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Imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.

A questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista

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10/05/2008 às 00:00
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5. Imunidade de Jurisdição do Estado estrangeiro: a questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista

Em 6 de abril de 2005 o Tribunal Superior do Trabalho divulgou nota informando que havia 194 ações em trâmite na Justiça do Trabalho [164] em face de Estados estrangeiros. Erroneamente, a notícia foi publicada como se as ações tivessem sido ajuizadas em face das Embaixadas, que não possuem personalidade jurídica, [165] ao invés dos Estados soberanos que elas representam: [166]

Embaixadas respondem a 194 processos trabalhistas na JT

Um total de 194 ações trabalhistas contra as embaixadas estrangeiras está em tramitação em toda a Justiça do Trabalho, segundo listagem recente preparada pelo corpo diplomático sediado em Brasília. A Embaixada de Portugal é a representação diplomática com maior número de processos: 79 reclamações trabalhistas (40% do total). A Indonésia, com dez processos, está em segundo lugar na relação de processos trabalhistas das missões estrangeiras na JT de primeiro grau, no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região e no Tribunal Superior do Trabalho.

As Embaixadas da Malásia e da Nigéria ocupam o terceiro lugar na relação, cada uma com seis processos. A seguir, com quatro processos cada uma, estão as representações diplomáticas do Kuwait, Paquistão, Tailândia e Turquia.

A lista foi preparada pela Justiça do Trabalho a pedido do presidente do TST, ministro Vantuil Abdala, depois de audiência concedida em 4 de março aos representantes das embaixadas, o núncio apostólico no Brasil, dom Lorenzo Baldisseri, e o embaixador da República dos Camarões, Martin Nguele, respectivamente decano e vice-decano do corpo diplomático.

A maior preocupação das embaixadas é quanto à penhora de bens feita para assegurar o pagamento de débito trabalhista. O presidente do TST afirmou que a situação é preocupante sob o aspecto diplomático, mas acrescentou que é importante que haja uma solução quanto ao pagamento, pelas embaixadas, dos direitos dos trabalhadores, objeto de condenação na JT.

O ministro Vantuil Abdala considera importante uma atuação mais efetiva do Itamaraty para que se chegue a uma solução. Ele adiantou que pretende entrar em contato com o Itamaraty para conversar sobre a situação. O presidente do TST ressalta que o crédito trabalhista tem caráter de urgência, pois representa muitas vezes o sustento do trabalhador e de sua família. Vantuil Abdala acredita que o TST e o Itamaraty podem definir uma solução conjunta para o problema. [167]

O embaixador brasileiro Lúcio Pires de Amorim afirmou que até 2001 das 570 ações ajuizadas contra Estados e Organismos Internacionais no Brasil, 528 eram trabalhistas, correspondendo 93% do total. [168]

O Supremo Tribunal Federal não admite mais a imunidade de jurisdição, na espécie cognição, em causas trabalhistas. A execução do julgado trabalhista também não é impossibilitada, mas, tão-somente, restringida a bens não afetados às legações diplomáticas ou consulares, pois, nesse caso, nas palavras do Ministro Celso de Mello, ainda vige uma espécie de imunidade estatal mais abrangente.

Salutar é a intervenção da União no processo em que litigam particular e Estado estrangeiro, para defesa de interesse próprio, já que eventual ato judicial impropriamente determinado, [169] poderá implicar a responsabilidade da República Federativa do Brasil no plano internacional, que nada mais é do que a face externa da União. [170] Valdir de Oliveira Rocha assevera que "com freqüência, usa-se a palavra União como se fosse sinônima de República Federativa do Brasil. E, para determinados efeitos, até pode se conceber que seja. Mas não pode escapar a qualquer pessoa atenta que, nas relações internacionais, resultantes em tratados internacionais, o que importa é apenas a República." [171]

