3. A hipótese do pluralismo jurídico
Muitos argumentam que o que ocorre no Brasil em relação à religião, seria um pluralismo jurídico. Ao serem estabelecidos os elementos fundamentais do Estado, a soberania foi subentendida como uma de suas principais características. Ela pode ser definida pela ausência de outro poder superior ou igual dentro do território nacional. Esse conceito está diretamente vinculado ao Ius Imperii, com qualquer ato fora do direito sendo considerado ilícito ou antijurídico (no melhor dos casos). No entanto, com o passar do tempo, a ideia de soberania se revela como insuficiente, surgindo o pluralismo jurídico, com normas paraestatais vigorando junto às estatais.
Bobbio, ao analisar o fenômeno define-o como “a concepção que propõe como modelo a sociedade composta de vários grupos ou centros de poder, mesmo que em conflito entre si, aos quais é atribuída a função de limitar, controlar e contrastar, até o ponto de eliminar o centro de poder dominante, historicamente conhecido como Estado" (1995, p. 928). Em outras palavras, é sobre o surgimento recente de direitos não estatais que regulam grupos socialmente excluídos, sendo como mencionado antes, frutos da negligência Estatal e falha do modelo de soberania. Esses dois sistemas coexistem em condições espaciais e temporais, mas quanto ao seu conteúdo material podem diferir, sendo normalmente o que ocorre. Em matérias mistas, como o casamento (ou basicamente todo o direito de família) nas quais tanto o Estado quanto a Igreja têm interesse, o conflito surge, levando à problemática entre religião e Estado, já que duas condutas poderiam ser aplicáveis ao mesmo indivíduo. Bobbio invoca a constituição italiana e menciona o modelo de cooperação, baseado no reconhecimento mútuo da independência dos dois poderes: “cada um, na própria ordem, independentes e soberanos” (Art. 7°, Constituição Italiana, 1947).
O Brasil, considerado por muitos estudiosos como um Estado laico, não adota, em teoria, uma religião oficial, que influencie diretamente seu ordenamento jurídico. Entretanto, na prática, observa-se que o direito brasileiro frequentemente favorece os interesses de uma comunidade religiosa específica, principalmente a católica. Isso sugere que, além do pluralismo jurídico, há uma integração de preceitos religiosos no próprio processo legislativo, mesmo que de forma inconsciente, devendo-se salientar que não se está negando a existência de um pluralismo jurídico no Brasil, a religião é sim uma forma das pessoas tomarem outras decisões contrastantes às positivadas na lei brasileira, e possui todas as outras características para se dizer que exista sim este pluralismo, porém, o que se busca analisar é que ocorre algo além, é de fato um legislar de acordo com premissas de uma religião.
4. A religião no ordenamento jurídico brasileiro atual: laicidade e confessionalismo
Primeiro cabe entender o que se entende por Estado laico. O termo vem do termo grego laico, que significa leigo, e se trata de exprimir uma oposição ao religioso, àquilo que é clerical (Catroga, 2006). É um fenômeno político, visto que parte do Estado negar a religião e não a religião negar o Estado. Jorge Miranda explica:
A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo), em termos razoáveis. (MIRANDA, 2003, p. 409)
O Estado laico não significa um Estado ateu, ou um Estado que proíba a religião. A laicidade implica na neutralidade do Estado quanto à matéria religiosa, mas partindo desse pressuposto, emana o imperativo qual o Estado deverá permitir a liberdade religiosa sem promover a intolerância ou proibir a prática de outras doutrinas que não a uma escolhida.
Como já ficou demonstrado, em relação à história do Brasil, não há como se falar de laicidade. Também, é possível observar que é típico da Igreja Católica reagir contrariamente ao processo de secularização, não aceitando o enfraquecimento de sua hegemonia e é possível dizer que dificilmente se aceitaria como uma mera associação ou como um grupo social qualquer, sem nenhum tipo de privilégio. Tal como foi feito com o concílio de trento na época em que o protestantismo estava surgindo, temos mais recentemente o Encíclica Quanta Cura e a Syllabus (1864) de Pio IX, que nestes dois documentos a Igreja condena“erros modernos”: o laicismo. Conforme Roberto Romano (1979):
Durante toda a história posterior, a Igreja discutirá o pensamento laico, ora maçom, ora liberal, ora positivista, sobre a manutenção pública da fé como símbolo de poder. A existência de uma palavra, de um gesto, de uma imagem posta em lugar visível (como a figura do crucificado nos tribunais) representava para ela a certeza de que ainda não tinha sido reduzida à particularidade, exigida pelo discurso leigo e racionalista (ROMANO, 1979, p.89).
