Sumário: Introdução. Capítulo I - O ITCMD no Direito Positivo. 1.1 - O ITCMD na Constituição Federal . 1.2 - O ITCMD no Código Tributário Nacional. 1.3 - O ITCMD na Legislação Paulista. Capítulo II - Análise da lei paulista do ITCMD. 2.1 - A Regra Matriz de Incidência do ITCMD na transmissão."causa mortis". 2.1.1 - O critério material na regra matriz de incidência do. ITCMD - ""causa mortis".. 2.2 - As regras de isenção do ITCMD na transmissão "causa mortis"... 2.2.1 - Ótica do Espólio (universalidade dos bens) versus Ótica do Contribuinte (quinhão adquirido).2.2.2 - Ótica do herdeiro e ótica do donatário. 2.2.3 - Isenção na legislação pretérita. 2.3 - - Análise e interpretação das hipóteses de isenção. 2.3.1 - Extinção de usufruto - hipótese de não incidência do imposto, que exclui a possibilidade de isenção. Capítulo III- Interpretação das regras de isenção pela Administração Tributária Paulista. 3.1 – Exposição. 3.2 – Crítica. 3.2.1 - Inconstitucionalidade da interpretação adotada pela Secretaria da Fazenda. Capítulo IV - A escolha da melhor interpretação. 4.1 - Efeitos das diferentes interpretações. 4.2 - A escolha conforme as regras. Conclusão. Bibliografia. Anexo I. Anexo II. Anexo III
INTRODUÇÃO
O presente texto foi elaborado como Trabalho de Conclusão de Curso para o Curso de Especialização em Direito Tributário promovido pelo IBET em Ribeirão Preto, SP.
Tem como objeto de estudo as normas de isenção tributária do ITCMD - Imposto Sobre Transmissão Causa Mortis e Doação - vigente do Estado de São Paulo, aplicáveis especificamente às transmissões "causa mortis".
Retoma trabalho anterior do mesmo autor (Jardim, 2003), para novo desenvolvimento, desta feita com a utilização das técnicas de estudo analítico do direito tributário, adquiridas no Curso, aplicadas no exame da gênese do imposto, com ênfase no estudo da regra matriz de incidência tributária e seu reflexo nas regras de isenção, técnicas que se revelaram extremamente adequadas, tanto para o estudo das normas e sua interpretação como para a identificação dos equívocos em que incorre a Administração Pública na sua aplicação.
A escolha do tema deveu-se à interpretação dada pela Administração Fazendária do Estado às normas de isenção do imposto, que na visão do autor está em desacordo com a própria lei e conduz a resultados que afrontam os princípios constitucionais tributários da isonomia e da capacidade contributiva e normas complementares relativas à instituição do tributo, constantes do Código Tributário Nacional.
Como objetivo final, buscou-se oferecer uma interpretação dessas normas que seja coerente com a estrutura jurídica do tributo, fundamentada no direito positivo, a partir da Constituição Federal, com suporte no Código Tributário Nacional e na própria lei paulista de instituição do imposto, a Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, e que atenda àqueles princípios constitucionais que se reputam feridos.
O resultado final, caso venha a prevalecer a análise e interpretação aqui defendida, será o tratamento justo e igualitário que será dado aos herdeiros e legatários, contribuintes do imposto, realizando-se mais uma vez a razão de ser e o objetivo máximo do Estado de Direito.
Capítulo I - O ITCMD NO DIREITO POSITIVO
A instituição do ITCMD está prevista no artigo 155 da Constituição Federal e tem sua competência atribuída aos Estados e ao Distrito Federal, como se vê:
"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - transmissão "causa mortis" e doação, de quaisquer bens ou direitos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
(...)
§ 1.º O imposto previsto no inciso I: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
I - relativamente a bens imóveis e respectivos direitos, compete ao Estado da situação do bem, ou ao Distrito Federal;
II - relativamente a bens móveis, títulos e créditos, compete ao Estado onde se processar o inventário ou arrolamento, ou tiver domicílio o doador, ou ao Distrito Federal;
III - terá competência para sua instituição regulada por lei complementar:
a) se o doador tiver domicílio ou residência no exterior;
b) se o de cujus possuía bens, era residente ou domiciliado ou teve o seu inventário processado no exterior;
IV - terá suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal; ".
A Constituição Federal, percebe-se, tratou desse tributo de forma bastante sumária, limitando-se a indicar dois dos critérios formadores da regra matriz de incidência do imposto, através da designação do sujeito ativo, ente competente para sua instituição (Os Estados e o Distrito Federal) e da descrição de sua materialidade (transmissão "causa mortis" e doação, de quaisquer bens ou direitos). Paralelamente, outorgou ao Senado Federal a atribuição de fixar as alíquotas máximas do imposto e reservou para a Lei Complementar a definição da estrutura básica da regra de incidência, conforme previu em seu Art. 146:
"Art. 146. Cabe à lei complementar:
(...)
III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes;"
1.2 - O ITCMD no Código Tributário Nacional
Dentro dos limites atribuídos pela Constituição Federal, o Código Tributário Nacional então vigor, positivado que fora desde 1966, com status de Lei Complementar, já dispunha em relação à transmissão "causa mortis", então uma das materialidades do antigo "ITBI", de competência dos Estados e Distrito Federal:
"Art. 35. O imposto, de competência dos Estados, sobre a transmissão de bens imóveis e de direitos a eles relativos tem como fato gerador:
I - a transmissão, a qualquer título, da propriedade ou do domínio útil de bens imóveis por natureza ou por acessão física, como definidos na lei civil;
II - a transmissão, a qualquer título, de direitos reais sobre imóveis, exceto os direitos reais de garantia;
III - a cessão de direitos relativos às transmissões referidas nos incisos I e II.
Parágrafo único. Nas transmissões "causa mortis", ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários."
"Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos."
(...)
"Art. 39. A alíquota do imposto não excederá os limites fixados em resolução do Senado Federal, que distinguirá, para efeito de aplicação de alíquota mais baixa, as transmissões que atendam à política nacional de habitação."