Luiz de Pinho Pedreira da Silva lembra que a constrição de bens do Estado estrangeiro pode afetar as boas relações internacionais, sugerindo-se, por isso, que "se recorra a vias diplomáticas para conseguir o cumprimento da decisão judicial e falando-se até em pagamento da condenação pelo Estado do foro para evitar conflito com o Estado alienígena, que pode considerar a execução forçada contra ele ajuizada como um ato de hostilidade." [172] Alguns Estados, segundo Luiz de Pinho Pedreira da Silva, como os Estados Unidos, Grécia, Itália e Espanha, admitem ou exigem uma consulta do Judiciário ao Executivo, competente para a direção da política internacional, sobre as conseqüências que a execução forçada pode acarretar para as relações entre os Estados nela envolvidos. [173]

Assim é importante o Poder Judiciário brasileiro consultar o Poder Executivo, através do Ministério das Relações Exteriores, para verificar qual é o tratamento dispensado pelo Estado estrangeiro à República Federativa do Brasil em seu território, pois, obedecidas as normas internacionais, pode-se aplicar o princípio da reciprocidade, que o Direito Internacional Público consagra. [174] Exemplo emblemático da devida aplicação, pelo Poder Judiciário brasileiro, do princípio da reciprocidade, é dado pelo embaixador Lúcio Pires Amorim, embora não se trate de causa trabalhista:

[...] Embaixada da Grã-Bretanha, que, citada, no ano passado [ano de 2000], pela juíza da Quarta Vara Federal a comparecer à audiência de conciliação no âmbito de uma ação sumária referente a acidente de trânsito, recusou-se a fazê-lo nos seguintes termos: Em que pese a garantia da sua imunidade de jurisdição, esta embaixada reitera que a realidade dos fatos, envolvendo a colisão de veículos, difere da versão apresentada nos autos da ação de indenização em trâmite na Quarta Vara Federal. Razão pela qual, mesmo a título de composição extrajudicial, não considera a hipótese de pagamento dos prejuízos alegados.

É desnecessário ressaltar a arrogância dos termos usados pelo representante de Sua Majestade Britânica, que não se limitou a invocar a imunidade, como até poderia, mas formulou juízo sobre os fatos que motivaram a demanda, subtraindo-se da apreciação judicial. A ironia, nesse caso, é que, desde 1978, com a promulgação do State Immunity Act, na Grã-Bretanha, no dizer do Ministro Rezek, não são alcançados pela imunidade os desdobramentos de toda a espécie de interação contratual de natureza trabalhista entre a missão diplomática ou consular e pessoas recrutadas in loco, bem assim as ações indenizatórias resultantes de responsabilidade civil. De modo que o que vale na Inglaterra para as missões estrangeiras não é seguido pelos representantes diplomáticos ingleses fora de seu país. [175]

Comentando tal exemplo, Eneas Bazzo Torres assevera que "comportamentos como esse bem demonstram que, em verdade, não agrada às superpotências se submeterem às jurisdições de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, enfim, parece que há esse tipo de preconceito." [176]

Apesar de não ser objeto da pesquisa as demandas ajuizadas em face de Organismos Internacionais, mas, tão-somente, Estados soberanos, cabe trazer a informação que o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região afastou a imunidade de execução da Organização das Nações Unidas – ONU, fundamentando, entre outros, de que "parte fundamental do exercício da jurisdição é o poder de execução. Sem este, aquele representaria mera atividade consultiva, e não a manifestação de um dos Poderes do Estado. Deste modo, conhecer que o Estado brasileiro rejeite a imunidade de jurisdição, para, em seguida, declarar inexigível o título judicial, por imunidade de execução, representa, além de absoluta frustração à parte credora, uma afronta à sua própria soberania." [177] Nesse sentido o Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região. [178]

No que interessa mais propriamente ao objeto da pesquisa, o acórdão traz informação sobre os meios que o credor poderá utilizar, em solo nacional, em caso de negativa de bens passíveis de penhora do Estado estrangeiro:

Diante de tal quadro, outra não pode ser a conclusão, senão a de que a imunidade de execução, assim como a de jurisdição, também é relativa, não implicando na impossibilidade de execução o fato de figurar como executado estado estrangeiro ou organismo internacional. É evidente que, notadamente em relação ao estado estrangeiro, vários bens serão afastados da possibilidade de penhora, em respeito à sua própria soberania. Tal fato, no entanto, não implica na impossibilidade de tramitação da execução, em busca de bens passíveis de sujeição à constrição judicial.

