Capa da publicação Crime de desacato: aspectos legais
Capa: Reprodução
Artigo Destaque dos editores

Crime de desacato: aspectos legais

09/02/2025 às 22:25

Resumo:

- O crime de desacato consiste em ofender, humilhar, agredir ou desprestigiar um funcionário público.
- A embriaguez do agente pode ser alegada como causa excludente de imputabilidade no crime de desacato.
- O estado de ânimo do agente ao praticar desacato, como exaltação ou cólera, não exclui a culpabilidade, segundo a doutrina e jurisprudência apresentadas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

O crime de desacato ocorre quando alguém ofende ou humilha um funcionário público no exercício da função. A embriaguez exclui o dolo específico? A jurisprudência diverge sobre o tema.

Resumo: Até mesmo nas sociedades civilizadas poderá suceder que o indivíduo lá um dia se abrase em ira e desatine. Tal estado de ânimo, que sói desfechar em impulsos violentos, acompanha-se não raro de ofensas verbais, termos grosseiros ou de baixo calão e vias de fato. Se acertar que o sujeito passivo da injúria é funcionário público, responderá o agente por desacato, crime que a lei pune com pena de detenção (art. 331. do Cód. Penal).


Desacatar significa “ofender, humilhar, agredir, desprestigiar o funcionário público. 1

Cabe aqui a lição de Nélson Hungria:

“A ofensa constitutiva do desacato é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário. É a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaças, gestos obscenos, gritos agudos, etc.” (Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1958, vol. IX, p. 421).

Comete, pois, crime de desacato (art. 331. do Código Penal) o agente que, com o propósito de ofendê-lo, dirige palavras ofensivas a policial militar no exercício da função.

O dolo, no caso, reside na consciência do caráter ultrajante das palavras proferidas pelo agente, segundo a fórmula dos práticos: “Cum verba sunt per se injuriosa, animus injuriandi praesumitur”.2

A exaltação de ânimo não exclui o elemento subjetivo da figura típica do artigo 331 do Código Penal, o qual, segundo a melhor doutrina, prescinde do dolo específico.


Certos indivíduos (em especial aqueles que pertencem à confraria dos esforçados atletas de Baco), quando arguidos de desacato, costumam alegar que, ao agravar a honra do funcionário público, achavam-se em estado de ebriez alcoólica e, portanto, sem plena consciência de seus atos; não hesitam, por isso, em clamar por absolvição.

Tal gênero de defesa, ainda que enfrente a venerável teoria da actio libera in causa 3 — ação livre na sua causa; quem quer a causa quer o efeito —, conta, inegavelmente, com numerosos adeptos na república das letras jurídicas e na esfera dos Tribunais.

De fato, sustenta prestigiosa corrente jurisprudencial que a embriaguez do agente exclui o crime de desacato, por ser incompatível com o elemento subjetivo do tipo — dolo específico, isto é, vontade livre e consciente de ofender ou desprestigiar o funcionário público. Serve-lhe de padrão o acórdão adiante reproduzido por sua ementa:

“Não se configura o crime de desacato, quando o acusado é habitual ébrio e suas ofensas são dirigidas genericamente, sem a vontade livre e consciente de desrespeitar o funcionário ou autoridade, expondo-a ao desprestígio” (Rev. Tribs., vol. 463, p. 424).

Há também juristas de nomeada que, ao revés, professam o entendimento de que o delito de desacato não requer dolo específico, motivo pelo qual não admitem a invocação da embriaguez como causa excludente de imputabilidade.

A lanço vem o teor do julgado abaixo transcrito:

“A embriaguez habitual não serve de dirimente e nem de circunstância atenuante. É que a ação daquele que se embriaga habitualmente foi livre na sua atuação inicial voluntária ( actio libera in causa )” (Rev. Tribs., vol. 423, p. 435).

Se a embriaguez era tal que lhe suprimira a capacidade intelecto-volitiva, poderá o juiz reconhecer a favor do agente a ausência de conduta criminosa, por falta do elemento subjetivo do desacato.

A prova da embriaguez plena — estado em que “o bêbado não consegue manter-se em pé; e, às vezes, nem sentado. (…) Desaparecimento mais ou menos completo da consciência” 4 —, essa há de ser maior de toda a dúvida.

Mas, aquele que, dando de mão à água — que um sujeito de espírito chamou “vinho de Deus” 5 —, preferir enfrascar-se em álcool, advirta bem que, pelo comum, não se escusará da imputação de autor de desacato!


É tema de viva controvérsia entre graves juristas o que respeita ao estado de ânimo do agente ao praticar desacato. A opinião majoritária considera o ânimo calmo e refletido elementar do referido tipo penal. Outros, contudo, têm para si que tal circunstância nada lhe importa à caracterização. Numa palavra: o estado de exaltação ou cólera não elide a culpabilidade do agente, visto não lhe oblitera a consciência da ilicitude do ato praticado, que a lei define e pune como desacato. A aceitar orientação diferente, era o mesmo que fazer tábua rasa do tipo do art. 331. do Código Penal — desacato , pois equivaleria a verdadeira “abolitio criminis” (vênia!).

