3. DO CONTRADITÓRIO COMO GARANTIA CONSTITUCIONAL
Consagrado no art. 5º, LV, da Constituição Federal, sendo, portanto, direito e garantia fundamental, o princípio do contraditório ilumina toda a sistemática processual, donde, segundo a melhor e mais abalizada doutrina, não haver processo sem contraditório.
O princípio do contraditório encontra guarida em normas internacionais referentes a direitos fundamentais [34] e muitos autores consideram-no decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana, já que, no processo, não pode o homem ser transformado em mero objeto, mas antes exercer papel ativo de sujeito processual (CABRAL, 2006, p.59).
No Brasil, o princípio do contraditório não foi contemplado nas Constituição de 1824, 1891 e 1934. Referido princípio, curiosamente, já que se trata de uma Constituição de caráter nitidamente autocrático, ganhou assento constitucional com a Carta outorgada de 1937, em seu art. 122, § 11. No entanto, diferentemente, da atual sistemática, o legislador constitucional apenas previu o espectro de aplicação do princípio do contraditório ao processo penal, situação que se manteve nas Constituições de 1946 e 1967 (CABRAL, 2006, p.59).
Somente a Constituição Federal de 1988 ampliou o contraditório aos processos judiciais e administrativos, elevando este princípio como fator essencial a toda atividade do Estado, já que de uma forma ou de outra: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" [35].
Anota Dierle José Coelho Nunes (2006, p.177) que
Há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas sim, como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa.
O princípio do contraditório consiste, em resumo, em oportunizar às partes, em igualdade de condições e em paridade de recursos, participação na construção do provimento judicial.
Pressupõe, assim, tanto a necessidade de cientificação das partes de todos os atos processuais ocorridos e que estão por ocorrer, e das alegações deduzidas em juízo, quanto a efetiva oportunidade de participação na realização dos meios de produção de prova.
Por isso, consagra o binômio: ciência e participação.
Ínsito ao direito de cientificação está o direito de ser efetivamente informado sobre a marcha processual e os elementos fáticos e técnicos apresentados pelos outros sujeitos processuais, que, por sua vez, é respeitado por meio dos institutos da citação, intimação, notificação e vista dos autos.
Já o direito à participação consiste, primariamente, tanto no direito à produção de provas quanto no direito à atividade de argumentação de natureza eminentemente dialética, que busca "seduzir" pelo poder da palavra, oral ou escrita, sendo certo, ainda, que esta participação deve se dar em simétrica paridade entre as partes e com atenção aos demais princípios constitucionais.
Segundo Elio Fazzalari (2006, p. 380): "existe processo quando do iter de formação de um provimento participam, justamente, os destinatários dos seus efeitos, em contraditório".
Diferentemente da doutrina de Bülow, de 1868 (seguida, segundo alguns autores, até hoje, pelos processualistas brasileiros da denominada Escola Paulista de Processo, dentre eles Cândido Rangel Dinamarco, Antônio Carlos de Araújo Cintra e Ada Pellegrine Grinover, também conhecidos como instrumentalistas), que conceitua processo como uma relação jurídica entre pessoas (autor, juiz e réu), sendo um instrumento a serviço da jurisdição e o procedimento como a manifestação extrínseca do processo [36], Fazzalari desenvolve, primeiro, a noção de procedimento para só depois, e com visão democrática de Estado, conceituar processo como uma espécie de procedimento realizado em contraditório.
Daí o porquê de sua teoria ser comumente denominada de "O processo como procedimento em contraditório".
Para Fazzalari procedimento é gênero do qual processo é espécie (2006, p. 415). O procedimento seria toda e qualquer seqüência cronológica de atos encadeados, onde o ato anterior é pressuposto do ulterior e, assim, sucessivamente, até a obtenção de um provimento jurisdicional final, sendo que este só encontra condições de validade e/ou eficácia, apenas, se foi "precedido da série de atividades preparatórias pela própria lei estabelecida" (2006, p.33).
Fundamenta-se, ainda, o autor italiano, nos ideais de igualdade e simetria de paridade entre as partes (sujeitos legitimados a dizer e contradizer no curso do procedimento), além de, imbuído no espírito das atuais democracias, não limitar a figura do processo ao âmbito judicacional, mas de o difundir a todas as esferas de atuação do ordenamento estatal, a fim de proteger o cidadão contra o arbítrio do "poder" público (LARA, CARVALHO e PENNA, 2004, p. 266).
Nesse ponto, o pensamento de Fazzalari alinha-se aos ensinamentos de outro grande doutrinador da atualidade, Jürgen Habermas, professor da Faculdade de Frankfurt, Alemanha, de "uma visão procedimentalista de democracia e política deliberativa", "procedimentos comunicativos", "procedimento democrático", "institucionalização do procedimento" e "modelo procedimental" (LOPES, 2003, p.3).
Segundo Bráulio Lisboa Lopes (2003, p.3), Habermas
reconhece a liberdade comunicativa como a possibilidade pressuposta no agir que se orienta pelo entendimento de tomar posição frente a proferimentos e pretensões de validade levantadas, que dependem de um reconhecimento intersubjetivo. A liberdade comunicativa depende, pois, sempre de uma relação intersubjetiva, logo, de um critério de validação intersubjetivo, o que significa que os sujeitos que agem comunicativamente se dispõem a aceitar como válido somente o que foi legitimado pelo critério da argumentação, de modo que é válido somente o que foi legitimado pelo critério da argumentação. Desta forma, a solução de conflitos vai se desligar das suas bases tradicionais para filiar-se ao procedimento discursivo, sendo que a melhor argumentação é que seria vencedora da demanda.
Por isso que - não sem razão - a Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, LV, ampliou o contraditório aos processos administrativos, elevando este princípio como fator essencial a toda atividade do Estado.
Especificamente na atividade judicante, ensina Dierle José Coelho Nunes (2007) [37] que
o princípio constitucional do contraditório garante a todos os sujeitos processuais a possibilidade de influenciar na formação das decisões permitindo um controle intersubjetivo contra o individualismo e o subjetivismo na aplicação da ‘prestação jurisdicional’.
Da cátedra de Rosemiro Pereira Leal (2005, p.110-111), colhe-se, ainda, a seguinte definição:
O princípio do contraditório é referente lógico-jurídico do Processo constitucionalizado, traduzindo, em seus conteúdos, pela dialeticidade necessária entre interlocutores que se postam em defesa ou disputa de direitos alegados, podendo, até mesmo, exercer a liberdade de nada dizerem (silêncio), embora tendo direito-garantia de se manifestarem. Daí, o direito ao contraditório ter seus fundamentos na liberdade jurídica de contradizer, que, limitada pelo tempo finito (prazo) da lei, converte-se em ônus processual senão exercida. Conclui-se que o Processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida colonizadora da liberdade das partes.
Ainda que não se possa afirmar que o conceito de processo como relação jurídica encontra-se superado entre os processualistas brasileiros da corrente instrumentalista, muitos dos seus seguidores já defendem a presença do contraditório como fator preponderante para distinção entre procedimento e processo.
Em significativo estudo sobre a obra de Fazzalari, anotam Leonardo Augusto Leão Lara, Newton Teixeira de Carvalho e Saulo Versiani Penna (2004. p. 267) que:
Dinamarco, apesar de ainda filiar-se à teoria do processo como relação jurídica – conhecida também como teoria instrumentalista -, analisando tópicos acerca da teoria geral do processo e inclusive citando Fazzalari, ressaltou a importância do contraditório no desenvolvimento do processo, bem como a necessária presença da cláusula due process of law como critério de legitimação do provimento.
Para os referidos autores, esta concepção seria notada no seguinte excerto da obra "A instrumentalidade do processo" de Cândido Rangel Dinamarco:
O que caracteriza fundamentalmente o processo é a celebração contraditória do procedimento, assegurada a participação dos interessados mediante exercício das faculdades e poderes integrante da relação jurídica processual. A observância do procedimento em si próprio e dos níveis constitucionais satisfatórios de participação efetiva e equilibrada, segundo a generosa cláusula due process of law, é que legitima o ato final do processo, vinculativo dos participantes. (Dinamarco, 2002, p. 79 apud LARA,CARVALHO E PENNA, 2004. p. 267)
Certo é que todos, fazzalarianos ou não, concordam que, desde o Direito Romano, o brocardo audiatur et altera pars estampa a dialeticiade ínsita ao processo.
Não se pode negar que a dialeticidade é um dos elementos relevantes da Teoria da Democracia de Habermas.Nesse contexto, avoluma-se a importância da obra de Fazzalari, já que para este o processo alinha-se à busca atual de efetiva democratização do Estado, pois, como forma de legitimar a atuação estatal, o referido instituto encontra suas bases fundantes na real possibilidade de, no tempo fixado pela lei e em simétrica paridade, os interessados na obtenção do provimento estatal dele participarem, dizendo e contradizendo e tendo efetivamente seus argumentos apreciados, bem como de tudo lhes sendo dado conhecimento.
Percebe-se, portanto, a evolução da postulação do princípio do contraditório e sua aplicação nos dias atuais, principalmente, o vasto painel de implicações teóricas de conotações enciclopédicas que dele fecunda (LEAL, 2005, p.109).