E, se em relação ao Estado estrangeiro, ainda podem ser invocados, a realizar a execução (embora com pouco ou nenhum proveito prático) a possibilidade de requisição a Tribunal estrangeiro da homologação da sentença nacional para execução do território próprio do Estado estrangeiro, ou o próprio exequatur, o mesmo não ocorre com a Organização das Nações Unidas, já que as mesmas restrições à execução invocadas no Brasil, se aplicáveis, seriam invocadas perante a Justiça de qualquer outro país. [179]

Eneas Bazzo Torres propõe ao Poder Judiciário brasileiro adotar expediente semelhante ao precatório, ou seja, conceder um período de graça para pagamento pelo Estado estrangeiro, que poderia ser de até um ano, findo o qual estaria autorizado o seqüestro de numerário para pagamento do credor. [180] Segundo o autor, "trata-se de uma transposição, para o plano do direito internacional, do procedimento de cobrança da dívida do Estado brasileiro, segundo as leis domésticas. A obrigação do Estado de cumprir contratos, ou de indenizar prejuízos que eventualmente cause em solo estrangeiro, na conformidade da presente sugestão, seguiria parâmetros da responsabilidade administrativa universalmente consagrados, e sua exigência não teria o alcance de ferir o princípio do par in parem non habet imperium." [181]

Carlúcio Campos Rodrigues Coelho [182] e Maria de Assis Calsing [183] entendem que a dívida do Estado estrangeiro, acaso não paga espontaneamente, deva ser requerida por intermédio de carta rogatória. Tal posição doutrinária já fora adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, que determinou a expedição de carta rogatória com vistas à cobrança de crédito em execução movida contra Estado estrangeiro. [184] Frisa-se, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal, quando detinha competência para homologar sentenças estrangeiras e a conceder exequatur às cartas rogatórias, não admitia carta rogatória passiva com fins executórios, [185] salvo as provenientes dos Estados membros do Mercosul e de outros poucos acordos internacionais (ex vi Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa – Protocolo de Las leñas, publicado no Brasil pelo Decreto n. 2.067/96). [186] Tal fato pode levar o Estado estrangeiro a negar tal pedido justamente pelo princípio da reciprocidade, consoante ensina a doutrinadora argentina Inês Mónica Weinberg de Roca. [187] Ademais, em regra, [188] no Brasil, os atos executórios, que se referem aos atos das autoridades judiciárias estrangeiras que visam realizar o reconhecimento e/ou execução de seus atos judiciários, tais como sentenças e medidas executórias, se processam atualmente perante o Superior Tribunal de Justiça via homologação de sentença estrangeira, e não por carta rogatória passiva (ex vi do art. 105, inciso I, alínea I, da Constituição da República) [189], conforme ensinamento de Hee Moon Jo. [190]

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Beat Walter Rechsteiner afirma que conforme o direito costumeiro internacional, nenhum Estado está obrigado a reconhecer no seu território uma sentença proferida por juiz ou tribunal estrangeiro, mas na prática, porém, os Estados, em regra, reconhecem sentenças estrangeiras, desde que cumpridos determinados requisitos legais na espécie. [191]

A diferença entre carta rogatória ativa para passiva é que a primeira é a carta preparada por um tribunal brasileiro para sua posterior transmissão ao exterior, por meios diplomáticos, enquanto a segunda é aquela preparada e transmitida por um tribunal estrangeiro para ser executada no Brasil, após o exequatur do Superior Tribunal de Justiça. [192]

Arion Sayão Romita entende que "em caso de resistência insuperável oposta pelo ente de direito público externo, o cumprimento da sentença condenatória só pode ser logrado na prática por via amigável ou pelos trâmites diplomáticos." [193]

Pergunta-se, nessa fase da pesquisa, se, depois de esgotadas todas as medidas possíveis para se encontrar bens passíveis de penhora do Estado estrangeiro (não afetados às legações diplomáticas ou consulares), é possível responsabilizar a União ao pagamento do débito judicial trabalhista?

Para Márcio Pereira Pinto Garcia a solução não é dada pela ótica do Direito Interno. Para ele trata-se de responsabilidade objetiva do Estado; a União deve pagar porque é condutora das relações internacionais. O autor informa que quando o Brasil é condenado no exterior, cumpre exatamente a condenação, mas ainda se verifica em solo nacional o descumprimento de sentenças trabalhistas por parte de países como os Estados Unidos da América e a Alemanha, que não cumprem quando são condenados em matéria trabalhista. [194]

Márcio Pereira Pinto Garcia, após tecer os fundamentos que o levam a crer que a União deva pagar pelo débito trabalhista do Estado estrangeiro, propõe o ressarcimento por intermédio de uma espécie de eventual compensação internacional:

No caso Genny, por exemplo, imagino que, eventualmente – teria de se criar um meio, o orçamento sempre acha uma forma de contornar -, a União poderia pagar essa execução de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) e criaria um crédito em seu benefício lá fora. Amanhã, se o Brasil fosse demandado na Alemanha e condenado, poder-se-ia dizer: Perfeitamente, a condenação aqui são U$ 20.000,00 (vinte mil dólares); adiante U$ 10.000,00 (dez mil dólares) lá no Brasil por uma outra condenação que a Alemanha não cumpriu; por essa razão, pagarei aqui U$ 10.000,00 (dez mil dólares).

Um sistema de compensação. Digo isso até para gerar o debate. Essa Sra. Genny não está entendendo nada até hoje: - Eu ganhei, e o Supremo Tribunal Federal diz que não há essa imunidade, mas não há como executar essa decisão. O Prof. Dominique Carrot, na França, diz que é absolutamente ilógico. É curioso, porque os magistrados, quando se deparam com a questão da imunidade, no processo de conhecimento, verificam que, no cenário internacional, há uma inclinação para in dubio pro jurisdictione. Então, exercerei a jurisdição.

No processo de execução, a presunção é contrária. Se tenho dúvida, não posso avançar. Adiantando um pouco sobre essa questão da execução, citando a própria Convenção, no art. 32, § 4º: "Ainda que o Estado renuncie a sua imunidade de jurisdição no tocante às ações cíveis ou administrativas, não implica renúncia à imunidade contra as medidas de execução da sentença para as quais nova renúncia é necessária." [195]

O caso Genny v. República Alemã é paradoxal, e mostra bem a peculiaridade do tema da imunidade soberana. Márcio Pereira Pinto Garcia mostra bem a questão do ponto de vista do leigo: "Essa Sra. Genny não está entendendo nada até hoje: - Eu ganhei, e o Supremo Tribunal Federal diz que não há essa imunidade, mas não há como executar essa decisão". Poder-se-ia alegar, inclusive, que tal situação contraria a teoria do processo de resultados desenvolvida por Cândido Rangel Dinamarco, consistente na "consciência de que o valor de todo sistema processual reside na capacidade, que tenha, de propiciar ao sujeito que tiver razão uma situação melhor do que aquela em que se encontrava antes do processo." [196]

Mas dessa constatação até a imputação do débito judicial à União, não pode ser assim tão simplista, sob pena de, conforme bem afirmou Francisco Rezek em palestra proferida no Centro de Estudos de Direito Internacional - CEDI, ter o Tesouro Nacional que responder também pelos insolventes em geral, à luz da idéia de que foram os erros ou as omissões do Governo que levaram à crise econômica e à insolvência de alguns, por conta da qual outros não conseguem receber o que lhes é devido." [197] Tanto é assim que também para a teoria do processo de resultados, nas palavras de Chiovenda citado por Cândido Rangel Dinamarco, o processo propiciará o resultado desde que ‘praticamente possível’, o que não ocorrerá quando inexistir bens penhoráveis no Brasil, e todos os meios jurídicos e diplomáticos mostraram-se incapazes de resolver a questão ("Na medida do que for praticamente possível, o processo deve propiciar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de receber." - Chiovenda)." [198][199]