Com tais disposições, preenchiam-se também os critérios do sujeito passivo - os herdeiros ou legatários - e parte do critério quantitativo, pela designação da base de cálculo, os quais deveriam ser observados pela lei de instituição do imposto, à qual cumpriria também a complementação do critério quantitativo com a fixação da alíquota incidente, dentro dos limites fixados pelo Senado.
1.3 - O ITCMD na Legislação Paulista
Vinculado às disposições da Constituição Federal e do Código Tributário Nacional, o Estado de São Paulo veio a instituir o Imposto sobre Transmissão "Causa Mortis" e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos - ITCMD, através da Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, depois alterada pela Lei 10.992, de 21.12.2001, ambas elaboradas de acordo com os parâmetros estabelecidos nas normas superiores.
Capítulo II - ANÁLISE DA LEI PAULISTA DO ITCMD
Para que se alcance a finalidade deste trabalho faz-se necessário, em primeiro lugar, o estudo das normas de incidência e de isenção do imposto nas transmissões "causa mortis", com especial atenção para seus critérios pessoais e materiais; a análise desses critérios e sua conjugação, no âmbito de uma interpretação sistemática, fornecerão os elementos necessários para a análise crítica da interpretação estatal, que se quer realizar.
2.1 - A Regra Matriz de Incidência do ITCMD na transmissão "causa mortis"
Do texto da lei paulista - Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, alterada pela Lei 10.992, de 21.12.2001, podemos extrair todos os enunciados necessários à identificação das circunstâncias materiais, temporais, espaciais e pessoais em que o ITCMD se torna devido, especificamente nas hipóteses de transmissão "causa mortis", os quais, na proposta de Barros Carvalho (2004), dão consistência à denominada regra matriz de incidência do imposto, instrumento de análise estruturado na forma de critérios:
a) Critérios do antecedente (descritor):
- Critério material: (comportamento humano = verbo + complemento) o verbo "transmitir" e o complemento "qualquer bem ou direito havido por sucessão legítima ou testamentária", adicionado da explicação de que nessas transmissões "ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários" (art. 2º, caput, inciso I e parágrafo 1º);
- Critério temporal (relativo ao tempo em que ocorre o fato tributável), "a data da abertura da sucessão" (art. 9º, §1º e art. 15);
- Critério espacial (relativo ao espaço, território onde será cobrado o tributo), o território do Estado de São Paulo, ente instituidor do imposto (introdução e art. 1º da Lei), conjugado ora com a localização do imóvel (art. 3º, §1º) ora com o local de processamento do inventário ou arrolamento, quando se tratar de bem móvel, o título e o direito em geral, inclusive os que se encontrem em outro Estado ou no Distrito Federal (art.3º, §2º).
b) Critérios do conseqüente (prescritor):
- Critérios pessoais:
- Como sujeito ativo (com direito de cobrar o imposto), o Estado de São Paulo, ente que promulgou a lei instituidora do imposto (Lei 10.705, introdução e art. 1º) e
- Como sujeito passivo (aquele que deve pagar o imposto), na condição de contribuinte, o herdeiro ou o legatário (art. 7º, inciso I);
- Critério quantitativo:
- Como base de cálculo (valor escolhido para expressar a grandeza econômica da materialidade escolhida para imposição do tributo), o valor venal do bem ou direito transmitido (Art. 9º e §1º, e os art. 10 e 13);
- Como alíquota (porcentagem que incide sobre o valor apreciado), o percentual de 4 % (quatro por cento) (Art. 16);
- Critério temporal (o tempo do cumprimento da obrigação), o prazo de 30 (trinta) dias após a decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar seu pagamento (Art. 17).
De posse dos critérios enunciados, é possível identificar a natureza do tributo, quando é devido, a forma como deve ser calculado, quem tem direito de cobrá-lo e quem é obrigado ao seu pagamento, e quando. E tais critérios, aparentemente, não guardam qualquer dificuldade ao intérprete. Aparentemente, como se verá.
2.1.1 - O critério material na regra matriz de incidência do ITCMD - "causa mortis"
A utilização, pelo legislador, do termo "transmissão" para descrever o critério material de incidência do imposto, embora coerente com a tradição jurídica, com a Constituição Federal e também com a legislação civil que trata das sucessões hereditárias, tem o condão de induzir a erro o intérprete.
Tal indução decorre de se tratar de termo largamente utilizado na linguagem comum, em razão das transmissões de rádio, televisão e telefonia ou mesmo de doenças, casos em que seu significado assume sentido diverso e oposto.
É que, quando se trata de doenças, ou de Internet, rádio ou televisão, o termo ganha um sentido muito específico, de processo originado a partir do transmitente, algo ou alguém, que transmite para outros as bactérias e vírus que se manifestarão como doenças, ou os sinais eletromagnéticos que serão decodificados em som e imagem através dos aparelhos adequados. Transmissão, nesses dois casos, é fenômeno interligado sempre com a origem daquilo que é transmitido, não com seu destino, nem sempre determinado. O verbo "transmitir" tem um sujeito - a fonte, aquele que transmite -, um objeto direto - aquilo que é transmitido -, e eventualmente um objeto indireto, quando se identifica o destinatário da transmissão.
E de tal forma onipresentes se fazem tais transmissões, que, intuitivamente, o intérprete é levado a associar o fenômeno transmissão "causa mortis"" como ato praticado por um sujeito que dá início ao processo de "transmissão" ou "transferência", identificando o destinatário da herança ou legado como objeto indireto do verbo.
Percebe-se, desde logo, a impropriedade dessa associação; se os bens de propriedade de alguém somente se transferem, na transmissão "causa mortis", com o seu falecimento, não há como conceituar essa transmissão como fenômeno originado pelo "de cujus". Este, pelo simples fato de não mais existir, não pode dar origem a nada.
Embora não se possa olvidar que, por ficção legal, a transferência dos bens do falecido para seus herdeiros ou legatários ocorre desde logo, é necessário lembrar que ela somente se perfaz com a "aceitação" da herança ou legado pelos seus destinatários legais.
