A memória é a capacidade de conservar certas informações. Os seres humanos desfrutam de um conjunto de funções psíquicas que lhes conferem essa habilidade, que não é apenas de armazenar, mas também envolve processos de interpretação do passado. Para Le Goff 1, a memória é essencial para a construção da identidade individual ou coletiva, cuja busca é atividade fundamental dos indivíduos e das sociedades, especialmente, porque é um instrumento e um objetivo de poder.
Assim, o que é legado às gerações futuras não é o passado em sua integridade, mas o resultado das escolhas feitas pelas classes, grupos, indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas e se apoderam da memória e do esquecimento. Os monumentos exercem muito bem essa função, como indica o seu sentido filosófico: “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” 2. Os monumentos são, portanto, uma espécie de antídoto seletivo para o esquecimento.
As cidades estão repletas de lugares intencionalmente construídos para manter vivo o passado escolhido. Todas as cidades, independentemente da sua extensão territorial ou da quantidade de habitantes, possuem monumentos que homenageiam fatos históricos e/ou pessoas consideradas ilustres nos recortes históricos selecionados por aqueles que controlam a história e a memória.
Esse controle, contudo, não é absoluto e com a consolidação dos regimes democráticos, a ampliação das liberdades e o exercício dos direitos culturais, os diferentes grupos formadores da sociedade brasileira estão reivindicando os seus espaços de memória e os seus lugares na história.
Eles questionam a historiografia oficial e a compatibilidade de monumentos que homenageiam figuras do passado, cujos atos praticados lhes renderiam, na atualidade, não homenagens, mas julgamentos em cortes internacionais por atos contra a humanidade.
Nesta linha, o município do Rio de Janeiro aprovou a Lei Municipal nº. 8.205, de 2023, que vedava manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens a escravocratas, eugenistas e aqueles que praticaram atos lesivos aos direitos humanos, à liberdade religiosa e atos racistas. A referida lei indica as medidas a serem adotadas em relação aos monumentos já existentes, determinando a transferência deles para ambientes de perfil museológico, determinando que sejam asseguradas a presença de informações que contextualizem a obra e o personagem.
A solução dada pela referida lei no trato de monumentos opressivos foi apontada por este articulista em texto escrito em 2020 3, quando vieram à tona uma série de protestos sob o lema “Black Lives Matter” que desencadearam a destruição de monumentos associados à escravidão de negros e índios, como a estátua de Edward Colston (1636-1721) em Bristol e as de Cristóvão Colombo (1451-1506) nos Estados Unidos.
Naquela oportunidade escrevia:
Preservar os monumentos erguidos em referência a fatos e pessoas cujos atos não condizem com os valores do presente, não significa cultuar os escravocratas, mas é um ato, antes de tudo, de enfrentamento do passado para conferir um novo sentido, ou mesmo para anular o sentido que originalmente lhe foi atribuído. A remoção de monumentos dos espaços públicos para os museus, com o fim de propiciar a sua reconstrução semântica é também uma possibilidade que deve ser discutida nesse processo de ressignificação 4.
Contudo, a referida lei teve uma vida curta e não chegou a ser aplicada. Sancionada tacitamente, o que ocorre diante da inércia do Chefe do Poder Executivo municipal em se posicionar sobre uma proposição legislativa para manifestar expressamente sua concordância ou discordância. A Lei municipal nº. 8.205, de 2023 vigorou até o início de janeiro de 2025, quando outra Lei Municipal (Lei nº. 8.780), cujo único propósito foi revogá-la, colocou por terra uma ótima oportunidade de discutir e ressignificar o passado, para confrontá-lo.
A justificativa da lei revogadora consiste unicamente em “evitar que personalidades históricas de relevância para o país sejam afetadas pela referida lei”. Ou seja, busca-se manter o status quo para não enfrentar as dores do passado, não discutir a historiografia oficial e não desmistificar as “personalidades históricas”.
A Cidade do Rio de Janeiro pela sua relevância política e cultural na história brasileira (capital da Colônia Portuguesa; sede do Império português; capital do Império do Brasil e capital da República até a mudança para Brasília) tem um papel central nessa discussão que envolve a retomada de um passado esquecido propositalmente, e que não é apenas sobre monumentos de escravocratas, mas é também e, principalmente, sobre reconhecer o lugar na história dos grupos que foram seletivamente excluídos; demonstrar o papel histórico das pessoas escravizadas na formação do Brasil nos diferentes campos, valorizar os saberes tradicionais, culturais, força e resistência.
Neste aspecto, aderimos ao pensamento de Le Goff para quem a memória coletiva deve servir para libertar e não para escravizar os homens. Pena que a Câmara Municipal do Rio de Janeiro tenha mudado tão rápido de opinião, ou seja, de uma atitude libertadora para uma de manutenção do status quo por aqueles que receiam perder suas “personalidades históricas”.
Notas:
1 LE GOFF, Jacques. História e memória. v. II Lisboa: Edições 70, 1982, p. 57.
2 LE GOFF, 1982, p.103.
3 MAGALHAES. Allan Carlos Moreira. Monumentos opressivos: destruir ou ressignificar. IBDCult. 2020. Disponível em: https://www.ibdcult.org/post/monumentos-opressivos-destruir-ou-ressignificar acesso em: 20 jan. 2025
4 MAGALHÃES, 2020.