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Crimes contra a vida.

A mágica do intérprete

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16/05/2008 às 00:00
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5. Delito de aborto.

Se a confusão exegética recebe nota máxima no exame do infanticídio então convém deixar registrado o caráter hors-concours do delito de aborto. E é fácil, muito fácil de compreender.

5.1. Lei, intérprete, valorações sociais

Homicídio, participação em suicídio, infanticídio, comportam – é certo – divergências interpretativas em torno do seu significado e alcance, em termos de correta identificação de suas figuras básicas e formas qualificadas. Mas no século 21, em condições de normalidade institucional, as várias fontes do direito, em tese, pelo menos no Brasil, aceitam com relativa naturalidade a abertura de processo e julgamento de quem possivelmente mata outrem (ou concorre para sua morte) sem alguma razão plausível.

Não é o sistema jurídico que sustenta ou tutela a vida humana. É a vida humana, ao contrário, como pressuposto de um sistema jurídico, que o tutela e sustenta, dele recebendo como resposta, como aconteceu historicamente, o alargamento isonômico dos agentes ou destinatários da norma. Todos, sem exceção, têm direito à vida.

A vida do feto, no entanto, sobretudo nos primeiros meses de gestação, recebe tratamento diferenciado. Sua base de sustentação difere substancialmente da base de sustentação da vida de quem já nasceu. Trata-se de constatação empírica, revelada inclusive pela natureza e qualidade das penas reservadas atualmente para o delito de aborto.

Não basta, então, prever e disciplinar as várias espécies de aborto (auto-aborto; aborto consentido; aborto praticado por terceiro; formas qualificadas). Não basta, principalmente, limitar sua licitude (art. 128, referente à mulher estuprada ou com risco de vida), pois o tema, na área propriamente do direito, extrapola o poder formal do legislador. Aliás, segundo crítica recorrente, repetitiva, é o próprio sistema legal que concorre com sua intransigência ideológica para a morte ou graves seqüelas de gestantes que, desamparadas socialmente, e mal informadas, não vêem outro caminho que a busca e a prática de perigosos abortos clandestinos. Tentativas sem êxito provocam ou podem provocar, além disso, prejuízos irreversíveis às inocentes crianças que acabarem nascendo.

Lei, ética, direito, religião. Como conciliá-los? A questão é delicadíssima. Quem se arvora em dono da verdade? Nem mesmo Jesus Cristo ofereceu respostas conclusivas. Não veio ao mundo para resolver as querelas jurídicas e ainda fez questão de não misturar os assuntos de Deus e do Estado: "Dai a César o que é de César, a Deus o que é de Deus".

5.2. Dogmática jurídico-penal

Na dogmática jurídica, porém, registro mais uma vez a mágica do intérprete, que age não raro de parceria com o grupo social. Assim, que se deixe agora de falar em crime de aborto desde o momento da fecundação. Considerando a aceitação social de dispositivos intra-uterinos e de outras técnicas e substâncias de efeitos análogos, somente a partir da nidação é que se pode cogitar, em tese, de aborto (Heleno Fragoso, ob. cit., p.113). Ou, como se lê na jurisprudência: "Se os meios anticoncepcionais já são admitidos, não se compreende que o aborto também não o seja pelo menos nos primeiros dias da concepção, antes que o feto manifeste vida" (TJSP - Rec. - Rel. Gonçalves Sobrinho – RT 425/310, in Código Penal e sua Interpretação Judicial, cit., p. 1654/1655). Sinal verde para a "pílula do dia seguinte".

Se necessário, um pouco de ficção jurídica: "Em sendo o agente pessoa ignorante e que não conte com melhor orientação sobre os fatos, de se admitir legítima defesa putativa da honra na conduta de quem, sendo recatada, em si mesma provoca aborto, compelida pelo pavor do descrédito que lhe poderia advir da gravidez, ante seus parentes"(TACRIM-SP, AC - Rel. Geraldo Gomes - JUTACRIM 2/373, ob. cit., p. 1652).

O Código Penal se refere à licitude do aborto vinculado ao estupro. Ora, vale o raciocínio analógico em caso de atentado violento ao pudor (Paulo José da Costa Júnior, Curso de direito penal, v. 2, 1991, p. 23). E se o diploma também "não previu, entre as excludentes, o aborto eugênico (ou eugenésico), que é o executado ante a suspeita de que o filho irá nascer com graves anomalias", a solução é perceber que "tal conduta deveria ser entendida, porém, como ação socialmente adequada" (idem, ibidem). "Trata-se de causa de exclusão da culpabilidade, pela inexigibilidade de conduta diversa", afirma Luiz Regis Prado (Curso de direito penal brasileiro, v. 2. 2000, p. 104). A propósito, tende a consolidar-se entre nós a jurisprudência que reconhece a licitude do aborto em caso de feto portador de anencefalia (ausência total ou parcial do encéfalo).

