o cuidado que a Justiça Eleitoral deverá possuir neste pleito eleitoral, pois a regra estabelecida pela Lei nº 11.300/06, que acrescentou o § 10 ao artigo 73 da Lei nº 9.504/97 (Lei das Eleições), abarca, numa interpretação literal da norma, inúmeros atos e ações que não merecem reprimenda da lei eleitoral, pois visam a efetivação dos direitos sociais e o fomento de importantes setores da sociedade civil organizada, não comprometendo igualdade de condições entre os candidatos na disputa eleitoral.

A cautela na aplicação das condutas vedadas, ilustrada pelo Ministro Caputo Bastos, deverá servir de norte aos Juízes Eleitorais nesta difícil tarefa de julgar os atos dos gestores públicos e dos demais candidatos aos cargos eletivos. As irregularidades – e certamente serão várias - deverão ser exemplarmente punidas. Mas as restrições eleitorais merecem a devida ponderação, para não se inviabilizar a salutar e necessária continuidade das políticas públicas desenvolvidas pelo Estado.


Notas

01in Direito Eleitoral. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2008. p. 358.

02in Condutas Vedadas aos Agentes Públicos em Campanha Eleitoral. Resenha Eleitoral. Disponível em: , Acesso em: 18 abr. 2008.

03in Direito Eleitoral. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2008. p. 233.

04No mesmo sentido: TSE, Acórdão nº 25.758, rel. Min. Cezar Peluso, julgado em 22/03/2007. Em sentido contrário: TSE, RESPE nº 27.737, rel. Min. José Augusto Delgado, julgado em 04/12/2007; e TSE, Acórdão nº 21.536, rel. Min. Fernando Neves da Silva, julgado em 15/06/2004.

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05Lei nº 9.504/97, art. 73, caput: São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: (...)

06Ibidem, p. 412.

07in Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 734

08in Parcerias na Administração Pública. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2002. p. 190.

09Decreto federal nº 5.376/2005, art. 3º: Para fins deste Decreto, considera-se:
III - situação de emergência: o reconhecimento pelo poder público de situação anormal, provocada por desastres, causando danos superáveis pela comunidade afetada;

IV - estado de calamidade pública: o reconhecimento pelo poder público de situação anormal, provocada por desastres, causando sérios danos à comunidade afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integrantes.

10in Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 289-290.

11 MORAIS, Alexandre. Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 193.

12in Direito Financeiro e Tributário. 12ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 79.

13Ibidem, p. 359.

14 Oportunos os ensinamentos de José Jairo Gomes sobre o art. 73, § 10, da Lei das Eleições: "A regra é a proibição da distribuição. Assim, em ano eleitoral, a Administração Pública só pode distribuir gratuitamente bens, valores ou benefícios se ocorrer alguma das hipóteses legais especificadas, a saber: calamidade pública, estado de emergência ou existência de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior. As duas primeiras devem ser demonstradas. A última, pressupõe a existência de política pública específica, em execução desde o exercício anterior, ou seja, já antes do ano eleitoral. Quer-se evitar a manipulação dos eleitores pelo uso de programas oportunistas, que, apenas para atender circunstâncias políticas do momento, lançam mão do infortúnio alheio como tática deplorável para obtenção de sucesso nas urnas.

Para a configuração da hipótese inscrita no inciso IV, é preciso que o agente use ‘a distribuição gratuita de bens e valores’ em prol de candidato. Não se exige que durante o período eleitoral o programa social antes implantado seja abolido, ou tenha interrompida ou suspensa sua execução. O que se proíbe é tão-só o seu desvirtuamento, a sua colocação a serviço de candidatura, enfim, o seu uso promocional." (Ibidem, p. 418)

15Ibidem, p. 410.

16Ibidem, p. 17.

17 A pesquisa foi realizada no site do Tribunal Superior Eleitoral (www.tse.gov.br), em 18 de abril de 2008, e sintetiza a jurisprudência de todos os Tribunais Regionais Eleitorais do país. Muito provavelmente existam outras decisões não inseridas no banco de dados do Tribunal Superior Eleitoral, fato que fragiliza a presente pesquisa jurisprudencial.

18 Ibidem., p. 359.

19Resolução nº 22.718/08, art. 42, § 4º: O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os agentes responsáveis à multa no valor de R$ 5.320,50 (cinco mil trezentos e vinte reais e cinqüenta centavos) a R$ 106.410,00 (cento e seis mil quatrocentos e dez reais), sem prejuízo de outras sanções de caráter constitucional, administrativo ou disciplinar fixadas pelas demais leis vigentes (Lei nº 9.504/97, art. 73, § 4º, c.c. o art. 78).

20 O próprio Tribunal Superior Eleitoral, na própria Resolução nº 22.718/08, poderia ter aclarado a sanção cabível pelo descumprimento do artigo 73, § 10, da Lei nº 9.504/97, afastando dúvidas quanto à aplicação ou não da multa como penalidade à mencionada conduta vedada

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Sobre o autor
Marcos Fey Probst

Ex Diretor-Geral da Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento (ARIS), Assessor jurídico da Federação Catarinense de Municípios (FECAM), Advogado e Consultor Jurídico.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PROBST, Marcos Fey. Reflexões acerca da distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios em ano eleitoral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1759, 25 abr. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11194. Acesso em: 26 abr. 2024.

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