Ponto pacífico, no entanto, segundo os processualistas modernos, é que às partes deve ser ofertada a oportunidade de intervirem, garantindo a contraposição dialética na busca da verdade, deixando a seu livre arbítrio exercer esse direito ou não. Negar ou suprimir essa oportunidade de intervenção é ferir a Carta Magna de nosso País.
4. DO CONTRADITÓRIO DIFERIDO
Consignou-se, alhures, que ínsitos ao princípio do contraditório estão os da isonomia e da ampla defesa.
Ensina o Professor Rosemiro Pereira Leal (2005, p.110-111) que o processo é atualmente, "por criação constitucional, uma instituição jurídica com caracteriologia própria definida nos princípios que lhe são integrantes, quais sejam, o contraditório, a ampla defesa e a isonomia".
O princípio da isonomia "equivale à igualdade temporal de dizer e contradizer para a construção, entre partes, da estrutura procedimental" e o princípio da ampla defesa, "ao direito material de garantias fundamentais do cidadão, como a do devido processo em sentido processual (procedural due process), traduzindo a garantia da plenitude da defesa em tempo e modo suficiente para sustentá-la" (LEAL, 2005, p.110-111).
Registra ainda o autor que a "amplitude da defesa não supõe infinitude de produção da defesa a qualquer tempo, porém, que esta se produza pelos meios e elementos totais de alegações e provas no tempo processual oportunizado na lei" (LEAL, 2005, p. 111).
Ou seja, a ampla defesa envolve a cláusula do devido processo legal.
Feitas estas considerações, poder-se-ia de forma açodada concluir que, em sendo o contraditório elemento da construção do provimento, aquele terá sempre que ser anterior a este.
No entanto, Fazzalari apresenta diversos tipos de provimentos. Destaque-se aqui o que ele denomina de "provimentos interlocutórios" (2006, p.236), que seriam despachos ou decisões emitidos pelo juiz antes e em vista de uma posterior sentença de mérito, a fim de assegurar-lhes efeitos.
Segundo o renomado processualista:
Tais provimentos podem ser emanados no curso do processo ordinário de mérito, ou mesmo antes do seu início. Diferentemente de provimentos de cognição sumária – suscetíveis de resolverem, sozinhos e para sempre, a controvérsia, aplicando o direito – os provimentos em discurso desenvolvem eficácia provisória, isto é, pelo tempo que demora a emanação da sentença no processo ordinário, e até quando ela venha a ser emanada. (FAZALLARI, 2006, p.236)
O próprio Fazzalari exemplifica este tipo de provimento, oferecendo várias hipóteses onde ele é comumente aplicado, e o exemplo que mais se assemelharia ao provimento que é buscado nos autos de suspensões de liminares, de sentenças, de tutelas e de acórdãos, seria a decisão para suspender a execução de uma nova obra precursora de dano, enquanto não se sentencia a propósito.
Assim, como ocorre com as suspensões (em capítulo dedicado à inquirir sobre a natureza jurídica deste instituo, sedimentamos a posição de ter o mesmo natureza cautelar, no qual o risco seria qualificado pela grave lesão ao interesse público primário), somam-se aos provimentos interlocutórios as qualidades de urgência, de cautelaridade, de povisoriedade e de instrumentalidade (FAZALLARI, 2006, p. 237).
O mesmo teórico preleciona ainda que, "excepcionalmente, quando a instituição do contraditório poderá prejudicar a atuação da cautela, esta pode ser concedida com ‘decreto’ inaudita altera parte, ao qual deve seguir uma fase de confirmação com contraditório" (FAZALLARI, 2006, p. 239).
A Constituição Federal/1998 não faz qualquer restrição quanto ao momento do exercício do contraditório, o que, de fato, não seria razoável, dada a infinidade de situações possíveis de acontecerem.
Portanto, muitos defendem que, quanto ao momento da sua observância, o contraditório pode ser prévio, real ou simultâneo, diferido ou prorrogado.
O professor Dierle José Coelho Nunes (2006, p. 178) prevê, ainda, o que se poderia considerar uma espécie do contraditório diferido, o que ele denomina de sucessivo, isto porque
como no direito brasileiro, a cada dia que passa, se esvazia mais o contraditório dinâmico em seu modo de exercício antecipado, o que se deve assegurar é o contraditório sucessivo mediante o sistema recursal.
Daí se depreender o denominado direito constitucional ao recurso como possibilidade de influência sucessiva na formação das decisões em decorrência da aplicação dinâmica do princípio do contraditório (e da ampla defesa) com geração ou não de duplo exame.
Registre-se que a admissibilidade do contraditório diferido é justificada, tanto pelo propósito de preservação da eficácia de determinado ato, como em razão do momento em que realizado, como no caso de perícia realizada durante o inquérito policial [38].