Andará bem avisado, portanto, aquele que, nesse pouco, encostar-se à opinião dos mais abalizados penalistas em Direito Penal — Damásio E. de Jesus, por exemplo (Código Penal Anotado, 18. ed., p. 1.023) — e ao magistério dos Tribunais, consagrado em venerandos acórdãos, de que é boa amostra o seguinte:

“O fato de ser o agente uma pessoa nervosa não descaracteriza o desacato, pois essa condição não dá ao cidadão direito de ofender impunemente funcionário público no exercício de sua função. A admitir tal comportamento, estaria instalada a balbúrdia na conceituação do crime, pois nenhum indivíduo normal dirige a ofensa a outrem sem que de alguma forma se encontre contrariado em seus interesses” (JTACrSP, vol. 7º, p. 91).

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Vem aqui a ponto um reparo: nem todo o proceder inadequado, rude ou incivil do agente constitui desacato, senão unicamente o que trai a ideia de ofensa ou humilhação ao funcionário público. Nesta matéria não temos menos fiador que o ínclito Nélson Hungria:

“Não constitui desacato a falta de educação ou a grosseria em face da autoridade, como, por exemplo, o fato de pôr-se a pessoa a fumar e ler jornal, ao ser autuada em flagrante” (Rev. Forense, vol. 115, p. 212).

As hipóteses que cabem na rubrica desacato são mais que muitas. Dá-lhes curso, enfim, o indivíduo que — sóbrio ou sob a ação do álcool, em seu acordo e consciência ou sob o domínio de cólera — profere palavras injuriosas contra “o funcionário público no exercício da função ou em razão dela”. 6


À luz da doutrina e da jurisprudência (em que se esforça este breve artigo) foi que decidiu o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, ao julgar apelação em processo-crime por desacato, conforme acórdão a seguir reproduzido:

Comete crime de desacato (art. 331. do Cód. Penal) o sujeito que, no intento de os ofender e humilhar, dirige palavras insultuosas a agentes penitenciários que lhe apreenderam, no interior de presídio, vasilhame com aguardente rústica denominada “maria louca”. O argumento de que o estado de exaltação elide o elemento subjetivo do tipo não assenta em razão lógica nem jurídica, pois o desacato não requer ânimo calmo. Aliás, expressões e palavras existem que, mesmo empregadas por gracejo, nunca depõem seu caráter injurioso e, pois, caem sob a fórmula com que as verberavam já os patriarcas do Direito: “Cum verba sunt per se injuriosa, animus injuriandi praesumitur”.

1. Inconformado com a r. sentença que proferiu o MM. Juízo de Direito da Comarca de Presidente Bernardes, condenando-o à pena de 7 meses de detenção, no regime semiaberto, por infração do art. 331, “caput”, do Código Penal, interpôs recurso para este Egrégio Tribunal, com o escopo de reformá-la, VFA.

Em suas razões de recurso afirma que, frágil e precária, a prova não lhe autorizava a condenação.

Ao demais, não houvera prova cabal do elemento subjetivo do tipo, ou intenção de injuriar as vítimas.

Pleiteia, destarte, a absolvição com fulcro no art. 386, ns. IV e VI, do Código de Processo Penal, por ser medida de justiça (fls. 135/139).

A douta Promotoria de Justiça apresentou contrarrazões de apelação, nas quais, refutando os argumentos da nobre Defesa, propugnou a manutenção da r. sentença de Primeiro Grau (fls. 141/146).

A ilustrada Procuradoria-Geral de Justiça, em detido e abalizado parecer da Dra. Cyrdemia da Gama Botto, opina pelo improvimento do recurso (fls. 156/158).

É o relatório.

2. Foi o réu chamado a prestar contas à Justiça Criminal porque, no dia 11 de abril de 2000, pelas 17h30, no interior da Penitenciária de Segurança Máxima de Presidente Bernardes, desacatou os agentes penitenciários JBS e PCMA, no exercício de suas funções.

Reza a denúncia que o réu se encontrava recolhido, em cumprimento de penas, naquele presídio, quando os agentes penitenciários, ao revistar-lhe a cela, depararam com duas latas de 18 litros, com substância em fermentação para a fabricação da bebida vulgarmente conhecida por “maria louca”.

Quando deliberaram apreender a bebida, o réu, com a intenção de amesquinhar-lhes a função pública, insultou os agentes penitenciários, proferindo-lhes palavrões, que se não reproduzem aqui por não macular a candura do papel, mas constam da denúncia e da r. sentença.

Instaurada a persecução criminal, transcorreu o feito segundo os cânones legais; ao cabo, a r. sentença de fls. 118/124 decretou a condenação do réu, o qual, irresignado com o desfecho da causa-crime, apela para esta augusta Corte de Justiça, suspirando por absolvição.

