6. ASSIS: modelagem jurídica?
Na interação promovida pelo modelo ASSIS, ao aproximar as tecnologias jurídica e técnica, a tecnologia jurídica está conseguindo se afirmar ou está sendo comprometida pela tecnologia técnica? Esta é uma antiga e previsível preocupação que exprimi, em meados da primeira década do milênio, no artigo O princípio da Dupla Instrumentalidade (ou da subinstrumentalidade) da tecnologia. (TAVARES-PEREIRA, 2008).
Para começar, comecemos fixando dois axiomas (TAVARES-PEREIRA, 2021, p. 525 e seguintes) que nos permitem avaliar a lógica da modelagem.
Primeiro axioma (da substituição): quando falamos em automatizar decisão judicial (e se realmente quisermos fazer isso), queremos dizer, apenas e tão somente, substituir sistemas psíquicos (pessoas) por algoritmos. A ideia não é acabar com o sistema judicial de decisão, mas substituir os sistemas psíquicos julgadores. É isso que significamos ao falar “automatizar decisão judicial”. Harmonizar esse sentido da expressão é fundamental. Sabe-se da posição do CNJ a respeito: contrária à substituição e incentivadora, apenas, do suporte.
Segundo axioma (do monojuízo) - poderíamos classificar de corolário, mas isso suporia certas qualidades da substituição que, no sentido do axioma 1, tomada sob um viés tecnológico-cibernético, implica “monojuizismo” porque, no caso, não se faz de um por um, mas de muitos, ou todos os juízes humanos, por um algoritmo. Um juiz algoritmo, em vez de milhares de juízes humanos. Isso implica: visão única, Direito unívoco, não pluralidade, não interpretação contextual. Essas são todas possibilidades reais e indesejadas no horizonte paradoxal da dicção do Direito (CLAM, 2006, p. 99-142) num ambiente democrático.
Esses pontos de partida (limites da substituição/não univocidade da dicção) levantam óbices imensos, axiológicos e democráticos, além de empíricos, para a incorporação das novas IAs generativas ao processo.
A modelagem do Assis contorna tais problemas: a lógica é a do suporte ao juiz (e não da mera substituição) e fica a cargo do algoritmo absorver as nuanças subjetivas (pragmático-hermenêuticas) do juiz. Embora o algoritmo aprendiz (o engenho de aprendizado) seja o mesmo, ele se autocompleta, estruturalmente (faz seu complemento algorítmico-operativo), para emular o mecanismo cognitivo-analítico inferencial de cada juiz assistido. Ou, nas palavras de Mariah Brochado Ferreira, epigrafadas ao início, ele consegue: “ […] decodificar o próprio pensamento humano” do julgador assistido. Evita assim o monojuizismo. O olhar analítico-interpretativo do algoritmo é o do juiz a quem presta suporte, exatamente como fazem os assistentes humanos, que deixam de lado visões e entendimentos próprios e minutam as propostas de decisão com o esquema de análise e valoração, de fatos e provas, do juiz a que assistem. A analogia é quase perfeita, porque o algoritmo não abandona visões prévias, dele ou de terceiros. A visão jurídico-interpretativa dele é única e é aquela que abstraiu da base de dados (sentenças etc.) do julgador.
Esquemas baseados em intersubjetividade, conforme o conceito de HARARI (2024, p. 51-54), em Nexus, são deixados para serem construídos operativamente pelo todo do sistema jurídico de decisão, nos termos da lei e da constituição. A tecnologia social jurídica – e não a técnica – reserva para si tais construções.
7. ASSIS: as leis empíricas de regência de sua lógica.
De acordo com o axioma 1, pretende-se o uso da tecnologia no SisJD, mas conservando a essência axiológica do sistema. A tecnologia deve entrar para melhorar o cumprimento da função.
Então, é válido partir de uma descrição das propriedades operativas estruturais básicas e seculares do sistema, para cotejo com enfoques que, no presente momento, a tecnologia viabiliza. Tais propriedades são conhecidas, empiricamente constatáveis, e o Direito estabeleceu, para os tempos pré-tecnológicos (anteriores à tecnologia de agora), os modos de convivência com elas: resiliência com efeitos não desejados versus utilidade para fins de justiça e democracia. Um balanço difícil, mas tranquilizador. A tecnologia jurídica de organização social (de novo, Ferraz Jr.) tratou de tudo, segundo as possibilidades de cada época, e incorporou mecânicas na estruturação geral do sistema. Da Constituição ao regramento infraconstitucional, nos deparamos com diferentes modos de organização e superação das dificuldades: graus de jurisdição, recursos, uniformizações, validação da verdade ficta (já que a real é inalcançável) e muitas outras.
Ora, as novas tecnologias podem emular algumas dessas propriedades com equivalência, às vezes melhorada, mas enfrentam problemas na emulação de outras. Para afirmar isso, é necessário um olhar interdisciplinar, híbrido, como propunha a Cibernética. A conjunção de saberes jurídico-sociais e tecnológicos conduz a uma descrição singular do sistema judicial de decisão. Limitações do passado, condicionadoras dos esforços teóricos e analíticos, estão sendo desmontadas pela tecnologia, que também ostenta suas facetas ameaçadoras. O clamor pelo uso ético da inteligência artificial evidencia isso.
De modo geral e no passado, as descrições que inspiraram a estruturação do SisJD, ainda em uso, não suscitaram reflexões mais agudas dos juristas, inclusive dos filósofos do Direito, sobre aspectos que agora precisam ser explorados. Não houve descaso ou desatenção. Simplesmente não eram necessárias em face do alcance tecnológico da época.
É consenso que a tecnologia avançou. Afinal, quando se imaginou um veículo andando sem motorista pelas ruas? Ou uma bomba procurando pelo alvo para se detonar nele? E, inclusive, renunciando ao objetivo se não o encontra? Essas são realidades de agora (agora mesmo!).
O SisJD também está diante da possibilidade de incorporação de tais tecnologias, as quais viabilizam práticas e abordagens disruptivas na dicção do Direito. A substituição do juiz humano por algoritmo (máquina virtual) é uma delas. Vedações legais, recentes e explícitas, tentam impedir o passo. É o zelo jurídico-axiológico dando as cartas.
A ciência do direito, por seu turno, tratou do SisJD como era possível em cada tempo. Muito criativamente e focada nos valores (que muitas vezes não podia entregar!), (i) criou permissões e regras de manejo e (ii) tentou conciliar, da melhor maneira, a inescapabilidade dos “defeitos/insuficiências” com usos úteis para o sistema. Buscou o melhor para a estruturação do grande sistema jurídico-democrático. Observadas as linhas demarcatórias teoricamente desenvolvidas e pragmaticamente legisladas, as práticas e abordagens cumpriram (e cumprem) um papel particular na promoção da integridade sistêmica.
Ocorre que a tecnologia pode também agudizar distorções, permite manejos humanamente impossíveis e lança sobre o todo um véu fabricado com outros fios, ambições e perspectivas.
Examinemos três características primordiais do sistema que ganharam relevância diferenciada.
Pedro DOMINGOS (2017, p. 102), em Algoritmo Mestre, com a estória dos atiradores de dardos, dá luzes para analogias válidas segundo os propósitos do artigo. Mas lembremos, preventivamente, com FIOLHAIS (1994, p. 82), que analogias são sempre perigosas e devem ser usadas com precaução: “[...] as analogias não substituem equivalências. [...] as analogias são tão úteis como enganadoras.”
Na figura abaixo, os alvos demonstram o desempenho de 4 atiradores de dardos, escolhidos a dedo por Domingos. A distribuição dos arremessos é o que importa: eles podem estar concentrados ou dispersos. A concentração pode dar-se no alvo ou em qualquer outro ponto do tabuleiro. A dispersão pode dar-se no tabuleiro inteiro ou com tendência para algum ponto do tabuleiro.
Este quadro de dupla-entrada conjuga as noções estatísticas de (i) variância (os tiros são dispersos) e (ii) tendenciosidade: uma espécie de afastamento do alvo. Com ou sem dispersão, o atirador parece trabalhar com um alvo diferente. A analogia aqui proposta é apenas dessas grandezas. Parto da impossibilidade de fixar um “alvo” no SisJD. A tentação de usar Justiça esbarra na clássica dificuldade com a categoria. O que é? Qual ou de quem? É entregar o Direito? Qual? Para quem?
Com essas noções e olhando-se o SisJD, é possível enunciar três proposições de teor descritivo. Denomino de leis esses enunciados porque descrevem características /atributos da estrutura legalmente fixada para o sistema (TAVARES-PEREIRA, 2021, p. 547 e seguintes):
Lei da variância: “A variância é atributo do sistema processual decisório”.
Lei da tendenciosidade: “Nos subsistemas decisórios, a tendência é a regra: a variância a exceção”.
Lei do Fator Hermenêutico: “Para toda decisão concorrem condições objetivas e subjetivas (pragmático-hermenêuticas)”.
A tecnologia não pode violar essas propriedades sistêmicas. Como ensinavam os ciberneticistas de raiz, nas décadas de 1950 e 1960: “As teorias construídas pelos matemáticos constituem leis que o inventor de uma máquina não deve transgredir.” (COUFFIGNAL 1966, p. 79). E acrescentava, inspiradoramente, que “O estudo das máquinas surge assim como o estudo da atividade do homem, em sua necessidade ou seu desejo de atuar sôbre seu ambiente.” [grifei] As leis do Direito posto, ainda que de teor organizativo, também não podem ser violadas no esforço de incorporação da tecnologia ao SisJD. Se algo estiver errado, é o próprio sistema judicial que deve, pelos mecanismos institucionais (processo legislativo etc), corrigir.
A lei da variância (LV) está amplamente presente no sistema. É uma consequência de valores fundantes (princípio do livre convencimento, independência judicial). O mesmo caso, submetido a diferentes juízes, pode conduzir a diferentes resultados. Dentro de certos limites, o sistema jurídico tolera a variância e até a promove. E, claro, tem seus mecanismos de controle (recursos, uniformizações etc). A variância (pluralidade de visões) é considerada, de fato, uma garantia axiológico-democrática.
A lei da tendenciosidade (LT) é um apanágio dos subsistemas decisórios (juiz monocrático, órgãos julgadores coletivos). Alguns, como Niklas LUHMANN (1985, p. 35), erigem a coerência jus-temporal das decisões a um impositivo ético. Uma vez convencido a respeito da tese jurídica, o julgador deve manter-se fiel na aplicação do entendimento aos novos casos assemelhados do ponto de vista fático. Alterações de posicionamento podem ser feitas, claro, devidamente justificadas, e o entendimento suplantado precisa ser abandonado. Empiricamente, observa-se com facilidade que, formado o convencimento, juízes procuram ser consistentes em suas decisões: casos iguais, decisões iguais. Luhmann diz que juízes se comprometem eticamente com suas decisões. Isso abre as portas para a tecnologia.
A lei do fator hermenêutico (LFH) explica as outras duas e funda o espaço de liberdade para a dicção autônoma do Direito. Traz, porém, para o cerne das decisões, o dilema da subjetividade (livre convencimento) do julgador. A expressão “pragmático-hermenêuticas”, do enunciado da LFH, vem das Filosofias da Ciência e do Direito – John MACKIE (1974, p. 4), JOHANSSON (2016, p. 129) e HART e HONORÉ (1985, p. 47). E nos primórdios da Cibernética, tratando da escolha dos meios para a condução de uma ação, dizia-se: “A escolha de um sistema de atos e ideias que, melhor que outros, conduz a ação na direção do objetivo desejado, procede de uma atividade de natureza espiritual em que a individualidade se afirma nítidamente.” (COUFFIGNAL, 1966, p. 79)
Enfim, o aporte da tecnologia ao SisJD tem de ser feito sem violação a essas três leis.