Concorda-se com Márcio Pereira Pinto Garcia, no entanto, quando o mesmo propõe, a título de lege ferenda, que "deveria ficar claro no Texto Internacional, por exemplo, que, no contrato de trabalho, como no projeto da CDI, o Estado não está ‘vestido’ da imunidade. O Estado se vinculou àquilo porque quis. Essa execução poderia ser repensada. Enquanto isso não ocorre, esbarraremos sempre nesse problema." [200] O Ministro Jorge Scartezzini do Superior Tribunal de Justiça, no mesmo sentido, entende que "os limites exatos da relativização da imunidade somente poderiam ser uniformemente traçados mediante consenso internacional, por exemplo, com a aprovação do projeto de ‘Convenção Internacional sobre Imunidades de Jurisdição dos Estados e de seus Bens’, elaborado pela Comissão de Direito Internacional da ONU." [201] Outro projeto em andamento sobre a imunidade jurisdicionais dos Estados é o da Organização dos Estados Americanos – OEA, lembrado por Guido Fernando da Silva Soares. [202] Já a inclusão de norma Constitucional dispondo sobre tema de Direito Internacional, como entendeu o Ministro Sydney Sanches no caso Genny v. Alemanha, interpretando erroneamente o art. 114 da Constituição da República, não significa que irá tornar tal norma em direito internacional, mas apenas que uma Constituição está violando o Direito Internacional Público. Situação diversa seria se o Direito Internacional se referisse a algum tema de Direito interno, pois este sim passaria a ser de Direito Internacional, consoante assevera Jorge Fontoura. [203]

Carlúcio Campos Rodrigues Coelho, no que tange às dívidas trabalhistas brasileiras da Organização das Nações Unidas – ONU, parece também sugerir uma espécie de compensação com a subvenção anual devida pelo Estado brasileiro. [204]

Antenor Pereira Madruga Filho, ao fazer sugestões de pesquisas sobre o tema da imunidade soberana, disserta:

O ônus suportado pelo particular que teve negado o acesso à jurisdição, pelo reconhecimento da imunidade soberana, deve ser distribuído entre toda a sociedade, ou seja, indenizado pelo Estado. Aplicar-se-ia à hipótese a teoria da responsabilidade objetiva, decorrente do princípio da igualdade, tendo em vista que seria contrário à isonomia o particular suportar sozinho o prejuízo decorrente de uma obrigação do Estado (obedecer às normas internacionais), cuja observação redunda em benefício de toda a coletividade. [205]

A tese dos defensores de que a União deve ser responsabilizada pelo débito judicial do Estado estrangeiro pelo reconhecimento da imunidade soberana, parece ter assento na teoria do risco (administrativo ou integral), que serve de fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado. [206][207] Essa doutrina, que o Conselho de Estado Francês passou a adotar, segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro, "baseia-se no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais: assim como os benefícios decorrentes da atuação estatal repartem-se por todos, também os prejuízos sofridos por alguns membros da sociedade devem ser repartidos. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para restabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, utilizando recursos do erário público." [208] Nesse sentido Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt. [209]

Flávio de Araújo Willeman afirma que o Estado será responsável civilmente ainda quando praticado ato lícito, desde que haja "expressa previsão legal ou quando a atividade administrativa impuser sacrifício especial, irrazoável, injusto, anormal e excepcional ao direito do administrado." [210]

Atualmente, consoante esclarece João Batista Gomes Moreira, "a doutrina e jurisprudência francesas [berço da teoria do risco] evoluíram ‘no sentido de refrear e ponderar a utilização da responsabilidade objetiva’, recomendando parcimônia quanto à utilização da teoria do risco, considerada excessiva (BUCCI, Maria Paula Dallari, Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 207). [211][212]