Tem-se, em conclusão, que na transmissão "causa mortis" o verbo transmitir não tem como sujeito a fonte, a origem do que é transmitido; o fenômeno da transmissão da herança ou legado somente ocorre pela vontade de seus destinatários, de acordo com as normas legais que regulamentam a transferência da propriedade dos bens que subitamente tornam-se desvinculados de um proprietário, em razão de seu falecimento. A transmissão, no caso, ocorre pela iniciativa e vontade dos destinatários da herança ou legado.
Apresenta-se, então, uma situação que inverte totalmente o sentido comum de "transmissão", de fenômeno que depende de ato ou fato originário da "fonte" da transmissão: a transmissão "causa mortis" depende de ato originário do destinatário daquilo que é transmitido; se o herdeiro ou legatário não aceitam a herança ou legado, a transmissão não ocorre. O sujeito do verbo, aquele que pratica a ação de "transmitir", na transmissão "causa mortis", que constitui o núcleo do fato gerador do imposto, não é o "de cujus", nem seu espólio; são os destinatários, quando decidem pela aceitação da herança ou legado.
Evidentemente, não se está aqui a discutir gramática. Trata-se, no caso, de identificar a figura do contribuinte, ou seja, daquele que pratica o ato tributável da "transmissão" e, por conseqüência, sujeita-se ao ônus da incidência do imposto.
Essas breves considerações conduzem a uma definição mais precisa do fenômeno da transmissão "causa mortis" como critério material de incidência do imposto, revelando-o como decorrente da vontade, manifesta ou presumida, daquele que adquire a propriedade da herança ou de parte dela; e se é decorrente dessa vontade, sua expressão material vincula-se, obviamente, àquela parte do patrimônio que é alcançada por essa mesma vontade. Daí que, para fins de imposição de tributos, que leva em conta, sempre, a capacidade contributiva manifestada, não se pode tratar de transmissão de herança ou legado como um fenômeno único, abrangedor da totalidade do patrimônio deixado pelo de cujus, havendo que se considerá-la de forma individualizada em relação a cada adquirente de herança ou legado. Em outras palavras, devem se considerar como havidas tantas transmissões quantos forem os beneficiários.
O quanto é precisa essa definição, afere-se da própria estruturação jurídica da incidência do imposto, moldada de forma com ela coerente. Confira-se, para tanto, o que dispõe o parágrafo único do artigo 35 do Código Tributário Nacional, reproduzido também no § 1º do Art. 2º da Lei Nº 10.705 de 28 de dezembro de 2000, que instituiu o ITCMD no Estado de São Paulo:
"Art. 35. (...)
Parágrafo único. Nas transmissões "causa mortis", ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos sejam os herdeiros ou legatários."
Ora, se o fato gerador é a transmissão de bens, e se ocorrem tantos fatos geradores distintos - entenda-se, tantas transmissões - quantos sejam os herdeiros ou legatários, é de se concluir que, na sucessão "causa mortis", a transmissão é fenômeno vinculado à pessoa que adquire os bens; ocorrem transmissões distintas, uma para cada herdeiro ou legatário.
Além da disposição explícita constante dos textos legais acima referidos, uma outra deve ser considerada, ainda na própria lei de instituição do imposto, Lei 10.705, a qual enuncia com clareza o vínculo do fato com a pessoa do adquirente, ao dispor, no caput do artigo 2º, que o imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito "havido", ou seja, obtido, adquirido, recebido; dito de outra forma, se não houver aquisição, obtenção ou recebimento de bens, não se configura a transmissão que é objeto de incidência do imposto:
"Artigo 2º - O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
I - por sucessão legítima ou testamentária, inclusive a sucessão provisória;
II - por doação."
Cumpre observar que o tema, agora objeto de interpretação, era resolvido de forma explícita no Código Civil de 1916, que considerava a transmissão causa mortis como forma de aquisição de propriedade, conforme dispunha o artigo 530, inciso IV, do Código Civil de 1916; o dispositivo mereceu observação de NERY JUNIOR (2002), que citou jurisprudência do STJ:
"Aquisição da propriedade imóvel pela abertura da sucessão. O direito hereditário é modalidade de aquisição da propriedade imóvel, que, como a posse, se transfere aos herdeiros com a abertura da sucessão (STJ, 4ª. T, Resp 48199-MG, rel. M. Sálvio de Figueiredo Teixeira, v.u., j.30.5.1994, DJU 27.6.1994, P.16990)
E se dúvida restasse quanto à qualidade da interpretação defendida, haveria ainda o respaldo de um dos mais completos dicionários da língua portuguesa, o prestigiado Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa Caldas Aulete (5a. edição, 1970, Editora Delta S.A.), que registra, sob o verbete "transmissão", para a expressão jurídica "transmissão de herança", o sentido de "aquisição dela por doação ou por direito de sucessão", ou seja, ato do adquirente.
A transmissão "causa mortis", portanto, quando menos para fins tributários, em nenhuma hipótese estará vinculada à unicidade do patrimônio deixado pelo "de cujus", individualizando-se sempre em função da pessoa do adquirente dos bens, na condição de herdeiro ou legatário; a única situação em que ocorrerá uma única transmissão, que incluirá a totalidade do patrimônio deixado, é aquela em que houver um único herdeiro.
A exaustiva argumentação em torno do critério material de incidência, será visto adiante, não é vã, pois se relaciona diretamente com o principal ponto de conflito na interpretação de algumas das normas de isenção do imposto.
2.2 - As regras de isenção do ITCMD na transmissão "causa mortis"
Conforme a melhor doutrina, as normas de isenção tributária são construídas tendo-se em conta as normas de incidência. Os critérios materiais ou pessoais utilizados para a concessão de isenções são os mesmos utilizados para a configuração do fato gerador do imposto, aos quais se acrescentam atributos que os diferenciam e, aos olhos do legislador, justificam a exclusão da incidência tributária.