Sublinho os argumentos: primeiros dias de gestação (ausência de objeto material); analogia; adequação social; legítima defesa putativa da honra. Na prática, é claro, existem muitos outros. Quem os resolve não é a lei, mas o intérprete, o operador jurídico em sentido amplo, que conta com a cumplicidade do grupo social.

Veja-se novamente a mágica de Heleno Fragoso: "O produto da concepção, qualquer que seja o grau de seu desenvolvimento, é objeto material da ação, mas não é sujeito passivo do crime, pois tal categoria compreende apenas o titular do bem jurídico tutelado que é, no caso, o Estado ou a comunidade nacional" (ob. cit., 1983, p. 112). É a opinião também de Fabbrini Mirabete (ob. cit., p. 94).

Ora, apenas por extensão o Estado é considerado, em caráter secundário, sujeito passivo de qualquer crime, a menos que atingido diretamente pela conduta criminosa (administração ou patrimônio públicos, por exemplo). Por que, agora, adquire prioridade absoluta sobre o feto, que afinal perde sua vida mas é, nada obstante, relegado à simples condição de "objeto material da ação" ? O Código não fala em crimes contra a pessoa, no sentido de pessoa física?

Acontece que havia uma estratégia – para as conclusões – na página 114: "A pluralidade de fetos não implica em concurso de crimes. O feto não é sujeito passivo do crime".

Data venia, o argumento é de uma fragilidade impressionante. Revela apenas o esforço de quem, favorável a uma certa liberação do aborto (p. 110), procura arrancar do sistema respostas que, de antemão, lhe são negadas. Mesmo sendo o único sujeito passivo do auto-aborto, ou do aborto consentido, nem por isso se pode concluir que o Estado perderia o interesse pela vida intra-uterina de gêmeos, assim como não perde o interesse pela posse e integridade das coisas (no plural) de seu patrimônio. A fria e calculada morte de um dos gêmeos, mormente na fase de gestação adiantada, constitui "meio-aborto"? O crime só se completa quando se elimina, em continuação, a vida de todos os fetos?

Eis, nada obstante, em detalhes, a explicação de outro ilustre penalista, Fernando Pedroso: "Pode ocorrer que a prenhez contenha pluralidade de nascituros (gêmeos, trigêmeos). Sendo único o estado gravídico que se interrompe, e constituindo o processo de gestação obliterado, na sua unidade, condição essencial à vida biológica do produto da concepção, curial é que pouco importa o seu número. Assim, havendo multiplicidade de foetus, o crime de aborto não perde sua singularidade e, portanto, não se há de acenar para o concurso de crimes, fragmentando-se ou fracionando-se o episódio em tantos delitos quantos forem os nascituros. Persiste único o crime, em detrimento de eventual proclamação do concurso formal de delitos" (ob. cit., p. 260).

Ouso discordar. Persiste, isto sim, a dificuldade óbvia de apreender os motivos da discriminação. Não basta falar em unidade gravídica e, num esquema de arbitrária dicotomia (feto é apenas "objeto material da ação"; o Estado é o sujeito passivo), considerar resolvido o problema, atrelado à conseqüente prática de um só delito. O Código Penal, o que diz? Crimes contra a pessoa. Pessoa de quem? Do feto, e não da gravidez, simples estado fisiológico. É ele a vítima, é ele o sujeito passivo, em sua unidade ao mesmo tempo jurídica e biológica.

E mesmo que, ad absurdum, se negasse autonomia ao direito penal para o tratamento particularizado de suas próprias instituições, o fato é que o velho Código Civil não desprotegia o feto. Ao contrário, assegurava (como o faz o Código Civil de 2002, no art. 2º) que "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro" (art. 4º). O Código Penal, destarte, com seu pretenso e modesto caráter secundário, viria justamente especificar um direito do nascituro: o de permanecer vivo, a contar da fecundação. A exigência de nidificação, embora aceitável, já tem o dedo do intérprete, que se posiciona em consonância com os novos tempos (legitimidade social).

Digamos que uma repartição pública disponha de um único automóvel, estacionado na garagem. Comete "meio-furto", ou fato indiferente ao sistema, quem se limita a subtrair o motor? Se são dois os veículos, está liberado o furto de um deles somente porque foram adquiridos de uma só vez? Claro, dependendo da hipótese pode-se falar em crime único, crime continuado e concurso de crimes, mas é isto, o concurso, que se quer afastar, por motivos ideológicos, no caso de consciente e doloso aborto de gêmeos.

Curiosamente, Fernando Pedroso admite o concurso de crimes "se houver a denominada superfetação ou a superfecundação, hipóteses nas quais, por existirem, simultaneamente, mais de um processo de prenhez em curso e mais de um nascituro, o fato se decomporá e desmembrará em tantos crimes de aborto quantos tiverem sido os produtos da concepção destruídos" (ob. cit., p. 260/261).

Percebe-se, portanto, além da injustiça do tratamento absurdamente desigual, uma tentativa de redefinição do conceito de aborto. Contrariando uma cultura multissecular acerca do conteúdo do delito – com variáveis sobre o "objeto material" da conduta – ele parece entender que praticar aborto é destruir a gravidez e, não, o produto da concepção. Para gravidez única, mas com vários fetos, um só crime de aborto. Se a gravidez é múltipla (superfecundação ou superfetação), possibilidade de vários crimes em concurso.

Perigosa, como se viu, a posição de Pedroso: nos casos comuns, de gêmeos de uma só gravidez, estaria liberada a morte de qualquer um deles, inclusive até momentos antes do parto, desde que se garantisse a sobrevivência de pelo menos um feto e, pois, da correspondente gravidez materna, a permanecer como tal. Diga-se o mesmo do posicionamento de Fragoso e Mirabete, que merecem no entanto o reconhecimento de que não distinguem entre fetos de primeira e segunda categoria, o que é proibido pela Constituição. Todos os fetos, sem exceção, estão nivelados por eles; nivelados em sua condição de "coisa" suscetível apenas da ação material de terceiros, jamais alcançando a dignidade de vítimas, de sujeitos passivos. A vítima é o Estado, é a comunidade: eis a mágica de cunho ideológico.

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Heleno Fragoso vai mais longe: à luz do Código, "quem mata mulher grávida não comete, em concurso com o homicídio, o crime de aborto"(ob. cit., p.114). Como assim? A morte do feto constitui a conseqüência natural da morte da mãe e, portanto, se encaixa no princípio da insignificância? Ou na regra hermenêutica da consunção? Ou ainda na teoria do fato anterior (ou posterior) impunível, conhecida de nossos penalistas?

Pior ainda: a liberação do aborto chegou ao ponto de dispensar o consentimento da gestante?

Desnecessária uma resposta conclusiva, para uma visão crítico-metodológica. O que vale, não raro, é a vontade do intérprete, não a vontade do sistema. Só que, desta feita, nos casos levados a julgamento, não se chega a esse limite extremo de conferir a um estranho o direito de vida e morte sobre uma criança ainda no ventre materno, exercido contra a vontade da mãe, do pai, dos amigos, da comunidade. Não, a jurisprudência reconhece os dois crimes, aborto e homicídio, praticados em concurso formal.


6. Denominador comum: a mágica do intérprete.

O título anunciava as conclusões: o intérprete, com sua mágica, interfere no direito penal. Mas diante do princípio constitucional do nullum crimen, nulla poena sine lege, de forte conteúdo político e ampla aceitação social, é claro que o faz com mais naturalidade e desenvoltura quando se posiciona no sentido de uma descriminalização ou despenalização.

É sinal de ingenuidade, no entanto, acreditar que a lei penal representa uma garantia do cidadão perante os poderes constituídos. Ao intérprete cabe, sempre, a construção histórica do direito, por ação ou por omissão, pouco importando os "argumentos" que utilize. E a lei às vezes representa uma armadilha. Por sua vagueza, por suas contradições, a lei pode ser o argumento. O argumento de uma decisão contra a lei. Decisão que ocorre ou pode ocorrer até mesmo na hipótese de clareza, muita clareza do texto – e de seu espírito.

Coisas do intérprete. Melhor dizendo, de sua magia.


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Sobre o autor
João José Caldeira Bastos

professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BASTOS, João José Caldeira. Crimes contra a vida.: A mágica do intérprete. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1780, 16 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11274. Acesso em: 22 nov. 2024.

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