Não se trata de uma negação ao acesso à jurisdição, porque o interessado pode demandar o Estado estrangeiro em seu próprio território, já que a responsabilidade administrativa do Estado atualmente é um postulado universal, segundo informa Eneas Bazzo Torres. [213] Em segundo lugar porque não se nega jurisdição (cognição e execução) às causas trabalhistas ajuizadas em face de Estados estrangeiros, tanto é que o Supremo Tribunal Federal admite inclusive penhora de bens não afetados às missões diplomáticas ou consulares, o que afasta a tese de responsabilidade da União.

A responsabilidade objetiva, com a amplitude que lhe querem dar, consoante explica João Batista Gomes Moreira, "serve à ideologia liberal (e neoliberal), como instituto legitimador do Estado autoritário, separado da sociedade: é o Estado que lesa, mas paga; que faz tudo, pode tudo e, pelo menos teoricamente, paga tudo (BUCCI, Maria Paula Dallari, Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 189). Perde-se a noção de que os recursos com que se paga a indenização provêm da própria sociedade [...]." [214][215]

Há quem entenda que tal responsabilidade da União pode ser enquadrada na modalidade de ‘risco social’ ou ‘sem risco’, que, segundo Sylvio Clemente da Motta Filho e William Douglas Resinente dos Santos, representa "uma espécie de responsabilidade social, ainda mais ampla que a objetiva integral e que seria o ápice do Welfare State. [216][217] José de Aguiar Dias apresenta um exemplo da teoria do risco social, dizendo que poderia ser aplicada nas situações em que sejam desconhecidos os autores dos delitos, nos casos em que estes empreendam fuga sem deixar bens ou sejam insolventes. Para não deixar a vítima sem qualquer reparação, assumiria o Estado o ônus da prova de repará-la, sem prejuízo do direito de regresso contra o real causador do prejuízo, que restaria preservado. [218] Saulo José Casali Bahia informa que o advento dessa teoria é muito mais anunciado do que acontecido, [219] fato este que fez Pablo Stolze Gagliano afirmar ser "bastante razoável, tendo em vista a situação comumente precária das finanças públicas brasileiras..." [220] Sylvio Clemente da Motta Filho e William Douglas Resinente dos Santos mostram preocupação com a concretização dessa teoria:

O que nos preocupa, antes mesmo de chegarmos a este estágio [materialização da teoria do risco social], é que começa a tomar corpo um ideário de proposições que visam a cobrar do Estado tudo o que dá de errado na vida diuturna de pessoas e grupos. Através da habilidade de mentes instruídas e quase geniais, é possível criar em quase todo prejuízo de uma pessoa ou grupo econômico alguma relação com a Administração, seja por sua ação ou omissão. A partir daí, calcado na responsabilidade objetiva (por ora, mas em breve na responsabilidade social), iniciam-se ações para que o ente estatal pague a conta. O perigo que se estabelece então é o de que grupos econômicos consigam manter o cartorialismo e fisiologismo do país através do Judiciário.[...] [221]

Embora se defenda a tese de que em causas trabalhistas não há a configuração da responsabilidade objetiva da União, mister transcrever crítica de João Batista Gomes Moreira sobre a atual leitura atribuída ao artigo 37, § 6º da Constituição da República: [222]

O texto constitucional – art. 37, § 6º - está a merecer uma releitura crítica. Não diz positivamente que a responsabilidade das entidades públicas e privadas prestadoras de serviço público seja sempre objetiva. O entendimento que tem prevalecido, pela responsabilidade exclusivamente objetiva, decorre de aplicação – precária, diga-se de passagem – do argumento a contrario: como o texto diz que a responsabilidade do servidor é culposa – parte-se logo para a conclusão -, a responsabilidade da pessoa jurídica é objetiva. É oportuna a lição de Carlos Maximiliano, ao considerar o argumento a contrario ‘muito prestigiado outrora, malvisto hoje pela doutrina, pouco usado pela jurisprudência´: ´do fato de se mencionar uma hipótese não se deduz a exclusão de todas as outras.’ (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 9. ed., 3. tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 243). Também Kelsen considera completamente destituído de valor, como meio de interpretação, o argumento a contrario, pelo fato de levar a resultado oposto ao da analogia, não havendo qualquer critério que determine a preferência de um ao outro (KELSEN, Hans. 1979, p. 468). Há, sem dúvida, possibilidade de responsabilidade do Estado, mas é discutível que seja uma regra geral (DERGINT, Augusto do Amaral, p. 11). O tema da responsabilidade do Estado é nebuloso, com delimitações oscilantes e divergentes, tornando-se questionável sua autonomização em relação aos critérios do direito privado (CANOTILHO, José Joaquim Gomes). [...]

Desmistificada a importância do critério objetivo para a configuração de autonomia da responsabilidade estatal e situadas também as atividades econômicas do Estado sob o raio da finalidade pública, perde vigor a restrição feita a serviços públicos, no art. 37, § 6º, da Constituição. A teoria da responsabilidade estatal, como todos os institutos de direito administrativo, inspirou-se no modelo francês, que tinha a necessidade de afirmação do conceito de serviço público e do caráter específico da responsabilidade do Estado na sua prestação para efeito de justificar a autonomia da jurisdição administrativa. Passada essa fase, a questão, na França, parece ter voltado ao leito normal, mas no Brasil, sem se dar conta disso, a responsabilidade objetiva como característica peculiar da responsabilidade estatal continuou transformada num dogma, em relação ao qual a divergência é considerada sintoma da falta de conhecimento elementar do direito administrativo, que – diz-se – tem na responsabilidade objetiva da Administração, na prestação de serviços públicos, o mais significativo índice de sua autonomia disciplinar. [223]

Francisco Rezek, atual juiz da Corte Internacional de Justiça da ONU, entende que, mesmo não prosperando a execução contra o Estado estrangeiro, já que depende "sempre da possibilidade de encontrar o bem não afeto à função diplomática ou à função consular, para que daí se tire a exeqüibilidade da execução no território nacional", [224] a União não pode ser responsabilizada pelo débito judicial trabalhista do Estado Estrangeiro, seja qual for o seu fundamento:

[...] Se isso for de todo impossível [encontrar bens passíveis de penhora], eu tenho ouvido de vários juristas, ao longo de anos, uma proposta que evoca aquilo que disse o Doutor Guilherme Caputo Bastos, na manhã de hoje: não se poderia aí responsabilizar a União? Porque foi ela que criou, pelos compromissos internacionais que o Estado brasileiro assumiu, essa situação de orfandade para a parte brasileira que, vitoriosa no processo de conhecimento, esbarra na irrealizabilidade da execução.

Isso me assusta um pouco. Fala aqui o antigo Procurador da República. E quando, embora com os mais saudáveis propósitos democráticos, constitucionais e humanísticos até, pensam alguns que o Tesouro Nacional deveria responder quando não se possa materializar a execução contra o Estado estrangeiro ou a organização internacional que seja, vem-me o medo de que, por extensão, se chegue a debitar na conta do Tesouro Nacional muito mais do que isso.

O Professor Jorge Fontoura lembrava que não são todas as pessoas que se vinculam por contrato de trabalho ao Estado estrangeiro ou, sobretudo no caso, à organização internacional. As que o fazem têm consciência de que existem riscos. Na medida em que, ao fim e ao cabo, disséssemos "o Tesouro Nacional responderá pela dívida que não se pode cobrar do Estado estrangeiro ou da organização internacional", fico com medo de que, desenvolvida até as últimas conseqüências essa teoria, o Tesouro Nacional deva responder também pelos insolventes em geral, à luz da idéia de que foram os erros ou as omissões do Governo que levaram à crise econômica e à insolvência de alguns, por conta da qual outros não conseguem receber o que lhes é devido. Ou seja, é o antigo fantasma do Estado como responsável por tudo. Isso, no domínio do debate político, é um tema fascinante. Mas, quando se expõe o Tesouro Nacional a arcar materialmente com as conseqüências dessa tese, digo-lhes que isso causa alguma preocupação. [225]

Segundo o juiz internacional, é prejudicial a idéia do Estado como responsável por tudo (serve à ideologia neoliberal, segundo João Batista Gomes Moreira), o que se concorda inteiramente, não somente no que tange à resolução do tema das imunidades, mas principalmente pelas conseqüências prejudiciais que poderão advir de tal tese. Ademais, no tema da responsabilidade indenizatória do Estado, "não basta a simples ocorrência de dano. É necessário que o mesmo se revista de certas características. Celso Antônio Bandeira de Mello aponta duas características fundamentais. São elas: o dano deve corresponder a uma lesão a direito da vítima. Se ele não for juridicizado, não há que falar em prejuízo indenizável." [226] A impossibilidade da imposição de uma sentença trabalhista transitada em julgado em face de um Estado estrangeiro, em virtude de que seus únicos bens em território nacional serem impenhoráveis nos termos das Convenções de Viena subscritas pela República Federativa do Brasil, não torna a União responsável por inexistir dano jurídico indenizável. [227][228]

O Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal defende a tese de que a União não pode servir de seguradora universal por todo e qualquer ato, comissivo ou omissivo, no qual esteja envolvida, direta ou indiretamente:

Algumas práticas interpretativas no Direito conduzem a equívocos notáveis, nos quais uma visão parcial do problema compromete a correta aplicação das Leis e da Constituição. Entretanto, os equívocos passam a não mais ser aceitáveis quando assumem uma feição de patologia institucional. É o que vem ocorrendo, desde há alguns anos, no tocante à interpretação das regras jurídicas referentes à responsabilidade civil do Estado.

O Direito brasileiro, como é sabido por todos, aceita a teoria da responsabilidade objetiva do Estado. Mas será que isso quer dizer a responsabilidade do Poder Público por qualquer fato ou ato, comissivo ou omissivo no qual esteja envolvido, direta ou indiretamente? Qualquer acadêmico de Direito que tenha uma mínima noção dos requisitos para a configuração dessa responsabilidade civil sabe que não.

Porém, alguns de nossos juristas e magistrados têm-se servido de um conceito amplíssimo de responsabilidade objetiva, levando às raias do esoterismo a exegese para a definição do nexo causal. A esse respeito, alguns exemplos podem indicar a dramaticidade do problema, que não se restringe a discussões meramente acadêmicas – ao contrário, tratam do próprio núcleo do interesse público. [229]

Ad argumentandum tantum, o Ministério da Previdência Social em parecer normativo sobre o regime previdenciário dos segurados contratados por Organismos Internacionais (Parecer/CH/n. 3050/2006, Publicado no DOU de 30/04/2003), explicita que "Apesar de os técnicos contratados prestarem assessoramento a órgãos dos países em desenvolvimento como o Brasil, a União não tem responsabilidade previdenciária sobre a relação analisada ao curso deste parecer." [230]

Infelizmente, os mecanismos de pressão sobre os representantes dos Estados estrangeiros inadimplentes, segundo informação do embaixador brasileiro Lúcio Pires de Amorim, são ainda insuficientes e, em certa medida, até timidamente usados, [231] mas isso não significa dizer que cabe, por parte da União, o dever jurídico de ressarcir eventual débito trabalhista devido e inadimplido por Estado estrangeiro, por não se tratar de fato ensejador da responsabilidade objetiva estatal, sob qualquer de suas modalidades.

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Sobre o autor
Claudinei Moser

Advogado da União em Blumenau/SC. Bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau – FURB (2001). Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Regional de Blumenau – FURB (2003). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2007). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI (2005)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOSER, Claudinei. Imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro.: A questão da (ir)responsabilidade da União pelo pagamento do débito judicial trabalhista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1774, 10 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11217. Acesso em: 25 abr. 2024.

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