Nesse sentido encontra-se, em Paulo de Barros Carvalho, que "a regra de isenção investe contra um ou mais dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os parcialmente", e "o que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do critério do antecedente ou do conseqüente" (Curso de Direito Tributário, 17ª edição, Editora Saraiva, 2005). Em Hugo de Brito Machado, que "A norma geral descreve a situação que constitui o fato gerador do tributo. Define a hipótese de incidência tributária. A norma específica define a hipótese de isenção tributária, que será caracterizada por uma particularidade que faz essa hipótese diversa daquela definida como fato gerador do tributo" e "tem-se que a norma de isenção pressupõe a norma de tributação, à qual faz exceção" (Comentários ao Código Tributário Nacional, volume III, Editora Atlas, 2005)
A forma como são construídas as normas de isenção, a partir da especificação, dentre os fatos inseridos no campo de incidência, de certas características que determinam a não-cobrança do tributo, independe do viés doutrinário adotado pelo intérprete, seja o que considere a isenção como um fenômeno posterior no tempo, que sucede ao da incidência e exclui os efeitos desta, como entendem aqueles que abraçam a definição legal do instituto, seja o que, atento à natureza da isenção e seus efeitos no mundo jurídico, reconheça nela um fenômeno precedente ou concomitante ao da incidência e que a limita desde o início, através de restrições adicionadas aos mesmos critérios utilizados na regra matriz de incidência para a instituição do tributo.
Na legislação paulista, as isenções de ITCMD nas transmissões "causa mortis" encontram-se previstas no Capítulo II, art. 6º da Lei nº 10.705, de 28 de dezembro de 2000, com as alterações da Lei 10.992, de 21.12.2001:
"CAPÍTULO II
Das Isenções
Artigo 6º - Fica isenta do imposto: (Redação dada ao artigo 6º pelo inciso I do art. 1º da Lei 10.992 de 21-12-2001; DOE 22-12-2001; efeitos a partir de 01-01-2002)
I - a transmissão "causa mortis":
a) de imóvel de residência, urbano ou rural, cujo valor não ultrapassar 5.000 (cinco mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs e os familiares beneficiados nele residam e não tenham outro imóvel;
b) de imóvel cujo valor não ultrapassar 2.500 (duas mil e quinhentas) UFESPs, desde que seja o único transmitido;
c) de ferramenta e equipamento agrícola de uso manual, roupas, aparelho de uso doméstico e demais bens móveis de pequeno valor que guarneçam os imóveis referidos nas alíneas anteriores, cujo valor total não ultrapassar 1.500 (mil e quinhentas) UFESPs;
d) de depósitos bancários e aplicações financeiras, cujo valor total não ultrapassar 1.000 (mil) UFESPs;
e) de quantia devida pelo empregador ao empregado, por Institutos de Seguro Social e Previdência, oficiais ou privados, verbas e prestações de caráter alimentar decorrentes de decisão judicial em processo próprio e o montante de contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participações PIS-PASEP, não recebido em vida pelo respectivo titular;
f) na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário tiver sido o instituidor;
2.2.1 - Ótica do Espólio (universalidade dos bens) versus Ótica do Contribuinte (quinhão adquirido)
Ao se iniciar o estudo dos dispositivos isencionais transcritos, é imprescindível que se tenha em mente o disposto no §1º do art. 2º da lei paulista (Lei 10705), previamente mencionado no item deste trabalho:
§ 1º - Nas transmissões referidas neste artigo, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários.
A conjugação do dispositivo que determina a ocorrência de tantos fatos geradores - "transmissões "causa mortis"" ou "doações", conforme a própria definição legal do fato gerador - quantos forem os herdeiros ou legatários ou "donatários", com as regras de isenção transcritas, as quais se referem sempre ao fato gerador, modulando seus efeitos conforme determinadas características do fato concreto, relativas aos critérios material ou pessoal utilizados na conformação legal daquele fato, mostra-se agora essencial para a interpretação dos dispositivos isencionais.
Cumpre, antes de se analisarem cada uma das hipóteses de isenção, examinar o que diz o art. 6º. e seu inciso I: "Fica isenta de imposto", a "transmissão" "causa mortis". Qual o significado dessa expressão "transmissão"? Seria a totalidade dos bens do espólio, ou cada parte em que este se divide, para configurar "transmissão" sujeita à incidência do imposto? A resposta a esta pergunta é fundamental para a continuidade do processo de interpretação, pois conforme a resposta, os dispositivos serão interpretados a partir da posição que se poderia denominar de "ótica do espólio" ou do "patrimônio universal", que vê a totalidade dos bens da herança, ou da "ótica do herdeiro (ou legatário)", que vê a "transmissão "causa mortis"" individualizada, a parcela da herança atribuída a cada um deles.
Dado que a isenção é fenômeno que somente ocorre quando presente um fato que determine a incidência de um tributo - o denominado "fato gerador", e que ela irá influir justamente na forma como se darão tal incidência ou seus efeitos, através da fixação de atributos específicos a esses fatos, atributos que quando presentes determinam a exclusão dessa incidência ou de seus efeitos, parece razoável interpretar que a expressão "transmissão "causa mortis"", no inciso I do art. 6º, refere-se especificamente à "transmissão" como "fato gerador"; e se assim se interpreta, conclui-se que o significado da expressão inserida no inciso I corresponde ao de cada parcela do espólio que irá configurar "transmissão" individualizada, o que corresponde à "ótica do herdeiro".
A resposta escolhida, além de se mostrar coerente com as premissas que a ela conduziram, atende a uma característica óbvia do ITCMD: como qualquer imposto, incide sobre riqueza auferida, e quem a aufere são os herdeiros ou legatários, que justamente por isso são designados contribuintes; logo, o patrimônio a ser objeto de transmissão, sob o ângulo do espólio, nada significa em termos de incidência do imposto; essa significação somente se manifesta no mundo jurídico quando uma parcela, ou cada parcela do espólio, transfere-se para o patrimônio do herdeiro ou legatário; e somente neste momento ganha sentido qualquer consideração relativa a eventuais isenções.
2.2.2 - Ótica do herdeiro e ótica do donatário
Conquanto o objeto do presente estudo cinja-se às transmissões "causa mortis", mostra-se oportuna uma breve incursão à tributação das doações, porque também elas, para efeito de tributação, devem ser individualizadas por destinatário, no caso o donatário, conforme dispõe o mesmo § 1º, art. 2º, da Lei 10705, já mencionado no item 2.1, na identificação do critério material do imposto na transmissão "causa mortis":
"Artigo 2º - O imposto incide sobre a transmissão de qualquer bem ou direito havido:
(...)
§ 1º - Nas transmissões referidas neste artigo, ocorrem tantos fatos geradores distintos quantos forem os herdeiros, legatários ou donatários."
Também o limite de valor de imóvel para concessão de isenção, no caso de transmissão "causa mortis", de até 2500 UFESPs que se encontra no art. 6º, inciso I, alínea b, encontra-se reproduzido no inciso II do mesmo artigo, alínea a, para quaisquer isenções concedidas a doações:
"Artigo 6º - Fica isenta do imposto:
(...)
II - a transmissão por doação:
a) cujo valor não ultrapassar 2.500 (duas mil e quinhentas) UFESPs;"
A coincidência de condições de individualização dos fatos geradores e de limites de isenção, nas duas espécies de transmissão, a "causa mortis" e a doação, conduz à assertiva de que a mesma interpretação defendida para a concessão das isenções nas transmissões "causa mortis" - a ótica do herdeiro, deveria ser também aplicada para as isenções sobre doações. Seria a "ótica do donatário".
E de fato, assim é. Com uma ressalva: no caso das doações, não é necessário o trabalho do interprete, pois existe uma "interpretação oficial" que declara o mesmo entendimento, conforme disposto no Regulamento do ITCMD, aprovado pelo
Decreto nº 46.655, de 1º de abril de 2002, em dispositivo que cuida da dispensa de cumprimento de obrigações acessórias, art. 25, parágrafo único, item 1:
"Artigo 25 - Na hipótese de doação, o contribuinte fica obrigado a apresentar, até o último dia útil do mês de maio do ano subseqüente, uma declaração anual relativa ao exercício anterior, onde deverá relacionar e descrever todos os bens transmitidos a esse título e respectivos valores venais, identificando os doadores e donatários, conforme disciplina estabelecida pela Secretaria da Fazenda.
Parágrafo único - Fica o contribuinte dispensado de cumprir a obrigação prevista no "caput", quando:
1 - a soma das doações realizadas entre o mesmo doador e donatário, no período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de cada exercício, não ultrapassar o valor correspondente a 2.500 UFESPs e desde que se refiram apenas aos bens relacionados no inciso II do artigo 2º ou aos de pequeno valor, descritos na alínea "c" do inciso I do artigo 6º."
Conforme se depreende do dispositivo, ao ITCMD não interessa quantas doações, a quantos donatários, fez o doador, e sim, que o mesmo donatário, para fins de isenção, não tenha recebido de um mesmo doador valor superior a 2.500 UFESPs. É uma clara manifestação da "ótica do donatário", que leva em conta a capacidade contributiva manifestada pelo beneficiário da transmissão.
2.2.3 - Isenção na legislação pretérita.
Finalmente, não custa lembrar, para consolidação do entendimento exposto, que o próprio Estado, até que viesse a lume a lei 10.705, sempre reconheceu, explicitamente, que os casos de isenções em transmissões "causa mortis" vinculavam-se à capacidade contributiva do herdeiro. Tal reconhecimento se comprova pelo exame do texto da Lei nº 9.591, de 30 de novembro de 1966, em cujo art. 5º se fazia referência expressa ao montante recebido pelo herdeiro como limite de valor para que não fosse cobrado o imposto:
"Lei nº 9.591, de 30 de dezembro de 1966.
Dispõe a respeito do imposto sobre transmissão de bens imóveis e direitos a eles relativos
(...)
Artigo 5.º - Não é devido o imposto:
(...)
VI - nas heranças, consideradas a parte de cada herdeiro, até o valor de Cr$ 500.000,00 (quinhentos mil cruzeiros);"
2.3 - Análise e interpretação das hipóteses de isenção
Pelo que se viu até agora, o entendimento de que as normas de isenção nas transmissões "causa mortis" devem ser interpretadas a partir da "ótica do herdeiro", que também leva em conta a capacidade contributiva manifestada pelo beneficiário, encontra paradigma tanto na própria lei de instituição do ITCMD atualmente em vigor quanto na lei que a antecedeu, a de nº 9.591, de 30 de dezembro de 1966, circunstância que mais o fortalece e determina sua escolha para o desenvolvimento deste estudo.
Definido o ângulo sob o qual serão analisados os dispositivos isencionais - o da ótica do contribuinte, pode-se passar ao exame de cada um deles, anotando-se, sempre, quais os critérios conformadores da hipótese de incidência que são restringidos pelo dispositivo.
"a) de imóvel de residência, urbano ou rural, cujo valor não ultrapassar 5.000 (cinco mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs e os familiares beneficiados nele residam e não tenham outro imóvel;"
O dispositivo transcrito - letra a do art. 6º, inciso I retro mencionado, interfere nos critérios da regra de incidência do imposto, restringindo a tributação em face de atributos do critério material - imóvel de residência, de valor limitado, e do critério pessoal - herdeiros residentes no próprio imóvel e que não tenham outro imóvel.
A redação do texto é sofrível. Primeiro, atribui um limite pouco preciso para a concessão do benefício, o de "familiares beneficiados"; depois, porque acrescenta uma condição descrita em termos não-jurídicos, com a utilização de um verbo - "desde que não tenham" - desconhecido no âmbito da jurisdicização da propriedades imobiliárias e das relações a ela vinculadas. A imprecisão do texto desperta várias indagações:
1 - A expressão "imóvel de residência" abrange tanto o imóvel total ou as frações ideais em que o mesmo se divida, para efeito de pagamento da parte de cada herdeiro?
2 - Qual o significado da expressão "não tenham outro imóvel"? Refere-se à propriedade plena, à posse, ao usufruto, à nua-propriedade, à fração ideal, ou a qualquer uma delas?
3 - A expressão "familiares" refere-se a familiares do "de cujus"? Em caso positivo, até que grau de parentesco?
4 - Deve-se entender que a lei exige que mais de um familiar resida no imóvel, para que seja concedido o benefício?
5 - Se houver um único familiar, que receba sozinho a integralidade do imóvel, no valor de 5.000 UFESPs, será ele beneficiado com a isenção?
6 - Se houver um único imóvel com dois herdeiros, um deles residente nesse imóvel, o outro não, a isenção beneficiará a ambos, ou será aplicada apenas sobre a fração ideal recebida por um deles?
7 - Se um único imóvel componente do espólio tiver sua propriedade dividida ao meio, para atender a meação de cônjuge sobrevivente e a herança de um descendente, sendo cada parte ideal no valor de 5.000 UFESPs, de um imóvel cujo valor total seja de 10.000 UFESPs, será o herdeiro beneficiado com a isenção?
8 - Se houver cinco familiares, e cada um deles receber uma fração ideal de imóvel no valor de 5.000 UFESPs, de um imóvel cujo valor total seja de 25.000 UFESPs, cada um deles será beneficiado com a isenção prevista no dispositivo?
9 - Se houver cinco familiares e cinco imóveis no espólio, e cada um deles receber de herança um imóvel que atenda aos critérios material e pessoal da isenção - imóvel residencial, de valor limitado a 5.000 UFESPs, herdeiro nele residente que não tenha outro imóvel, cada um desses familiares será beneficiado com a isenção prevista?
Na busca de coerência com a definição do fato gerador do imposto e da vinculação das isenções a esse fato, parece razoável adotarem-se as seguintes respostas:
R1 - A expressão "imóvel de residência" abrange tanto a propriedade total quanto suas frações ideais, em caso de divisão. Sob o ângulo da lei civil, a fração ideal de imóvel constitui-se também em imóvel, sujeitando-se às mesmas regras de transmissão de propriedade. Embora tal abrangência não esteja declarada expressamente no dispositivo isencional, resulta implícita do próprio texto, que se reporta a múltiplos herdeiros - "familiares que nele residam"-, pois a única forma de se identificar um fatogerador em relação a cada herdeiro, como exigido pela lei tributária, é atribuir a ele uma fração ideal daquele imóvel, aliás, de forma coerente com as próprias disposições da lei civil, relativas às sucessões.
R2 - A expressão "não tenham" é de fato dúbia, porque se utiliza de um vocábulo carente de conteúdo jurídico específico. Entretanto, a lei privilegia os familiares que se utilizem do imóvel como residência, indicando que o critério "utilização" é determinante; daí, pode-se inferir que a expressão "não tenham outro imóvel" tem o sentido de "não tenham outro imóvel de que possam se utilizar"; e sob essa interpretação, estariam excluídos os familiares que tivessem a propriedade plena ou o domínio útil de outro imóvel residencial, ou seu usufruto; e seriam beneficiados os que tivessem apenas a nua-propriedade de outro imóvel.
R3 - A expressão "familiares" deve referir-se a "familiares" do autor da herança ou do legado; quanto ao grau de parentesco, à falta de especificação, é razoável entender que qualquer grau de parentesco que permita a aquisição de herança deve ser aceito como suficiente para reconhecimento da isenção.
R4 - Não. O fato de o imóvel ser atribuído a um único herdeiro, mesmo que haja outros, contemplados com outros bens do espólio, não pode impedir a aplicação de isenção, desde que presentes os atributos exigidos, relativos ao critério pessoal: residente no imóvel e não proprietário ou usufrutuário de outro. O fato de o texto utilizar a expressão "familiares" no plural não pode ter o significado de "mais de um" como requisito, em razão de as transmissões "causa mortis", como fatos geradores de imposto, serem consideradas, por força de lei, como individualizadas em relação a cada herdeiro ou legatário, conforme disposto no art. 2º, § 1º da Lei 10.705, retro transcrito.
R5 - Sim. O fundamento da resposta encontra-se na resposta R4, acima.
R6 - Se, de dois herdeiros do imóvel, apenas um nele reside, apenas este será beneficiado pela isenção. Justifica-se essa solução a partir do critério de interpretação adotado, o do ponto de vista do contribuinte, que leva a identificar, no caso, dois fatos geradores "transmissão causa mortis", um praticado pelo herdeiro residente, beneficiado com a isenção, e outro, praticado pelo herdeiro não residente, sujeito, no caso, à incidência plena do imposto.
R7 - Sim. A fração ideal incluída na meação do cônjuge supérstite não configura transmissão "causa mortis", porque não ocorre, no caso, "transmissão", mas apenas a separação, do monte, daquela parte que pertence, como sempre pertenceu, ao próprio cônjuge. Logo, se o imóvel, ou sua fração ideal, recebidos pelo herdeiro atende os requisitos materiais - imóvel residencial no valor de até 5.000 UFESPs, e a pessoa do herdeiro atende aos requisitos pessoais, deve ser atribuída a isenção.
R8 - "Fração ideal de imóvel" e "imóvel" têm, para efeitos tributários, o mesmo significado, como exposto na R1 acima. No caso, cada um dos cinco herdeiros, que receber uma fração ideal de imóvel residencial de valor até 5.000 UFESPs, deve ser beneficiado com a isenção, uma vez que a regra de isenção refere-se sempre ao fato gerador ocorrido, que, no caso, é individualizado por herdeiro, por determinação de lei. (Lei 10705, art. 2º, §1º, já mencionado).
R9 - Cada um dos herdeiros deve ser beneficiado com a isenção, relativamente ao imóvel que recebeu. O fundamento é o mesmo da R8, acima.
A isenção prevista na alínea b seguinte apresenta-se com requisitos menos complexos, reduzindo-se por isso a quantidade de indagações a ela referentes:
"b) de imóvel cujo valor não ultrapassar 2.500 (duas mil e quinhentas) UFESPs, desde que seja o único transmitido;"
Encontra-se aqui a previsão de dois atributos, um relativo ao critério material - que o valor do imóvel não ultrapasse 2.500 UFESPs, e outro pertinente ao critério pessoal - que o contribuinte tenha recebido como herança um único imóvel.
As poucas dúvidas que poderiam ser suscitadas seriam relativas ao sentido da expressão "desde que seja o único transmitido", daí se derivando as seguintes perguntas:
10 - A expressão "desde que seja o único transmitido" refere-se ao total de imóveis existentes no espólio, ou aos disponíveis para transmissão, ou ao total de imóveis transmitidos (adquiridos) por cada um dos herdeiros?
11 - O benefício é concedido ao herdeiro que recebe apenas uma fração ideal de imóvel, fração cujo valor esteja dentro do limite de até 2.500 UFESPs, embora o valor do imóvel inteiro seja superior a esse limite?
Para esclarecê-las, torna-se mais uma vez necessário o recurso a duas premissas adotadas no desenvolvimento deste estudo:
- primeira, a de que o verbo "transmitir", no âmbito da transmissão "causa mortis", tem o sentido de "adquirir", ponto discutido quando se tratou do critério material a regra matriz de incidência do imposto, no capítulo II, item 2.1;
- segunda, a de que as regras de isenção devem ser interpretadas sob a "ótica do contribuinte", que vê a "transmissão "causa mortis"" como fato gerador do imposto - individualizada por herdeiro ou legatário, e não sob a ótica do espólio, irrelevante para incidência do tributo, discutida no capítulo II, item 2.2.1.
Assumidas tais premissas, surge de pronto a primeira resposta, que não inspira indagações complementares:
R10 - A expressão "desde que seja o único transmitido" refere-se à quantidade de imóveis adquiridos por cada um dos contribuintes, em razão da segunda premissa mencionada. Não importa, no caso, se há mais de um imóvel no monte, a ser distribuído aos herdeiros, mas apenas se o herdeiro recebeu, no seu quinhão, um único imóvel.
Quanto à questão 11, partindo-se, mais uma vez, das duas premissas acima e considerando-se também a igualdade de significado dos termos "imóvel" e "fração ideal de imóvel", para efeitos tributários, já discutida na resposta R1, é razoável entender-se que o benefício aplica-se tanto à aquisição de imóveis na sua integralidade quanto na aquisição de frações ideais, num e noutro caso observado o valor limite estabelecido no dispositivo. A resposta, então seria:
R11 - A fração ideal de imóvel recebida pelo herdeiro ou legatário deve ser objeto de isenção, desde que seu valor não ultrapasse 2.500 UFESPs, sendo irrelevante o valor total do imóvel, porque sua propriedade, e conseqüentemente seu valor, foi dividida em partes e cada uma dessas partes, que por si corresponde a um imóvel, foi objeto de transmissão para um diferente herdeiro ou legatário, configurando-se várias "transmissões "causa mortis"", em conseqüência da previsão legal que individualiza os fatos geradores em relação aos herdeiros ou legatários.
Quanto às hipóteses de isenção previstas nas alíneas c e d, não se vislumbram indagações que não sejam aquelas relacionadas com a interpretação das isenções pela "ótica do espólio" ou pela "ótica do contribuinte":
"c) de ferramenta e equipamento agrícola de uso manual, roupas, aparelho de uso doméstico e demais bens móveis de pequeno valor que guarneçam os imóveis referidos nas alíneas anteriores, cujo valor total não ultrapassar 1.500 (mil e quinhentas) UFESPs;
d) de depósitos bancários e aplicações financeiras, cujo valor total não ultrapassar 1.000 (mil) UFESPs";
Objetivamente, a indagação cabível é se os valores totais estabelecidos nas duas alíneas referem-se ao valor total das espécies de bens existentes no monte ou ao valor de cada uma das transmissões efetuadas, por cada um dos herdeiros. A resposta deve seguir, por coerência, a mesma linha de entendimento já discutida nas respostas às perguntas R1 e R8 a R11, e seria redundância repeti-la aqui.
Na alínea seguinte, sob a letra e, o texto do dispositivo não parece exigir mais que a simples leitura para o entendimento completo de seu significado:
"e) de quantia devida pelo empregador ao empregado, por Institutos de Seguro Social e Previdência, oficiais ou privados, verbas e prestações de caráter alimentar decorrentes de decisão judicial em processo próprio e o montante de contas individuais do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e do Fundo de Participações PIS-PASEP, não recebido em vida pelo respectivo titular;"
Finalmente, sob a alínea f, encontra-se a última hipótese de isenção relacionada com a transmissão "causa mortis", que prevê o benefício fiscal na extinção de usufruto, condicionando-o, porém, a que tal usufruto tenha sido instituído pelo nu-proprietário:
"f) na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário tiver sido o instituidor;"
2.3.1 - Extinção de usufruto - hipótese de não incidência do imposto, que exclui a possibilidade de isenção.
O estudioso e o aplicador do direito, diante da isenção outorgada "na extinção do usufruto, quando o nu-proprietário tiver sido o instituidor" prevista na alínea "f" do art. 6º, podem ser tomados de compreensível perplexidade, pois tal dispositivo revela-se logicamente inaplicável.
Conforme discutido no Capítulo II, item 2.2, para que um determinado fato seja contemplado com isenção de imposto é necessário, como decorrência lógica, que esse fato, não fosse a isenção concedida, constituísse fato gerador do imposto, determinando seu pagamento. Ao isentar de imposto um fato diante de uma certa condição específica, diz a lei, indiretamente, que o mesmo fato, sem aquela condição, é determinante da obrigação de pagar o tributo.
A extinção de usufruto pela morte do usufrutuário, entretanto, de acordo com as normas gerais de instituição do ITCMD, estabelecidas no Código Tributário Nacional e incorporadas na lei paulista, não pode determinar o pagamento do imposto.