8. ASSIS: juridicidade sob a ótica das três leis. Visão democrática x visão totalitária.
Pode-se, então, analisar a modelagem do ASSIS contra este pano de fundo empírico-legal. Outras análises podem ser feitas, mas, especificamente em relação a esses atributos do SisJD, pode-se afirmar que:
- A modelagem não visa a substituição dos julgadores humanos. Ela busca a mais fiel emulação do sistema, com a pretensão de o acelerar;
- Ela evita o monojuizismo, um imenso risco para os sistemas democráticos e
- Ela absorve a variância do sistema, que é protetiva e não um defeito. E faz isso respeitando a autonomia hermenêutico-normativa do juiz. Aceita que a cultura, a visão de mundo e a formação do juiz oxigenem continuadamente o sistema. A teoria jurídica debruçou-se sobre essa questão. Não tinha no horizonte a força de condicionamento das atuais IAs. As reflexões, no entanto, são pertinentes para o momento atual, como demonstro a seguir.
Carlos Silveira NORONHA (1999, p. 59) entende que “[...] na construção da sentença estão presentes elementos ínsitos à própria pessoa do juiz, como a sua cultura e a sua inteligência, que são postas a serviço do raciocínio lógico que realiza.” Feita mecanicamente, por algoritmos, a sentença não alcança os objetivos jurídicos-sociais, o que levanta graves preocupações. “Vê-se, pois, que na sentença o elemento lógico é contingenciado pelo elemento axiológico que não se desprende de qualquer tipo de ação humana”. A ação do homem juiz (o agente) produz uma sentença com sua marca, incorpora seus valores culturais e, desse modo, sua vontade. O axiológico contingencia o lógico, sem dúvida.
"O julgador revela seu sentimento em relação aos fatos e ao direito apontados no processo", afirma Ismair Roberto POLONI (2003, p. 10), alinhando-se ao pensamento de Carlos Silveira Noronha. Não apenas os fatos são interpretados sob a ótica individual do juiz, mas o próprio direito ganha um significado particular de acordo com os sentimentos do julgador.
Para Cândido Rangel DINAMARCO (1993, p. 194/196), o legislador, de forma prévia e abstrata, separa as condutas humanas em boas e más, estabelecendo, nas palavras de Luhmann, o próprio sistema. Essa distinção, positivada no texto legal, transcende as intenções originais do legislador, adquirindo vida própria. "A mens legis corresponde, assim, ao juízo axiológico que razoavelmente se pode considerar como instalado no texto legal. Ao juiz cabe este trabalho de descoberta". O autor argumenta ainda que "o juiz indiferente às escolhas axiológicas da sociedade e que pretenda apegar-se a um exagerado literalismo exegético tende a ser injusto [...]”. As generalizações, por sua vez, possuem limites, sendo essencial considerar as particularidades de cada caso para uma decisão justa. Analisar e integrar essas nuances à aplicação da regra não significa desrespeitar a lei, mas sim observá-la em sua essência. É nesse ponto que reside a verdadeira função de julgar.
O livre convencimento motivado é tratado, portanto, como um valor, e o sistema constitucional organizou-se para captar as diferentes visões jurídicas nascidas na base (pluralidade) e para promover as harmonizações necessárias à segurança jurídica, mas pela via própria da tecnologia jurídico-social (o sistema do processo) e não pela via técnica.
Desta forma, impede-se a formação de centrais totalitárias9 de dicção do Direito (top-down). Num fluxo bottom-up, as uniformizações de visão são procedidas pelas vias institucionais e jurídicas, nos limites previstos e sem abrir canais para uma indesejada totalitarização sistêmica que deve, sempre e por todos os meios, exigir a atenção do Direito.