Tratando agora do Brasil, já foi exaustivamente mencionada a influência religiosa (em especial da Igreja Católica), no instituto de família, porém, se extrapola e muito o ramo familiar. Como por exemplo, temos o clero católico recebendo dinheiro do governo, sendo tratados como funcionários públicos, temos também o fato do Código Penal de 1830 proibindo a divulgação de doutrinas que fossem contrárias à doutrina católica, mas em especial da existência de Deus
Art. 278. Propagar por meio de papeis impressos, lithographados, ou gravados, que se distribuirem por mais de quinze pessoas; ou por discursos proferidos em publicas reuniões, doutrinas que directamente destruam as verdades fundamentais da existencia de Deus, e da imortalidade da alma.
Outro exemplo de uma intolerância religiosa demonstrada, é a tentativa de proibição da prática do espiritismo, ocorrendo a criminalização desta religião pelo Código Penal de 1890. No caso, não se torna crime ser espírita, mas se criminaliza a prática, e a religião se demonstra na práxis, ou seja, é fácil notar que na realidade se criminaliza o espiritismo. O bem jurídico tutelado neste caso seria a tranquilidade pública, mostrando ainda mais a preocupação da Igreja Católica, que por meio de seu poder, controla o Estado e busca proibir todas as práticas contrárias à sua doutrina.
Art. 157. - Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública
Também, deve ser mencionada a obrigação que detinham os professores de escolas religiosas de jurarem fidelidade à religião oficial, no caso, a religião católica. Bem como o fato de que somente aos católicos era permitido serem enterrados em cemitérios públicos, ao passo que os outros deveriam procurar cemitérios particulares (muito comum aos ingleses, visto que em sua maioria eram protestantes, fazendo-se criar a figura do “cemitério inglês”) ou fingirem serem católicos. Entretanto, deve-se analisar agora o momento atual e o histórico recente do Brasil em relação a este tema.
Hoje no Brasil, ainda as sociedades religiosas são isentas de dívidas relativas a impostos, como o IPTU, ISS etc. Também, o ensino religioso faz parte da grade de ensino de diversas escolas públicas, ao passo que as igrejas ainda recebem subsídios financeiros para as instituições de ensino e assistência social. Entretanto, ensinar religião não seria um problema, somente se torna um problema quando há claramente um privilégio quanto às religiões adeptas ao cristianismo em detrimento de qualquer outra, aliás, até mesmo incentivando uma discriminação com estas. Esse favorecimento religioso se manifesta no estilo antitéticos assimétricos, onde um conjunto de valores é visto como virtuoso, enquanto o outro é rejeitado, muitas vezes associado a práticas condenáveis, chamadas muitas vezes durante a história de pagãos pelos católicos.
Isto é, este favorecimento da religião católica/protestante (mesmo que em menor grau), ocorre em detrimento da rejeição de outros valores. Esse viés religioso e escolha de uma só religião como sendo a certa, impacta negativamente a tolerância e o desenvolvimento social, sendo especialmente prejudicial para grupos minoritários, como adeptos de religiões de matriz africana e muçulmana, que sofrem com a exclusão de seus valores e tradições. Para finalizar esse tópico, é importante lembrar que os professores ocupantes da cadeira de ensino religioso são funcionários públicos, logo, são financiados pelo povo, configurando na visão do Observatório da Laicidade na Educação, apoio financeiro do Estado a religiões específicas. Também temos o recorrente apontamento da bancada evangélica e/ou católica no plano legislativo, que fazem constante pressão no Congresso Nacional, o que dificulta a promulgação de novas leis que venham a melhorar a laicidade do Estado. Assim, comparar este termo à situação vivida no Brasil é no mínimo contraditório.
4.1. Problemas do Estado brasileiro no acolhimento de cultura “estrangeira” ao direito canônico.
O fato de o catolicismo e o direito canônico terem sido tão marcantes ao longo da história do pensamento jurídico brasileiro fez com que, mesmo após a separação dessas doutrinas, ainda fosse possível observar sua presença em algumas partes do ordenamento jurídico atual. Em especial, destacam-se casos relevantes no ramo do Direito de Família. Pode-se citar, por exemplo, a dificuldade de se garantir proteção jurídica a casamentos muçulmanos, visto que muitos deles são constituídos sob o regime de poligamia — um sistema familiar completamente rejeitado pelo ordenamento brasileiro.
Essa forma de poligamia baseia-se no livro sagrado do Islã, o Alcorão, que permite esse tipo de arranjo familiar, com algumas ressalvas. Para o islamismo, o ideal é que o homem tenha apenas uma esposa, de modo a evitar o ciúme entre elas. No entanto, ele poderá ter até quatro esposas, desde que consiga tratá-las de maneira igualitária, tenha condições financeiras para sustentar todas de forma justa e seja capaz de manter um afeto equilibrado entre elas. Ainda assim, não há reprovação moral quanto ao ato em si; condena-se apenas o homem ganancioso que não tenha capacidade de tratar todas com equidade.
Por outro lado, a bigamia ou a poligamia são duramente criticadas pela doutrina católica, que estabelece o casamento monogâmico e heterossexual como norma moral e religiosa, difundida por toda a sociedade e tradicionalmente considerada como expressão da lei divina (LESSA, 2012).
Historicamente, segundo Engels, a família pré-monogâmica surgiu na transição da fase média para a fase superior da barbárie (ENGELS, p. 68). A monogamia, ainda conforme Friedrich Engels (p. 71):
[...] não entra de modo algum na história como uma conciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de casamento. Pelo contrário, surge sob a forma de subjugação de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então.
Fato é que, sendo natural ou não, é impossível negar que a condenação da poligamia é fruto da religião cristã, a qual, no Brasil, por sua inserção forçada e coincidência temporal com a formação do país, acaba por se confundir com a própria moral do povo brasileiro. Ou seja, no Brasil, é muito difícil separar o espírito brasileiro do espírito cristão.
Outro instituto bastante problemático é o ensino religioso nas escolas, que, como dito anteriormente, constitui disciplina obrigatória em algumas instituições públicas. Novamente, o problema não está no ensino da religião em si, mas no fato de se ensinar apenas uma, o que resulta na diminuição ou até mesmo marginalização das demais. Por exemplo, uma família adepta do islamismo que matricule seu filho em uma escola pública que ofereça esse componente curricular terá que aceitar que ele seja constantemente doutrinado sobre outra religião — e apenas essa —, sem ter contato com a sua própria, o que pode dar a impressão de que sua fé está errada, enquanto a outra é a correta. Além disso, como já mencionado, é comum que haja menosprezo por religiões não predominantes e a reafirmação da religião majoritária. E tudo isso ocorre com respaldo legal, ou seja, do ponto de vista jurídico, não há ilegalidade nessa situação. Isso demonstra a extrema dificuldade em se reconhecer o Brasil como um Estado efetivamente laico.
Entretanto, é importante reconhecer os avanços que o Brasil tem alcançado. Entre alguns exemplos, destaca-se a equiparação do casamento religioso ao civil, prevista no artigo 1.515 do Código Civil — e aqui é fundamental ressaltar que essa equiparação se estende a qualquer religião. Outro avanço significativo foi o reconhecimento do casamento homossexual. Em julgamento bastante polêmico, o Supremo Tribunal Federal (STF) ignorou completamente argumentos religiosos e, de forma histórica, reconheceu as uniões entre pessoas do mesmo sexo como formas legítimas de família, concedendo-lhes a mesma proteção conferida às uniões estáveis.
O Observatório da Laicidade na Educação emitiu parecer afirmando: “Em suma: o Estado brasileiro não é totalmente laico, mas passa por um processo de laicização”. Essa frase sintetiza o estudo. O Brasil não era laico — e ainda não é —, mas mudanças relevantes estão em curso, apontando para um avanço rumo à laicidade e ao desenvolvimento social do Direito de Família como um todo.
Conclusão
O Brasil, por mais que se entenda como um Estado laico, ainda tem um longo caminho até que se finalize o processo de laicização. Devido à sua formação, o país sempre foi bastante influenciado por toda a doutrina católica, tendo grande parte de seu direito inspirado pelo direito canônico. Atualmente, encontra-se em grande medida separado deste, mas, pela dificuldade em distinguir o que é propriamente brasileiro do que é religioso, não se pode negar a influência ainda exercida por esse direito no ordenamento jurídico atual.
Quanto à hipótese de que o que se vive no Brasil, em relação à religião, se trate de um pluralismo jurídico, a situação, como evidenciado, é distinta. Embora não se descarte a existência de certo pluralismo jurídico, entende-se que, no Brasil, as leis civis frequentemente se confundem com as normas da doutrina católica (ou cristã como um todo), de modo que não se pode falar propriamente em um pluralismo, mas sim em uma constituição legal que incorpora pressupostos religiosos.
Contudo, mesmo nos ramos que mais sofreram influências, como o Direito de Família, é possível notar mudanças abruptas e diversos avanços quanto à liberdade religiosa e à secularização. Assim, adota-se uma postura otimista em relação ao futuro: embora ainda haja, de fato, muito a ser transformado, houve um avanço significativo no processo de laicização do Estado. Apesar dos costumes tão arraigados na sociedade, é notório o desenvolvimento do Direito de Família brasileiro e sua progressiva separação do direito canônico. No entanto, alerta-se que, em relação a outros campos do saber jurídico, o caminho ainda parece ser longo.