Para que haja incidência do imposto sobre "transmissão "causa mortis"", como já foi visto no Capítulo II, item 2.1, o legislador, ao formular a regra matriz de incidência do tributo, exigiu o atendimento a dois critérios essenciais: o material, configurado pela ocorrência de "transmissão "causa mortis" de quaisquer bens e direitos", individualizada por herdeiro ou legatário, e o pessoal, limitando o alcance da obrigação fiscal às pessoas dos herdeiros e legatários.
Em face desses dois critérios - e aqui o legislador tributário encontra-se vinculado às disposições do direito privado, por força do art. 110 do Código Tributário Nacional (Fernandes, 2002) - somente os bens e direitos que integram o espólio permitem atender ao critério material - quaisquer bens ou direitos - e ao critério pessoal - herdeiros e legatários - exigidos para configuração do fato gerador, porque apenas tais bens compõem a herança e são portanto passíveis de transmissão a herdeiros ou legatários, dado o vinculo existente entre "herança", "herdeiros" e "legatários", no âmbito do instituto jurídico da sucessão, regulamentado pelo direito privado.
Entretanto, no caso da extinção de usufruto, não remanesce direito algum que venha a compor a herança; não há qualquer bem ou direito que em decorrência dela venha a ser somado aos demais bens e direitos do espólio, para posterior "transmissão "causa mortis". O fenômeno patrimonial decorrente da extinção do usufruto, que é a consolidação da propriedade plena na pessoa do nu-proprietário, não é conseqüente de uma "transmissão", e sim de uma simples "extinção", cumprindo também aqui se respeitar as disposições do direito privado, agora as relativas ao instituto jurídico do usufruto.
Como na extinção do usufruto não há bens a inventariar, não há herança a ser objeto de transmissão "causa mortis" e nem herdeiros ou legatários beneficiados, não há fato gerador do imposto, por absoluta inexistência dos critérios exigidos para sua incidência. Ainda que, por casualidade, o nu-proprietário compareça também como herdeiro dos bens do espólio, não será "herdeiro" em relação à extinção do usufruto, permanecendo válido o argumento.
Sobre a inexistência de fato gerador de ITCMD na extinção de usufruto em decorrência da morte do usufrutuário, vale a leitura de sentença da lavra do MM Juiz de Direito da Vara de Família e Sucessões da Comarca de Varginha - MG, Antonio Carlos Parreira, nos Autos nº:0707 06 127.914-7 - MS - (Parreira, 2006), de onde se transcreve o seguinte trecho:
"11.Para encerrar esse tópico relativo a não incidência de imposto de transmissão na extinção do usufruto, é de se lembrar que tal matéria já foi objeto de apreciação pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL quando da vigência da Carta Política anterior, ocasião na qual ficou assentado o seguinte:
"USUFRUTO DECORRENTE DE DOAÇÃO A TERCEIRO.
Com a morte da donatária, extingue-se o usufruto e consolida-se a propriedade na pessoa do nu-proprietário, não sendo devido o imposto de transmissão causa mortis."
Colhe-se do voto do eminente MINISTRO CUNHA PEIXOTO, Relator:
"Na verdade, a nosso ver, ocorreu clara e indubitavelmente a negativa de vigência da lei federal. Houve indiscutível oposição à vigência, não só do Código Tributário Nacional, como da própria Constituição.
Com efeito, estabelece o art. 110 do Código Tributário Nacional não ser possível a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance, conceitos e formas do direito privado. Portanto, se a Constituição instituiu um tributo, elegendo para fato gerador dele um instituto de direito privado, o legislador tributário federal ou estadual não pode dilatá-lo a outras situações.
Ora, não só a Constituição – art. 23, nº I -, como o art. 35 do Código Tributário Nacional, estabelecem, como fato gerador do imposto de transmissão, a transferência de bens imóveis ou de direitos reais.
Ora, com a morte da usufrutuária, de conformidade com o art. 739 do Código Civil, extingue-se o usufruto, qualquer que seja a causa, o gênero, ou a época em que se verificou.
Não se pode equiparar a extinção do usufruto com sua transferência, principalmente para efeito de tributo, pois as leis fiscais devem ser aplicadas em sentido rigoroso, estrito, de sorte a não se lhe restringir ou dilatar o sentido".
Em conclusão, deve-se afirmar que a isenção prevista na alínea "e" do inciso I do art. 6º da LC 10705/2000 constitui apenas a manifestação de um equívoco do legislador, o qual estabeleceu uma hipótese de isenção sobre um fato não incluído na esfera de incidência do imposto; e deve-se reconhecer também que não há base legal para que seja cobrado o ITCMD sobre extinção de usufruto; não apenas na hipótese descrita no dispositivo de isenção, mas em qualquer caso, pelo simples fato de que a extinção de usufruto não se subsume ao modelo estabelecido pelo legislador como determinante da incidência do imposto. Ainda que o nu-proprietário compareça para receber um quinhão da herança na condição de herdeiro ou legatário, não será "herdeiro" e, conseqüentemente, "contribuinte" em relação à extinção do usufruto, porque esta, como visto, não compõe a herança.
Não obstante, alerte-se, não é esse o entendimento da Administração Fazendária Paulista. Conforme exposto na Resposta a Consulta nº 296/2004, de 26 de agosto de 2004, item 6, - anexo III deste estudo - na transmissão "causa mortis" deve ser recolhido o imposto:
"6. Quando há a morte do doador original e usufrutuário, consolida-se a propriedade plena nas pessoas dos nu-proprietários (donatários), sendo que, nessa oportunidade, o ITCMD, para esse bem, deve ter como base de cálculo o valor correspondente ao usufruto: 1/3 (um terço) do seu valor de mercado na data da transmissão (também atualizado conforme o artigo 15 da Lei 10.705/2000), de acordo com os artigos 9º, § 2º, item 3, da Lei 10.705/2000, e 31, II, "c" e § 3º, 2, do Decreto 46.655/2002."