3. Em que pese à dedicação de seu patrono, o clamor do réu não se quer atendível, pois que o desautorizam as provas dos autos.

Com efeito, ninguém examinará o conjunto probatório, que não se persuada haver o réu cometido, realmente, o delito definido e punido pelo art. 331. do Código Penal (desacato).

Inquiridas na instrução da causa, afirmaram as vítimas, coerentes e seguras, as circunstâncias do fato e o teor de proceder do réu (fls. 106/107).

Em vista da incisiva incriminação que lhe fizeram as vítimas, a negativa do réu, no interrogatório de fl. 60, não merece acolhida, interpretando-se como singelo meio de defesa.

O vocábulo ofensivo assacado pelo réu contra os agentes penitenciários, por certo que lhes ofendeu a honra, demais de desprestigiá-los.

Faz ao propósito o ven. acórdão que a r. sentença trasladou por sua ementa:

“A ofensa constitutiva do desacato é qualquer palavra ou ato que redunde em vexame, humilhação, desprestígio ou irreverência ao funcionário. É a grosseira falta de acatamento, podendo consistir em palavras injuriosas, difamatórias ou caluniosas, vias de fato, agressão física, ameaça, gestos obscenos, gritos agudos, etc.” (Rev. Tribs., vol. 409, p. 427; rel. Sylvio Lemos).

Eventual exaltação de ânimo do réu — tese de que a combativa Defesa fez grande caso e cabedal — não elide o elemento moral do crime, consoante doutrina altamente reputada:

“O desacato não exige ânimo calmo, pelo que o estado de exaltação ou cólera não exclui o elemento subjetivo do tipo” (Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 9a. ed., p. 933).

Nisto de elemento moral do crime de injúria, triunfa na Doutrina a opinião de que responde à simples consciência do significado ofensivo do vocábulo ou expressões dirigidos a outrem: “Se as expressões ou imputações são por si mesmas difamatórias, ultrajantes ou injuriosas, presume-se de direito a intenção dolosa…” (Chassan, Délits de la parole, vol. I, p. 424).

Donde o brocardo que, acerca do ponto, cunharam os patriarcas do Direito: “Cum verba sunt per se injuriosa, animus injuriandi praesumitur”.

A condenação do réu era, de feito, indeclinável.

A pena satisfez ao intuito da lei e conteve-se em seus limites.

O regime prisional fixado, por outra parte, está correto (semiaberto), “em razão de demonstração de ausência de disciplina e responsabilidade, atendendo-se, outrossim, ao que dispõe o inciso III do artigo 59 do Código Penal”, como assinalou o douto parecer da Procuradoria-Geral de Justiça (fl. 158).

Merece confirmada, assim, por seus próprios e jurídicos fundamentos, a r. sentença que proferiu o distinto e culto Juiz Dr. Leonardo Mazzilli Marcondes.

4. Pelo exposto, nego provimento ao recurso.

Tribunal de Alçada Criminal, Décima Quinta Câmara, Apelação Criminal nº 1.318.197/0, Voto nº 3962, 17 de julho de 2002, Relator: Carlos Biasotti


Notas

  1. Damásio E. de Jesus, Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 1.021; Editora Saraiva; São Paulo.

  2. Em linguagem: Quando as palavras são por si mesmas injuriosas, presume-se a intenção de injuriar.

  3. “Esta expressão se aplica no campo do Direito Penal às situações em que o agente, voluntariamente ou não, se coloca num estado de inimputabilidade, produzindo um resultado lesivo que queria ou devia prever” (Leib Soibelman, Enciclopédia do Advogado, 3a. ed., p. 74; Editora Rio).

  4. A. Almeida Jr. e J.B. de O.Costa Jr., Lições de Medicina Legal, 21a. ed., p. 514.

  5. Agripino Grieco; apud Abeylard Pereira Gomes, O Agripino que eu Conheci, 1988, p. 37; Rio de Janeiro.

  6. Das condutas consideradas desacato recenseou o saudoso Professor Damásio E. de Jesus amplo estendal (que é copiosa a messe!): insultar e estapear a vítima; sorriso; riso; atirar papéis no balcão; palavras de baixo calão; agressão física; brandir arma (facão) com expressões de desafio; tentativa de agressão física; provocação de escândalo com altos brados; expressões grosseiras; caçoar da vítima; gesticulação ofensiva; gesticulação agressiva; rasgar ou atirar documentos no solo; lançar ovos em policiais; xingar a vítima de “bandido”, ou policiais de “bando de carneiros” (Código Penal Anotado, 18a. ed., p. 1.021; Editora Saraiva).

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Carlos Biasotti

Desembargador aposentado do TJSP e ex-presidente da Acrimesp

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIASOTTI, Carlos. Crime de desacato: aspectos legais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 7893, 9 fev. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/112818. Acesso em: 5 dez. 2025.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos